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<p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 2 8/14/2019 17:35:36</p><p>Copyright © 2023 Sílvia Correia, Alexandre Moreli</p><p>FGV EDITORA</p><p>Rua Jornalista Orlando Dantas, 9</p><p>22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | Brasil</p><p>Tel.: (21) 3799-4427</p><p>editora@fgv.br | pedidoseditora@fgv.br</p><p>www.fgv.br/editora</p><p>Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no</p><p>todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98).</p><p>Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos</p><p>entrevistados.</p><p>1a edição: 2019</p><p>2a edição: 2023</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca</p><p>Mario Henrique Simonsen/FGV</p><p>Tempos e espaços de violência [recurso eletrônico] : a primeira guerra</p><p>mundial, a desconstrução dos limites e o início de uma era / organização Sílvia</p><p>Correia e Alexandre Moreli. - Rio de Janeiro : FGV Editora, 2023.</p><p>1 recurso online (266 p.)</p><p>Dados eletrônicos.</p><p>Inclui bibliografia.</p><p>ISBN: 978-65-5652-258-6</p><p>1. Guerra Mundial, 1914-1918. I. Correia, Sílvia. II. Rocha, Alexandre Luis</p><p>Moreli, 1979-. III. Fundação Getulio Vargas.</p><p>CDD – 940.3</p><p>Elaborada por Mariane Pantana Alabarce – CRB-7/6992</p><p>SUMÁRIO</p><p>INTRODUÇÃO � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 7</p><p>Sílvia Correia & Alexandre Moreli</p><p>APRESENTAÇÃO DOS CAPÍTULOS E RESUMO DOS ARGUMENTOS � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 15</p><p>1918 E A SEGUNDA GRANDE GUERRA � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 21</p><p>Jay Winter (Yale University, Estados Unidos)</p><p>COMBATES GLOBAIS A PARTIR DAS MARGENS:</p><p>A ARGENTINA E A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 45</p><p>María Inés Tato (CONICET, Argentina)</p><p>ESTRANHA ORDEM� O BRASIL E O LIBERALISMO POLÍTICO INTERNACIONAL DO PÓS-1919 � � � � � � � 71</p><p>Alexandre Moreli (Universidade de São Paulo, Brasil)</p><p>REMEMORANDO A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL NA ÁFRICA: MEMÓRIA DE QUEM? � � � � � � � � � � � � � 109</p><p>Anne Samson (historiadora independente, GWAA, África do Sul)</p><p>S�O�S� (SAVE OUR SOULS)! REPRESENTAÇÃO APOCALÍPTICA E NORMALIZAÇÃO DA</p><p>VIOLÊNCIA NA MEMÓRIA DOS SOLDADOS PORTUGUESES DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL � � � � 135</p><p>Sílvia Correia (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)</p><p>A EXPERIÊNCIA DE GUERRA INDIANA NA EUROPA, 1914-1918: FRAGMENTOS, FORMAS E</p><p>SENTIMENTO � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 157</p><p>Santanu Das (University of Oxford, Grã-Bretanha)</p><p>EXPLORANDO O SERVIÇO MILITAR DE LONDRES DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL:</p><p>ESTUDANTES COMO PESQUISADORES DA CIDADE EM TEMPOS DE GUERRA � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 195</p><p>Daniel Todman (Queen Mary University of London, Grã-Bretanha)</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 5 8/14/2019 17:35:37</p><p>A SEGUNDA GRANDE GUERRA DA ALEMANHA:</p><p>PERCEPÇÕES DAS PÁGINAS DA SIMPLICISSIMUS (1918-1923) � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 217</p><p>Vinícius Liebel (Universidade Federal Fluminense, Brasil)</p><p>A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, UM LABORATÓRIO PARA O SÉCULO � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 243</p><p>Annette Becker (Université Paris-Nanterre, França)</p><p>OS AUTORES � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 261</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 6 8/14/2019 17:35:37</p><p>7</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>S í l v ia Corre ia & A lexandre More l i</p><p>O centenário do fim da Primeira Guerra Mundial foi o mote para uma</p><p>iniciativa que visava pensar o lugar do conflito na história do século XX.</p><p>Dentro desse contexto, esta obra surgiu particularmente de um desejo de</p><p>propor debates que descentralizassem a experiência da guerra, mas tam-</p><p>bém do objetivo de reunir, em língua portuguesa, textos-chave da geração</p><p>que hoje explora novas fronteiras na produção de narrativas sobre o confli-</p><p>to. Tais propósitos, além de nossos próprios textos, levaram-nos a fazer um</p><p>convite a historiadores que tanto protagonizaram alguns dos grandes mo-</p><p>mentos da historiografia da guerra ao longo do século passado, como desa-</p><p>fiaram pressupostos de uma discussão longamente consolidada. No Brasil,</p><p>o conflito foi assinalado em esporádicos eventos acadêmicos nos últimos</p><p>anos, revelando o quanto ainda reside de incompreensão sobre a natureza</p><p>e as consequências, para além das fronteiras nacionais, de uma guerra to-</p><p>tal. De acordo com recente reflexão publicada por John Horne em Past and</p><p>Present sobre a quebra de paradigmas na produção de narrativas,</p><p>a guerra total, se quisermos usar o termo, pode ser melhor entendida não</p><p>como uma estação final para a qual as sociedades modernas moveram-se</p><p>em trajetória única, mas como potencialidade de todas as sociedades, den-</p><p>tro dos limites de suas formas e estágios de desenvolvimento.1</p><p>1. HORNE, John. End of a Paradigm? The Cultural History of the Great War. Past & Present, v. 242,</p><p>n. 1, 1 February 2019, p. 168, tradução nossa.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 7 8/14/2019 17:35:37</p><p>8</p><p>Nesse contexto, reunindo as mais recentes perspectivas sobre o</p><p>tema, este livro procura trazer a público um conjunto de textos provo-</p><p>cadores, desafiando os limites do que até então se tem debatido e esta-</p><p>belecido sobre a Primeira Guerra Mundial.</p><p>CAMINHOS E NOVAS PERSPECTIVAS DE UMA HISTORIOGRAFIA DA</p><p>PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL</p><p>Como mencionado, a rememoração dos cem anos do conflito gerou</p><p>uma série de incentivos – simbólicos e materiais – à proliferação do deba-</p><p>te sobre o tema. Algumas questões, então, surgiram. Dentre elas, a que</p><p>argumenta se o centenário teria provocado a exaustão das possibilidades</p><p>analíticas do objeto, além de outra preocupada com a fragmentação da</p><p>possibilidade de uma compreensão global da Primeira Guerra Mundial</p><p>em razão da intensidade da produção e do sucesso da história cultural.</p><p>Para tentar alcançar algumas respostas, faz-se importante inicial-</p><p>mente destacar que, desde a eclosão do conflito e apesar de, por muito</p><p>tempo, ter perdido o protagonismo para a Segunda Guerra Mundial, a</p><p>produção historiográfica sobre a também chamada Grande Guerra tem</p><p>sido extremamente profícua, estando muitas vezes na vanguarda de al-</p><p>gumas das viragens nos temas e nas práticas do debate no campo da</p><p>história no século XX. Alguns autores-chave como Jay Winter2, Antoine</p><p>Prost3 e John Horne4 nos oferecem uma acurada revisão da literatura e</p><p>nos levam a refletir sobre a necessidade de, ainda hoje, trazer a público</p><p>novas reflexões sobre o conflito5.</p><p>2. WINTER, Jay. (Ed.). The legacy of the Great War: ninety Years On. Columbia; London: University of</p><p>Missouri Press, 2009. Ver também seu The Cambridge History of the First World War. Cambridge: Cam-</p><p>bridge University Press, 2014. 3 vols.</p><p>3. PROST, Antoine; WINTER, Jay. Penser la Grande Guerre: un essai d’historiographie. Paris: Éditions</p><p>du Seuil, 2004.</p><p>4. HORNE, John, op. cit.</p><p>5. Para uma revisão historiográfica mais detalhada em português, veja-se CORREIA, Sílvia. Cem</p><p>anos de historiografia da Primeira Guerra Mundial: entre</p><p>como a Itália, quanto vencidos como a Alemanha, a Áustria e a Rús-</p><p>sia. A violência anti-imperial do imediato pós-guerra no Egito, na Índia,</p><p>na Coreia e na China afetou os interesses globais da Grã-Bretanha, da</p><p>França e do Japão de maneira direta e palpável. Enquanto (com exceção</p><p>da Rússia, da Irlanda, da Polônia e da Turquia) a culture of war mobili-</p><p>zation acabou quando as tropas voltaram para casa em 1919, a culture of</p><p>war anxiety transformou-se naquilo que eu denominaria de uma culture</p><p>of post-war anxiety (cultura de ansiedade do pós-guerra), acompanhada</p><p>de várias formas de instabilidade econômica e conflito social e racial</p><p>que vieram diretamente da própria guerra. A Ameaça Vermelha nos</p><p>Estados Unidos e os paroxismos da violência racial são parte da mesma</p><p>trama de violência e exclusão montada durante e depois da guerra. As</p><p>datas convencionais resultantes dos acordos de paz têm apenas utilida-</p><p>de superficial. Houve demasiado sangue derramado e amargura para</p><p>permitir às sociedades fechar a porta aos ódios, antagonismos e ansieda-</p><p>des do tempo de guerra.</p><p>Por que esse paroxismo da violência entre 1917 e 1923 chegou ao fim?</p><p>Um motivo é a pura exaustão. Havia um limite na capacidade de essas</p><p>sociedades sustentar a violência sem fim. Além disso, em 1924, o caos</p><p>econômico dos anos imediatos ao pós-guerra chegou ao fim e a maioria</p><p>dos países europeus, tanto no oriente quanto no ocidente, renovou suas</p><p>trajetórias de crescimento do pré-guerra que tinham sido interrompi-</p><p>das pelo conflito.52 Outra razão para a estabilização da vida europeia em</p><p>meados da década de 1920 foi o reconhecimento pelas potências ociden-</p><p>tais de que a União Soviética tinha vindo para ficar. Da mesma forma, a</p><p>52. BROADBERRY, Stephen; KLEIN, Alexander. Aggregate and per capita GDP in Europe, 1870-2000:</p><p>Continental, regional and national data with changing boundaries. Disponível em: .</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 40 8/14/2019 17:35:39</p><p>41</p><p>reincorporação lenta, mas constante, da Alemanha de Weimar na comu-</p><p>nidade europeia e na Liga das Nações diminuiu as tensões internacionais</p><p>por um tempo. Claramente, depois de 1929, nenhuma das condições de</p><p>estabilidade, que possibilitaram a recuperação europeia no pós-guerra,</p><p>sobreviveram à crise econômica mundial, mas essa é outra história.</p><p>Por essas razões, eu insisto numa reconsideração das datas finais da</p><p>Grande Guerra. Continuo com 1914 como o início, não porque subes-</p><p>timo a importância das guerras balcânicas de 1912 e 1913, mas porque</p><p>estas não desencadearam um conflito global. No mesmo sentido, nem</p><p>mesmo a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, que pode ser apontada</p><p>como sendo responsável por mobilizar forças que atravessariam o sé-</p><p>culo. No entanto, eu proponho a nova data final de 1923. O ponto de</p><p>divisão entre as minhas duas Grandes Guerras é 1917, quando a revolu-</p><p>ção e o conflito social voltam para o centro do palco europeu e todas as</p><p>sociedades tiveram que lidar com divisões sociais significativas. Nesse</p><p>momento, novas representações da guerra, impregnadas de ansiedade,</p><p>emergiram ao lado de antigas representações de solidariedade heróica.</p><p>Essas ansiedades não evaporaram em 1918, mas tomaram formas novas</p><p>e, por vezes, mais violentas em um contexto de guerra civil e revolução.</p><p>Na década da Grande Guerra, as representações não eram imutáveis:</p><p>elas mudaram com o tempo à medida que a guerra em si também mu-</p><p>dava, dando tanto ao conflito quanto ao pós-guerra um gosto amargo</p><p>que nunca perderam.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane; BECKER, Annette. 1914-1918 Retrouver la guerre. Pa-</p><p>ris: Gallimard, 2000.</p><p>BARNES, Harper. Never Been a Time: The 1917 Race Riot That Sparked the Civil</p><p>Rights Movement. Nova Iorque: Walker & Company, 2008.</p><p>BESSEL, Richard. Mobilization and demobilization in Germany, 1916-1919. In: HOR-</p><p>NE, John. (ed.). State, society and mobilization during the First World War. Cambridge:</p><p>Cambridge University Press, 2002.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 41 8/14/2019 17:35:39</p><p>42</p><p>BORCHARDT, Lothar. The Impact of the war economy on the civilian population.</p><p>In: DEIST, Wilhelm (Ed.). The German military in the age of total war. Leamington</p><p>Spa: Berg, 1985, p. 110-120.</p><p>BROADBERRY, Stephen; KLEIN, Alexander. Aggregate and per capita GDP in Europe,</p><p>1870-2000: Continental, regional and national data with changing boundaries. Dispo-</p><p>nível em: .</p><p>FERRO, Marc. Ressentiment dans l’histoire: Comprendre notre temps. Paris: Odile Ja-</p><p>cob, 2007.</p><p>FIGES, Orlando. A people’s tragedy 1891-1924. Londres: Penguin, 1996.</p><p>_____. The Red Army and Mass Mobilization during the Russian Civil War 1918-</p><p>1920. Past & Present, n. 129, 1990, p. 168-211.</p><p>FREEBERG, Ernest. Democracy’s prisoner: Eugene V. Debs, the Great War and the</p><p>right to dissent. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2008.</p><p>GERWARTH, Robert. The Vanquished: Why the First World War failed to end, 1917-</p><p>1923. Londres: Allen Lane, 2016.</p><p>GOMEZ-BRUFAL, Manuel. Joseph Caillaux: Traitre our visionnaire. Paris: Dualpha</p><p>Editions, 2014.</p><p>HAGEN, William W. The Moral economy of ethnic violence: The pogrom in Lwow,</p><p>November 1918. Geschichte und Gesellschaft, v. 31, n. 2, apr- jun, 2005, p. 203-226.</p><p>HAIMSON, Leopold; SAPELL, Giulio (Ed.). Strikes, Social Conflict and the First World</p><p>War. An International Perspective. Milão: Feltrinelli, 1992.</p><p>HORNE, John. Demobilizing the mind: France and the legacy of the Great War</p><p>1919-1939. In: DRAPAC, Vesna Drapac; LAMBELET, André (eds). French History</p><p>and Civilization: Papers from the George Rudé Seminar. Volume 2. H-France, p. 101-</p><p>107, 2009, p. 101-107. Disponível em: .</p><p>_____ (ed.). State, society and mobilization during the First World War. Cambridge:</p><p>Cambridge University Press, 2002.</p><p>LOEZ, André; MARIOT, Nicolas (Ed.). Obéir/Désobéir. Les mutineries de 1917 en</p><p>perspective. Paris: La Découverte, 2008.</p><p>MCCLOSKEY, Donald N. The British Iron and Steel Industry, 1870-1914: A Study of</p><p>the Climacteric in Productivity. Journal of Economic History, v. 29, n. 1, mar., 1969, p.</p><p>173-175.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 42 8/14/2019 17:35:39</p><p>43</p><p>MOSSE, George L. Fallen soldiers. Reshaping the Memory of the World Wars. Nova</p><p>Iorque: Oxford University Press, 1990.</p><p>PROST, Antoine. Les limites de la brutalization. Tuer sur le front occidental, 1914-</p><p>1918. Vingtième Siècle, n. 81, 2004, p. 5-20.</p><p>SCHWARTZ, E.A. The Lynching of Robert Prager, the United Mine Workers, and</p><p>the Problems of Patriotism in 1918. Journal of the Illinois State. Historical Society, v. 95,</p><p>n. 4, Winter 2003, p. 414-437.</p><p>SIRKKA, Arosalo. Social Conditions for Political Violence: Red and White Terror</p><p>in the Finnish Civil War of 1918. Journal of Peace Research, v. 35, n. 2, 1998, p. 147-166.</p><p>SNYDER, Timothy. The Reconstruction of nations: Poland, Ukraine, Lithuania, Bela-</p><p>rus, 1569-1999. New Haven: Yale University Press, 2004.</p><p>SWAIN, Geoffrey. The Disillusioning of the Revolution’s Praetorian Guard: The Lat-</p><p>vian Riflemen, Summer-Autumn 1918. Europe-Asia Studies, v. 51, n. 4, 1999, p. 667-686.</p><p>TILLY, Charles. Strikes, Wars and Revolutions in an International Perspective. Cambrid-</p><p>ge e Paris: Cambridge University Press e Éditions de la MSH, 1989.</p><p>WEISSMAN, Benjamin M. The Aftereffects of the American Relief Mission to So-</p><p>viet Russia. Russian Review, v. xxix, n. 4, 1970, p. 411-421.</p><p>WINTER, Jay. Paris, London, Berlin: Capital cities at war. In: WINTER, Jay; RO-</p><p>BERT, Jean-Louis (Ed.). Capital cities at war: Paris, London, Berlin 1914-1919. Cam-</p><p>bridge: Cambridge University Press, 1997, p. 3-24.</p><p>____. Under cover of war: The Armenian genocide in the context of total war. In:</p><p>GELLATELY; Robert; KIERNAN, Ben (Ed.). The specter of genocide. Massmurder in</p><p>historical perspective.</p><p>Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 189-214.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 43 8/14/2019 17:35:39</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 44 8/14/2019 17:35:39</p><p>45</p><p>COMBATES GLOBAIS A PARTIR</p><p>DAS MARGENS: A ARGENTINA E A</p><p>PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL53</p><p>Mar ía Inés Tato (CONICET, Un i vers idad de Buenos A i res, Argent ina)</p><p>A renovação historiográfica em torno da Grande Guerra, que aconte-</p><p>ceu nas últimas duas décadas e que foi acelerada pelo centenário da dis-</p><p>puta, permitiu dar visibilidade a atores históricos até então ignorados,</p><p>como as chamadas periferias, países ou regiões com uma participação</p><p>tardia ou marginal no conflito, ou até neutros. Os neutros foram, de</p><p>fato, envolvidos na disputa pelos beligerantes, que implantaram global-</p><p>mente uma guerra econômica e elaboraram e distribuíram propaganda</p><p>orientada a obter consensos em causa própria e a debilitar a influência</p><p>inimiga. Essas ações evidenciam que a guerra não foi travada somente</p><p>nos campos de batalha, mas também se refletiu em outras dimensões</p><p>da realidade social de seu tempo.</p><p>No entanto, a constatação de que os países neutros foram de algu-</p><p>ma maneira envolvidos no conflito por ação das potências em guerra</p><p>não implica afirmar sua passividade. Ao contrário, eles também foram</p><p>protagonistas de uma intensa mobilização social e cultural que pode ser</p><p>qualificada como beligerância,54 que conviveu com a política de neutrali-</p><p>dade oficialmente adotada pelo Estado.</p><p>53. Tradução para o português de Mariana Pastana. Revisão técnica de Luah Tomas, Sílvia Correia e</p><p>Alexandre Moreli.</p><p>54. No sentido de “belligerence”, que remete à experiência social do conflito, em contraste com o</p><p>conceito de “belligerency” baseado no Direito Internacional, que alude ao estado de guerra de uma</p><p>nação (COMPAGNON; Olivier; PURSEIGLE, Pierre. Geographies of mobilization and territories of</p><p>belligerence during the First World War. Annales HSS (Edição Inglesa), v. 71, n. 1, 2016, p. 49).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 45 8/14/2019 17:35:39</p><p>46</p><p>Neste trabalho analisaremos as diferentes modalidades de mobiliza-</p><p>ção da sociedade argentina durante a Grande Guerra.55 Acompanhando</p><p>John Horne, adotaremos aqui o conceito de mobilização em um senti-</p><p>do amplo,56 entendendo-a não só em seus aspectos econômico e militar,</p><p>mas também como um processo político e cultural que implica repre-</p><p>sentações coletivas, ancoradas em um sistema de valores específico e</p><p>em definições identitárias fortemente ligadas à questão nacional.</p><p>No dia 5 de agosto de 1914, o governo argentino emitiu um decreto</p><p>declarando “a mais estrita neutralidade” frente à guerra que acabava de</p><p>irromper na Europa, uma posição que seria ratificada sucessivamente</p><p>à medida que outros estados somavam-se ao conflito.57 A neutralidade</p><p>oficial se fundava em diversas razões: a inexistência de interesses diretos</p><p>no conflito, a falta de vinculação com o sistema de alianças interesta-</p><p>tais que a guerra pôs em movimento, o empenho em manter abertos</p><p>todos os mercados possíveis para as exportações argentinas visando a</p><p>atenuar os efeitos das oscilações da economia em tempos de guerra e</p><p>a preservação da harmonia social frente ao forte peso demográfico dos</p><p>europeus radicados no país, que giravam em torno de 27% da popula-</p><p>ção total.58</p><p>Apesar disso, a posição oficial não foi um obstáculo para a sociedade</p><p>civil expressar com veemência sua opinião sobre as causas e as respon-</p><p>sabilidades da deflagração da guerra e tomar partido por um ou outro</p><p>lado beligerante. Já nos primeiros dias após a explosão da contenda, as</p><p>principais cidades argentinas testemunharam uma intensa ansiedade</p><p>55. Exploramos a fundo estas questões em La trinchera austral. La sociedad argentina ante la Primera</p><p>Guerra Mundial (Rosario: Prohistoria, 2017).</p><p>56. HORNE, John. Introduction: mobilizing for “total war”, 1914-1918. In: HORNE, John (ed.). State,</p><p>society and mobilization in Europe during the First World War. Cambridge: Cambridge University Press,</p><p>1997, p. 1-3.</p><p>57. WEINMANN, Ricardo. Argentina en la Primera Guerra Mundial: neutralidad, transición política y</p><p>continuismo económico. Buenos Aires: Biblos, 1994, p. 55.</p><p>58. Tercer Censo Nacional levantado el 1º de junio de 1914. Buenos Aires: Talleres Gráficos L. J. Rosso &</p><p>Cía., v. II, 1916, p. 395-396.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 46 8/14/2019 17:35:39</p><p>47</p><p>por notícias do front. As redações dos principais jornais se depararam</p><p>com cidadãos permanentemente em busca de novidades a respeito da</p><p>então denominada “guerra europeia”. Assim, era frequente que cerca</p><p>de 5.000 pessoas se aglomerassem em frente ao La Prensa, o jornal mais</p><p>lido do país, publicado na cidade de Buenos Aires, para se informar dos</p><p>acontecimentos bélicos.59 É necessário ter em mente que a imprensa</p><p>era um meio de comunicação de massas por excelência e, consequente-</p><p>mente, uma referência inevitável na hora de manter-se informado. No</p><p>período, a taxa de analfabetismo da Argentina — que beirava 36% —</p><p>era uma das mais baixas da América Latina, decorrente da política bem</p><p>sucedida empreendida pelo Estado a partir de 1884, quando a Lei 1420</p><p>estabeleceu a educação pública obrigatória, gratuita e laica, como par-</p><p>te do processo de construção da cidadania e da nacionalização de uma</p><p>sociedade cada vez mais cosmopolita.60 O público leitor era, portanto,</p><p>fortalecido e dispunha de uma ampla oferta de publicações regulares</p><p>por meio das quais podia ter acesso aos acontecimentos europeus.61</p><p>Além da leitura de meios impressos, na época, eram também co-</p><p>muns práticas orais que operassem como vias de circulação da informa-</p><p>ção. Como ressaltado nas crônicas jornalísticas, em frente aos quadros</p><p>de notícias das agências dos jornais e em todos os espaços de socializa-</p><p>ção, as discussões giravam em torno da guerra, amplificando assim o</p><p>alcance da palavra escrita:</p><p>O início das hostilidades entre os países beligerantes foi o tema predileto</p><p>do dia, pois quase podemos afirmar que não se falava de outra coisa nos</p><p>59. LA PRENSA. Repercusión de la guerra en la Argentina. 8 de agosto de 1914.</p><p>60. Para um panorama histórico da alfabetização em diversos países do mundo, ver UNESCO, Pro-</p><p>gress of literacy in various countries. A preliminary statistical study of available census data since 1900.</p><p>Paris: UNESCO, 1953. Sobre a política educativa do Estado argentino, ver BERTONI, Lilia Ana. Pa-</p><p>triotas, cosmopolitas y nacionalistas. La construcción de la nacionalidad argentina a fines del siglo XIX.</p><p>Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001.</p><p>61. Em 1914, circulavam na Argentina 518 jornais, periódicos e revistas, 153 dos quais eram publicados</p><p>na capital federal (Tercer Censo Nacional, op. cit., vol. IX, p. 277).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 47 8/14/2019 17:35:39</p><p>48</p><p>teatros, nas ruas, nos passeios públicos, e onde quer que se formasse um</p><p>grupo de pessoas […]62.</p><p>[a guerra] se discutia e se comentava a plenos pulmões com interesse ver-</p><p>dadeiramente extraordinário63.</p><p>O público, ávido para saber o que acontece na culta Europa, improvisa sa-</p><p>lões de leitura em qualquer parte, e nos grupos que se formam em frente</p><p>aos quadros de notícias vale a pena ver a cultura histórico-geográfica que</p><p>alcançou nosso povo, mesmo nas classes mais ignorantes.</p><p>Os engraxates sabem hoje a origem das dinastias europeias, e carregadores</p><p>falam de tática e estratégia64.</p><p>Deve se acrescentar à oferta de informações proporcionada pela im-</p><p>prensa os vastos arsenais propagandísticos usados pelos beligerantes</p><p>que, em diferentes formatos (livros, folhetos, panfletos, pôsteres, car-</p><p>tões-postais, fotografias, exposições de material bélico, conferências,</p><p>filmes), transmitiram ao público argentino representações da guerra e</p><p>dos diversos combatentes com o objetivo de despertar solidariedade.65</p><p>A propaganda de ambos os beligerantes apelou, na Argentina, para</p><p>os mesmos argumentos e estereótipos empregados em outras latitu-</p><p>des, reproduzindo a representação binária</p><p>do conflito que dominou os</p><p>imaginários durante a guerra.66 Os Aliados propuseram uma leitura</p><p>segundo a qual o dilema era entre civilização ou barbárie, democra-</p><p>cia ou autocracia, civilismo ou militarismo. A propaganda alemã foi</p><p>62. LA PRENSA. Repercusión de la guerra en la Argentina. 3 de agosto de 1914.</p><p>63. Ibid. 2 de agosto de 1914.</p><p>64. CASTEX, Julián. La emoción de la guerra. Caras y Caretas, n. 841, 14 de novembro de 1914, p. 48-49.</p><p>65. Para uma análise da propaganda aliada e alemã distribuídas na Argentina, remeto a TATO, op.</p><p>cit., capítulo 1.</p><p>66. RASMUSSEN, Anne. Mobilising minds. In: WINTER, Jay (ed.). The Cambridge History of the First</p><p>World War. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, v. 3, p. 395-396.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 48 8/14/2019 17:35:39</p><p>49</p><p>principalmente defensiva, orientando-se a refutar as acusações acerca</p><p>da barbárie alemã e exaltar as conquistas dessa civilização em todos os</p><p>aspectos. Além disso, apresentava o conflito como a forma encontra-</p><p>da pelas potências imperialistas — emblematicamente o Reino Unido</p><p>— para traduzir em termos militares sua rivalidade econômica com a</p><p>Alemanha, forçando esta a intervir em uma guerra que ia contra os seus</p><p>interesses, pacíficos por definição.</p><p>A esses assuntos universais, a propaganda difundida na Argentina in-</p><p>corporava argumentos que buscavam sintonizar-se com a audiência lo-</p><p>cal e seus códigos culturais, a fim de incrementar sua efetividade.67 Para</p><p>isso, tiveram a colaboração de intelectuais argentinos, demonstrando</p><p>que a circulação transnacional de representações do conflito não era</p><p>unidirecional, pois implicava um processo ativo de apropriação e ressig-</p><p>nificação, de interação e trocas.</p><p>Os partidários da causa aliada enfatizaram a dicotomia entre civiliza-</p><p>ção e barbárie que se relacionava com a tradição liberal argentina. Com</p><p>efeito, em 1845, o intelectual e futuro presidente da Argentina Domingo</p><p>Faustino Sarmiento havia publicado a obra Facundo o civilización y bar-</p><p>barie en las pampas argentinas, na qual assimilava civilização aos avanços</p><p>na construção de um Estado nacional centralizado e moderno, e barbá-</p><p>rie, com a resistência dos caudilhos nas províncias que, em sua opinião,</p><p>perpetuavam uma ordem social e política decadente. Os ecos dessa po-</p><p>larização ressurgiram com a guerra. O escritor e jornalista Roberto J.</p><p>Payró, correspondente do jornal La Nación em Bruxelas, havia feito rapi-</p><p>damente essa interpretação do conflito e traçado paralelos entre os ale-</p><p>mães e os caudilhos das províncias: “Isso não parece uma imitação dos</p><p>comportamentos de Facundo [Quiroga] ou de Cacho [Ángel Vicente</p><p>Peñaloza] nas épocas mais bárbaras que atravessou nosso país?”.68 Além</p><p>67. PADDOCK, Troy R.E. Introduction. In: PADDOCK, Troy R.E. (ed.). World War I and propaganda.</p><p>Leiden-Boston: Brill, 2014, p. 13.</p><p>68. PAYRÓ, Roberto J. Diario de un testigo. La guerra vista desde Bruselas, 12, artigo fechado no</p><p>dia 27 de setembro de 1914 e publicado em La Nación no dia 4 de abril de 1915. In: PAYRÓ, Roberto J.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 49 8/14/2019 17:35:39</p><p>50</p><p>disso, reivindicaram as diversas contribuições realizadas pelos Aliados</p><p>na construção da nacionalidade argentina. Em seu livro Alemania contra</p><p>el mundo, o político e intelectual liberal Francisco Barroetaveña recupe-</p><p>rou da França a “influência emancipadora” do Iluminismo e da revo-</p><p>lução de 1789; do Reino Unido, a experiência das invasões inglesas no</p><p>Rio da Prata, que haviam funcionado como propulsoras revolucioná-</p><p>rias, além do apoio posterior ao processo de emancipação em relação à</p><p>Espanha; e de ambos os estados europeus, a intervenção em tempos de</p><p>organização nacional na luta contra a influência dos caudilhos.69</p><p>Os argentinos partidários do Império Alemão, por sua vez, recorriam</p><p>a argumentos anti-imperialistas, ressaltando as diferentes agressões à so-</p><p>berania nacional dos países do subcontinente perpetradas ao longo da his-</p><p>tória pelas potências europeias, com exceção da Alemanha. O prolífico</p><p>jurista e escritor Ernesto Quesada argumentou por conseguinte:</p><p>A Alemanha jamais pretendeu desempenhar um papel político na Améri-</p><p>ca: em contrapartida, a Inglaterra se apoderou, durante o século XIX, de</p><p>diversos territórios americanos, como, por exemplo, o que hoje é a Hondu-</p><p>ras britânica, as ilhas Malvinas etc., tratou em vão de conquistar a própria</p><p>Argentina em 1806 e em 1807, e exerceu pressão diplomática e militar sobre</p><p>diversos estados latino-americanos; a França, com a tentativa do império</p><p>de Maximiliano, buscou conquistar o México, ambas — França e Inglaterra</p><p>— trouxeram várias intervenções armadas ao Rio da Prata […] os Estados</p><p>Unidos, em seus sucessivos avanços sobre o México, tiraram deste a Ca-</p><p>lifórnia, o Texas, e receberam Porto Rico como espólio de uma guerra,</p><p>exercendo o protetorado sobre Cuba e Panamá70.</p><p>Corresponsal de guerra. Cartas, diarios, relatos (1907-1922), Buenos Aires: Biblos, 2009, p. 850.</p><p>69. BARROETAVEÑA, Francisco A. Las naciones beligerantes. Vinculaciones argentinas, artigo fe-</p><p>chado no dia 8 de agosto de 1914 e publicado em El Diario. In: Alemania contra el mundo, Buenos Aires:</p><p>Otero & Co., 1916, p. 79-80.</p><p>70. QUESADA, Ernesto. El “peligro alemán” en Sud América. Buenos Aires: Talleres Gráficos de Selin</p><p>Suárez, 1915, p. 53.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 50 8/14/2019 17:35:39</p><p>51</p><p>O irredentismo em torno das Ilhas Malvinas foi particularmente ex-</p><p>plorado pela propaganda alemã, evidenciando sua versatilidade na hora</p><p>de escolher os argumentos centrais para conseguir minar a hegemonia</p><p>aliada a nível local.</p><p>A sociedade argentina se polarizou em torno da Grande Guerra</p><p>entre “aliadófilos” e “germanófilos”, categorias que transmitiam afini-</p><p>dades culturais prévias. No entanto, esses alinhamentos se mostraram</p><p>bastante assimétricos, na medida em que os defensores dos Aliados pre-</p><p>dominaram amplamente na opinião pública local. Em geral, o campo</p><p>literário e artístico argentino se manifestou esmagadoramente a favor</p><p>da França e, como consequência, de seus aliados na guerra. Essa incli-</p><p>nação pró-francesa refletia a profunda influência do país gaulês entre as</p><p>elites latino-americanas, que remontava ao século anterior. Com efeito,</p><p>desde o início do século XIX, a França era reivindicada como a inspi-</p><p>ração das revoluções de independência em relação à Espanha, filiadas</p><p>ao modelo proporcionado pela revolução de 1789. Posteriormente, seu</p><p>republicanismo foi adotado como princípio legitimador dos novos Es-</p><p>tados nacionais emancipados e seu laicismo foi hasteado pela maioria</p><p>deles. Além disso, a França foi considerada como patrona das artes e das</p><p>letras,71 e sua capital converteu-se consequentemente “na Meca da pe-</p><p>regrinação artística” de escritores e artistas72 – uma escala-chave em um</p><p>circuito cultural de alcance universal que validava os méritos intelec-</p><p>tuais e facilitava a profissionalização e o reconhecimento internacional.</p><p>Ademais, a Grande Guerra potencializou o panlatinismo, impulsionado</p><p>desde meados do século XIX pela diplomacia cultural francesa, segundo</p><p>a qual a França constituiria a principal referência de uma raça latina, de-</p><p>finida em função da origem comum da língua. Tal contexto implicava</p><p>71. ROLLAND, Denis. La crise du modèle français. Marianne et l’Amérique latine. Culture, politique et</p><p>identité. Rennes : Presses Universitaires de Rennes, 2000.</p><p>72. COLOMBI, Beatriz. Camino a la meca. Escritores hispanoamericanos en París (1900-1920). In:</p><p>MYERS, Jorge (ed.). Historia de los intelectuales en América Latina. Buenos Aires: Katz Ediciones, vol. I</p><p>“La ciudad letrada, de la conquista al modernismo”, 2009, p. 544.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 51 8/14/2019 17:35:40</p><p>52</p><p>uma unidade cultural e espiritual que transcendia as fronteiras nacio-</p><p>nais, moldando uma identidade transnacional que vinculava a França às</p><p>jovens repúblicas do Novo Mundo.73 No marco do conflito, apelou-se a</p><p>esse vínculo para reivindicar adesão</p><p>à causa francesa e de seus aliados</p><p>circunstanciais.</p><p>Os germanófilos, por sua vez, costumavam advir do campo das ciên-</p><p>cias exatas e naturais, do direito, da medicina, da filosofia e do exército,</p><p>como resultado de uma formação profissional que encontrava na Ale-</p><p>manha uma referência indispensável.74 Diferentemente da arte e da lite-</p><p>ratura, essas disciplinas careciam de uma projeção social equivalente,</p><p>um fato que, somado às barreiras idiomáticas, dificultava enormemente</p><p>sua influência sobre a sociedade.</p><p>Apesar da relativa equivalência entre certas categorias profissionais e</p><p>determinados alinhamentos em torno da guerra, é necessário evitar as</p><p>caracterizações homogeneizantes e as simplificações. Numerosos ou-</p><p>tros exemplos indicam que a polarização entre aliadófilos e germanófi-</p><p>los se produziu no interior de vários campos profissionais e associações</p><p>civis, evidenciando sua complexidade intrínseca. Ademais, o impacto di-</p><p>ferencial das causas aliada e alemã sobre a opinião pública argentina se</p><p>explica por diversos fatores, além das afinidades derivadas da formação</p><p>profissional.</p><p>O fator central foi o peso demográfico esmagador das comunidades</p><p>de imigrantes procedentes das nações aliadas em comparação com a</p><p>dos Impérios Centrais: as primeiras formavam 51% do total de estran-</p><p>geiros, enquanto as segundas alcançavam apenas 6%.75 Embora as co-</p><p>73. SORIA, Esther Aillón. La política cultural de Francia en la génesis y difusión del concepto L’Amé-</p><p>rique latine, 1860-1930. In: GRANADOS, Aimer; MARICHAL, Carlos (org.). Construcción de las identi-</p><p>dades latinoamericanas. Ensayos de historia intelectual, siglos XIX y XX. México: El Colegio de Méxi-</p><p>co, 2004.</p><p>74. ROLLAND, op. cit., p. 143.</p><p>75. Tercer Censo Nacional levantado el 1º de junio de 1914, op. cit., vol. II, p. 395-396. A alta porcentagem</p><p>que correspondia aos imigrantes de países neutros na guerra se explica pelo peso dos espanhóis que,</p><p>na época, eram o segundo maior grupo em termos numéricos, atrás dos italianos. Entre 1857 e 1914,</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 52 8/14/2019 17:35:40</p><p>53</p><p>munidades não fossem monolíticas e mostrassem importantes divisões</p><p>internas, não permitindo inferir um apoio irrestrito à causa de seus</p><p>países de origem, as proporções indicadas, de toda forma, se mostram</p><p>bastante contundentes.76 Além disso, grande parte desses europeus que</p><p>chegaram à Argentina massivamente a partir da década de 1880 criaram</p><p>raízes e se integraram à sociedade local e, somado a seus descendentes</p><p>— primeira geração de argentinos — , constituíam uma alta porcenta-</p><p>gem dessa mesma opinião política.</p><p>Por outro lado, o controle dos fluxos de informação pelos Aliados</p><p>também foi crucial para o predomínio de suas perspectivas sobre a</p><p>guerra na opinião pública local. A informação acerca da Grande Guerra</p><p>que chegava à imprensa argentina havia atravessado previamente vários</p><p>níveis de mediação. Em primeiro lugar, a regulação estatal de conteú-</p><p>dos que os estados beligerantes estabeleceram com o desencadear da</p><p>guerra e que resultou na instauração de um sistema de censura centra-</p><p>lizado.77</p><p>Após a aplicação dos procedimentos da censura oficial, a informação</p><p>sobre a guerra era recompilada pelas agências internacionais de notícias</p><p>que, na esteira da revolução das comunicações da segunda metade do</p><p>os principais destinos da migração ultramarina europeia foram os Estados Unidos (27.000.000 de pes-</p><p>soas), Argentina (4.600.000), Canadá (4.000.000) e Brasil (3.300.000) (DEVOTO, Fernando. Historia de</p><p>la inmigración en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 2003, p. 247). No entanto, esses números</p><p>relativos devem ser colocados em relação com o total da população de cada país. Consequentemente,</p><p>a proporção da população estrangeira na Argentina (29,9%) era mais alta que no Canadá (22% em</p><p>1911), nos Estados Unidos (14,7% em 1910) e no Brasil (ao redor de 5% em 1920). Disponível em: , acesso em: 28 de out. 2018;</p><p>,</p><p>acesso em: 28 out. 2018; e FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina. Um ensaio de histó-</p><p>ria comparada (1850-2002). São Paulo: Editora 34, 2004, p. 178.</p><p>76. Em relação às tensões internas das comunidades de imigrantes residentes na Argentina e seu</p><p>papel durante a guerra, ver: TATO, op. cit., p. 58-60.</p><p>77. DEMM, Eberhard. Censorship. In: DANIEL, Ute ; GATRELL, Peter ; JANZ, Oliver ; JONES, Hea-</p><p>ther ; KEENE, Jennifer; KRAMER, Alan ; NASSON, Bill (ed.). 1914-1918-online. International Encyclope-</p><p>dia of the First World War. Belin: Freie Universität Berlin, 2017. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2018.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 53 8/14/2019 17:35:40</p><p>54</p><p>século XIX, dominavam o mercado mundial da informação. Na Améri-</p><p>ca Latina, o controle da distribuição de notícias correspondeu à agência</p><p>francesa Havas, com uma quota menor do mercado a cargo da norte-a-</p><p>mericana Associated Press.78 Na Argentina, graças a um acordo secreto</p><p>entre a Havas e a agência britânica Reuters, os telegramas dessa última</p><p>eram transmitidos, durante a guerra, a Buenos Aires e publicados como</p><p>procedentes da agência francesa, para serem retransmitidos a Monte-</p><p>vidéu e a Santiago do Chile.79 Esta triangulação da informação coloca</p><p>em destaque o papel crucial desempenhado pela capital argentina na</p><p>difusão de notícias e propagandas europeias no Cone Sul, qualquer que</p><p>fosse sua origem.80</p><p>As agências transmitiam notícias pelo telégrafo aos jornais que es-</p><p>tavam inscritos em seus serviços, sendo duas companhias britânicas</p><p>operantes na Argentina, a Western Telegraph Company e a Central and</p><p>South American Company, que conectavam Buenos Aires a Londres. A</p><p>Alemanha dispunha somente dos serviços prestados pela Südamerika-</p><p>nische Telegraphengesellschaft. Quando, em 4 de agosto de 1914, o governo</p><p>britânico cortou os cabos submarinos transatlânticos que vinculavam</p><p>telegraficamente a Alemanha ao continente, os Aliados infligiram um</p><p>golpe decisivo aos Impérios Centrais, ao mesmo tempo em que obtive-</p><p>ram o monopólio virtual das comunicações com a América.81 No fim</p><p>desse mesmo ano, o governo alemão esteve em condições de recor-</p><p>rer aos serviços da agência de notícias Transocean que, por meio da</p><p>78. DESBORDES-VELA, Rhoda. L’information internationale en Amérique du Sud: les agences et les</p><p>réseaux, circa 1874-1919. Le Temps des médias, n. 20, 2013/1, p. 126-127; 134-135.</p><p>79. Reino Unido, Londres, The National Archives (daqui em diante, TNA), FO 118/385, “Despatch n°</p><p>110 from Sir R. Tower to Sir E. Grey”, Buenos Aires, 9 de março de 1916.</p><p>80. França, Paris, Centre des Archives Diplomatiques de La Courneuve (daqui em diante, CADLC),</p><p>Fond Maison de la Presse et Services d’Information et de Presse 1914-1940, Dossier 3, “La transmission</p><p>des Communiqués Officiels de guerre à l’étranger”, 23 de dezembro de 1915; RINKE, Stefan. Im Sog der</p><p>Katastrophe. Lateinamerika und der Erste Weltkrieg. Frankfurt am Main: Campus, 2015, p. 119.</p><p>81. PETERSON, H. C. Propaganda for war. The campaign against American neutrality, 1914-1917. New</p><p>York: Kennikat Press, 1968, p. 12-14.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 54 8/14/2019 17:35:40</p><p>55</p><p>radiotelegrafia, transmitia informes da Alemanha por meio de estações</p><p>nos Estados Unidos,82 retransmitidos por cabos a Buenos Aires.83 No en-</p><p>tanto, a telegrafia sem fio tinha limitações técnicas que reduziam for-</p><p>temente o volume da informação transmissível,84 motivo pelo qual a</p><p>provisão de notícias procedentes dos Impérios Centrais foi fatalmente</p><p>afetada.</p><p>A fim de superar esses obstáculos, a Alemanha tentou instalar —</p><p>aparentemente sem êxito — diversas estações de rádio clandestinas no</p><p>território argentino.85 Também estabeleceu uma agência de notícias</p><p>própria em Buenos Aires, que proporcionou informações à imprensa</p><p>alemã local e a alguns jornais do</p><p>Chile. A agência atuava sob o nome de</p><p>Prensa Asociada, supostamente para dar a impressão de ser uma filial da</p><p>Associated Press norte-americana, e oferecia seus serviços a um “custo</p><p>extremamente baixo”.86 No entanto, o esforço mais ambicioso e con-</p><p>tínuo da Alemanha para combater o monopólio informativo aliado e</p><p>difundir seus pontos de vista sobre o conflito consistiu na criação de um</p><p>jornal em espanhol, La Unión, em 31 de outubro de 1914.87 Fundado pelo</p><p>jornalista alemão Hermann Tjarks, foi financiado pela Legação Alemã e</p><p>sua comunidade residente na Argentina. Durante a guerra, o periódico</p><p>foi um interlocutor inevitável junto às publicações pró-aliadas e o jornal</p><p>82. EVANS, Heidi. The path to freedom? Transocean and German wireless telegraphy, 1914-1922. His-</p><p>torical Social Research, n. 35, 2010, p. 216-217.</p><p>83. HOFFMANN, Katrin. ¿Construyendo una “comunidad”? Theodor Alemann y Hermann Tjarks</p><p>como voceros de la prensa germanoparlante en Buenos Aires, 1914-1918. Iberoamericana. América Latina</p><p>– España – Portugal, n. 33, 2009, p. 128.</p><p>84. WELCH, David. Germany, propaganda and total war, 1914-1918. New Brunswick: Ruthers University</p><p>Press, 2000, p. 22-23.</p><p>85. TNA, FO 118/384, Reginald Tower, Argentine Republic. Annual Report, 1915, Buenos Aires, 1 de ja-</p><p>neiro de 1916, p. 24-26; CADLC, Fond Guerre 1914-1918, Dossier 191, Le Ministre de France en Argentine a</p><p>son Excellence Monsieur Ribot, Président du Conseil, Ministre des Affaires Etrangères, Buenos Aires, junho</p><p>de 1917.</p><p>86. TNA, FO 118/463, Despatch from Sir R. Tower to Mr Balfour, Buenos Aires, 4 de maio de 1918; TNA,</p><p>FO 118/465, Despatch from Sir R. Tower to Mr Balfour, Buenos Aires, 10 de outubro de 1918.</p><p>87. Sobre esta publicação, ver: TATO, María Inés. Fighting for a lost cause? The Germanophile news-</p><p>paper La Unión in neutral Argentina, 1914-1918. War in History, v. 25, n. 4, 2018, p. 464-484.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 55 8/14/2019 17:35:40</p><p>56</p><p>de propaganda alemã mais importante da América do Sul.88 O jornal</p><p>apostava em corrigir os estereótipos sobre a Alemanha difundidos pela</p><p>propaganda aliada e, com esse objetivo, exaltou as conquistas materiais</p><p>e culturais do Império Alemão, reafirmou o caráter defensivo de sua</p><p>intervenção no conflito e rejeitou as acusações das atrocidades que lhe</p><p>atribuíam durante a ocupação belga e francesa. Com o fim de aumentar</p><p>sua influência sobre o público local, La Unión — tal como a propaganda</p><p>alemã destinada à sociedade argentina — insistiu na denúncia do impe-</p><p>rialismo britânico e norte-americano e no estímulo ao irredentismo em</p><p>torno das Ilhas Malvinas. Apesar de seus esforços, o periódico não pôde</p><p>combater a imagem negativa do Império Alemão que estava estabeleci-</p><p>da na opinião pública, nem enfraquecer a devoção de grande parte dela</p><p>à causa dos Aliados.</p><p>Como vimos, a mobilização cultural da sociedade, polarizada em</p><p>torno da Grande Guerra, expressou-se em debates calorosos na im-</p><p>prensa e em todo o âmbito social. Contudo, a mobilização não estava</p><p>restrita a um mero exercício discursivo. O ativismo social em torno da</p><p>guerra também se canalizou por meio da mobilização da solidariedade,</p><p>com diversas iniciativas humanitárias e voluntariado sanitário e militar.</p><p>Desde o início do conflito, diferentes atores e setores sociais se dedi-</p><p>caram a fornecer ajuda humanitária a viúvas, órfãos, refugiados e sol-</p><p>dados feridos na guerra, complementando as ações similares desenvol-</p><p>vidas por comunidades de imigrantes das nações beligerantes. Muitas</p><p>dessas atividades solidárias foram impulsionadas por uma gama de insti-</p><p>tuições preexistentes ao conflito. Sem dúvida, a tragédia europeia tam-</p><p>bém revigorou um renovado impulso associativo, derivado da aparição</p><p>de várias organizações de alcance nacional, especificamente dedicadas</p><p>a diminuir o sofrimento em grande escala provocado pela guerra total.</p><p>As primeiras reações solidárias após a eclosão do conflito prova-</p><p>velmente vieram das elites, acostumadas a passar o verão na Europa</p><p>88. RINKE, op. cit., p. 120.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 56 8/14/2019 17:35:40</p><p>57</p><p>como parte de uma rotina ligada à reafirmação de seu status social. De</p><p>fato, boa parte de sua identidade de classe residia nas longas estadias na</p><p>Europa, especialmente em Paris, e no convívio com seus círculos so-</p><p>ciais e intelectuais.89 Havia muitos latino-americanos que, desde o final</p><p>do século XIX, tinham formado uma colônia quase estável na capital</p><p>francesa. Nas vésperas da guerra, residiam nela cerca de 4.200 latino-</p><p>-americanos, com predomínio de brasileiros e, em segundo lugar, de</p><p>argentinos.90 Quando a guerra estourou, muitos argentinos iniciaram</p><p>o retorno à pátria, embora fossem mais numerosos os que permane-</p><p>ceram na Europa, se organizando para reunir fundos para auxiliar civis</p><p>e soldados feridos. Talvez o resultado mais marcante dessas atividades</p><p>tenha sido a inauguração do Hospital Argentino em Paris, um edifício</p><p>de sete andares com 150 leitos, com uma “grande sala de cirurgia, sala</p><p>de radiografia, de esterilização, farmácia, odontologia etc. […] instala-</p><p>do segundo as mais rigorosas exigências de higiene, de conforto e da</p><p>ciência médica”. Registrado como Hospital Auxiliar nº 108, foi classi-</p><p>ficado pelas autoridades militares francesas como “hospital de evacua-</p><p>ção de primeira classe”. A ajuda solidária também se concretizou com a</p><p>compra de trens-ambulância, manutenção de instalações para soldados</p><p>convalescentes ou mutilados e apoio a viúvas e órfãos.91 Uma estimativa</p><p>conservadora da contribuição material para a causa dos Aliados — que</p><p>não contabiliza as doações efetuadas pela colônia argentina residente na</p><p>França e nem aquelas destinadas a outros países da Tríplice Entente —</p><p>estimava que, em meados de 1917, a sociedade argentina havia enviado à</p><p>89. LOSADA, Leandro. La alta sociedad en la Buenos Aires de la Belle Époque. Buenos Aires: Siglo Veintiu-</p><p>no Editora Iberoamericana, 2008, p. 151-166.</p><p>90. Na década de 1920, os argentinos formariam a colônia majoritária. STRECKET, Jens. Latin Ame-</p><p>ricans in Paris, 1870-1940. A statistical analysis. Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas / Anuario de Histo-</p><p>ria de América Latina, n. 49, 2012, p. 193-194.</p><p>91. SUX, Alejandro. Los voluntarios de la libertad. Contribución de los latino-americanos a la causa</p><p>de los Aliados. París : Ediciones Literarias, 1918, p. 43-49. Liste des Hôpitaux du Gouvernement Militaire</p><p>de Paris, complémentaire, auxilliaires, bénevoles. Disponível em: Acesso: 3 nov. 2018.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 57 8/14/2019 17:35:40</p><p>58</p><p>França cerca de 15 milhões de francos, uma cifra que colocou o país em</p><p>terceiro lugar dentre os doadores americanos, atrás dos Estados Unidos</p><p>e Canadá.92</p><p>Além das ações de solidariedade implantadas pela colônia argentina</p><p>na França, outras foram realizadas na Argentina para contribuir com</p><p>a população civil belga. O “martírio da Bélgica” comoveu profunda-</p><p>mente a sociedade argentina, que, entre outros empreendimentos, co-</p><p>laborou com a Comissão de Socorro da Bélgica (Commission for Relief</p><p>of Belgium), liderada por Herbert Hoover.93 O ramo argentino dessa en-</p><p>tidade transnacional enviou à Bélgica mais de vinte navios carregados</p><p>com cereais, roupas e conservas,94 resultantes de arrecadações que não</p><p>apenas envolviam os setores ricos da sociedade, mas também incluíam</p><p>cidadãos comuns e multidões anônimas, evidenciando que o impacto</p><p>da Grande Guerra, longe de ter um escopo restrito, envolvia a socieda-</p><p>de como um todo.</p><p>Em termos gerais, a ajuda humanitária da Argentina tendia a se basear</p><p>na identificação com a causa de um dos lados beligerantes e contribuir</p><p>com seu esforço de guerra, mais do que refletir uma solidariedade com as</p><p>vítimas da guerra. Se tomarmos como referência a informação fornecida</p><p>pelos meios de comunicação de massa, a maior parte da cooperação ma-</p><p>terial da Argentina teria ido para as nações aliadas, enquanto a destinada à</p><p>ajuda</p><p>dos Impérios Centrais teria sido comparativamente menor.</p><p>A cooperação argentina não se limitou à contribuição material e pe-</p><p>cuniária para as vítimas do conflito, mas também assumiu a forma de</p><p>voluntariado de profissionais da saúde que colocaram suas habilidades</p><p>técnicas a serviço dos hospitais militares europeus. Participaram dessa</p><p>colaboração renomados médicos, como Enrique Finochietto e Pedro</p><p>92. SUX, op. cit., p. 49-50.</p><p>93. HERTOG, Johan den. The Commission for Relief in Belgium and the political diplomatic history</p><p>of the First World War. Diplomacy & Statecraft, vol. 21, n. 4, 2010.</p><p>94. Acción de los belgas. In: GERCHNUOFF, Alberto; BILIS, Aarón (eds.). El álbum de la victoria.</p><p>Buenos Aires: E. Danon, 1920, s/p.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 58 8/14/2019 17:35:40</p><p>59</p><p>Chutro,95 assim como numerosos civis argentinos sem treinamento na</p><p>área de saúde que residiam na Europa no início da guerra e ofereceram</p><p>sua colaboração como enfermeiros ou maqueiros.</p><p>Além de uma mobilização humanitária, a solidariedade com a Euro-</p><p>pa no conflito também envolveu uma faceta militar. Ao longo da Gran-</p><p>de Guerra, várias centenas de latino-americanos se alistaram como</p><p>voluntários nos exércitos europeus, em muitos casos sem conexões de</p><p>nacionalidade com os países, destacando a natureza transnacional do</p><p>recrutamento. O cálculo do número preciso de argentinos inscritos no</p><p>serviço dos beligerantes europeus resultaria em uma árdua tarefa, tan-</p><p>to pela precariedade das fontes disponíveis quanto pelo duplo perten-</p><p>cimento de alguns indivíduos devido às tensões entre o jus sanguinis e</p><p>o jus soli. Os estados europeus, segundo o jus sanguinis, concediam au-</p><p>tomaticamente a cidadania aos filhos de seus cidadãos nascidos no ex-</p><p>terior, enquanto o Estado argentino, de acordo com o jus soli, os consi-</p><p>derava cidadãos de acordo com seu local de nascimento. As estimativas</p><p>parciais de voluntários nem sempre refletem essa distinção e contabili-</p><p>zam tanto os europeus de segunda geração nascidos argentinos, que se</p><p>mobilizaram em conformidade com seus deveres cívicos, como aqueles</p><p>que não tinham laços familiares com os Estados que serviam.</p><p>A trajetória desses argentinos a serviço dos exércitos beligerantes</p><p>podia ser acompanhada diariamente na imprensa durante os anos de</p><p>guerra, através de notícias sobre partidas, condecorações ou morte nos</p><p>campos de batalha. Fica claro, muitas vezes, que a decisão de mobilizar-</p><p>-se militarmente era inspirada pela lealdade à terra de seus ancestrais,</p><p>mas muitas trajetórias individuais não refletiam essa motivação. Nesses</p><p>casos, como se observa em alguns testemunhos coletados por vários</p><p>correspondentes de guerra, outros fatores operaram, como a francofi-</p><p>lia generalizada a que já aludimos, o desejo de aventura (especialmen-</p><p>te entre os alistados na aviação) e uma exaltação da violência como</p><p>95. SUX, op. cit., p. 34-42.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 59 8/14/2019 17:35:40</p><p>60</p><p>purificadora dos males da modernidade.96 Independentemente da causa</p><p>do alistamento, esse foi, sem dúvida, o sinal mais dramático e extremo</p><p>da solidariedade da sociedade argentina com a Europa em guerra.</p><p>Até 1917, a mobilização da sociedade argentina baseava-se na pola-</p><p>rização cultural entre “aliadófilos” e “germanófilos” e na percepção da</p><p>Grande Guerra como um evento distante, que suscitava paixões, ade-</p><p>sões e solidariedades, mas que, em última análise, não dizia respeito di-</p><p>retamente à Argentina. Consequentemente, esses antagonismos essen-</p><p>cialmente culturais eram vistos como perfeitamente compatíveis com a</p><p>neutralidade oficial adotada pelo Estado.</p><p>Esta situação se modificou radicalmente em 1917, como resultado de</p><p>três episódios bélicos. Em primeiro lugar, em janeiro daquele ano, os</p><p>Estados Unidos romperam relações diplomáticas com a Alemanha em</p><p>consequência da declaração de guerra submarina irrestrita; em abril,</p><p>entraram em guerra no lado aliado. A entrada na contenda foi acom-</p><p>panhada pelo lançamento de uma campanha de pressões diplomáticas</p><p>e econômicas sobre as nações latino-americanas a fim de estimular ali-</p><p>nhamentos com o novo rumo da política externa norte-americana, as-</p><p>sim como o reforço do apelo ao pan-americanismo. Como resultado,</p><p>nos meses seguintes, os estados do subcontinente abandonaram a neu-</p><p>tralidade para proceder à ruptura das relações com o Império Alemão</p><p>ou até mesmo à declaração de guerra contra aquele país. Somente Ar-</p><p>gentina, México, Chile, Venezuela, Colômbia e Paraguai mantiveram-se</p><p>neutros até o final da Grande Guerra.97</p><p>Em segundo lugar, a passagem dos Estados Unidos à beligerância</p><p>coincidiu com o torpedeamento de três navios argentinos — Monte</p><p>96. REILLY, Juan José de Soiza. Fray Mocho en la guerra. La aviación bélica. Aviadores argentinos en el</p><p>ejército francês, artigo datado em Paris de 22 de janeiro de 1916 e publicado em Fray Mocho, n. 201, 3 de</p><p>março de 1916; SUX, op. cit., p. 103, 120-121, 187-199; RIBAS, Federico. Desde París. Un aviador argentino</p><p>en la guerra. Caras y Caretas, n. 902, 15 de janeiro de 1916.</p><p>97. COMPAGNON, Olivier. Entrer en guerre? Neutralité et engagement de l’Amérique latine entre</p><p>1914 et 1918. Relations Internationales, n. 137, 2009, p. 31-43.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 60 8/14/2019 17:35:40</p><p>61</p><p>Protegido, Oriana e Toro — que desencadearam um incidente diplomá-</p><p>tico entre o governo argentino e o Império Alemão. Este rapidamente</p><p>respondeu às reivindicações argentinas e deu satisfação total às suas de-</p><p>mandas. Entretanto, esses episódios encorajaram manifestações popu-</p><p>lares com altas doses de germanofobia e violência.</p><p>Por fim, no âmbito da campanha pan-americanista, o governo dos</p><p>Estados Unidos tentou se aproveitar politicamente dos incidentes em</p><p>torno do naufrágio dos navios argentinos. Para isso, divulgou publica-</p><p>mente uma série de telegramas enviados pelo ministro plenipotenciário</p><p>da Alemanha na Argentina, o conde Karl von Luxburg, às autoridades</p><p>de seu governo. As mensagens foram interceptadas e decifradas pelo</p><p>serviço de inteligência britânico, e o governo dos EUA decidiu divulgá-</p><p>-las na imprensa antes de notificar as autoridades argentinas. Nesses te-</p><p>legramas, enviados a Berlim em plena negociação dos torpedeamentos,</p><p>Luxburg recomendou que continuasse com a guerra submarina irres-</p><p>trita contra a Argentina, mas “sem deixar vestígios”, e qualificou Ho-</p><p>norio Pueyrredón, encarregado do Ministério das Relações Exteriores,</p><p>de “notório asno e anglófilo”. Finalmente, insinuou a existência de um</p><p>acordo verbal com o Presidente Hipólito Yrigoyen para evitar a futura</p><p>entrada de navios argentinos na zona de exclusão estabelecida pela Ale-</p><p>manha.98 A publicação desses documentos confidenciais na imprensa</p><p>argentina desencadeou um escândalo de grandes proporções, que mar-</p><p>cou um momento decisivo na mobilização da sociedade.</p><p>De fato, a nova crise diplomática, conhecida como “affaire Luxburg”,</p><p>significou a internalização e a redefinição da Grande Guerra, a quebra</p><p>do consenso neutralista, até então hegemônico, e a emergência de no-</p><p>vos antagonismos sociais.99 O nacionalismo invadiu os debates públicos</p><p>98. WEINMANN, op. cit., p. 129-130.</p><p>99. Tomamos a expressão “consenso neutralista” de Olivier Compagnon, que define dessa forma a</p><p>política exterior das nações latino-americanas entre 1914 e 1917 (COMPAGNON, 2009, op. cit.). Aqui,</p><p>aplicamos o conceito à leitura hegemônica da política externa argentina frente ao conflito que impe-</p><p>rou na sociedade durante esse período.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 61 8/14/2019 17:35:40</p><p>62</p><p>e deu origem à luta pela representação — exclusiva e excludente — da</p><p>argentinidade. Ao afetar os interesses e a honra da nação, os incidentes</p><p>com a Alemanha trouxeram para mais perto uma guerra até então vista</p><p>como distante. Como um célebre intelectual havia advertido: “o que</p><p>antes foi emoção casual ou polêmica filosófica, de repente se tornou</p><p>— por vontade da Alemanha — um conflito moral e episódio da nossa</p><p>própria história”.</p><p>100 A dicotomia “aliadófilos” e “germanófilos”, que ha-</p><p>via dominado os debates públicos até 1917, foi sobreposta por uma nova</p><p>clivagem que separava os chamados “rupturistas” (partidários da ruptu-</p><p>ra de relações com a Alemanha) dos “neutralistas”.</p><p>Esses dois pares dicotômicos foram usados, frequentemente, como</p><p>sinônimos no calor das disputas cotidianas. Embora a correspondên-</p><p>cia entre “aliadófilos” e “rupturistas” estivesse correta, o mesmo não</p><p>aconteceu com a assimilação de “germanófilos” a “neutralistas”. Em-</p><p>bora os germanófilos em sentido estrito — isto é, os admiradores do</p><p>Império Alemão — promovessem a neutralidade porque sabiam que,</p><p>no contexto argentino, essa política externa seria a mais benéfica para a</p><p>Alemanha, nem todos os defensores da neutralidade eram germanófi-</p><p>los. Pelo contrário, nesse campo coexistiram correntes políticas e ideo-</p><p>lógicas muito diversas, que incluíam representantes tanto do partido no</p><p>poder quanto da oposição, convencidos da pertinência da neutralidade,</p><p>para além de anarquistas, socialistas internacionalistas e católicos, que</p><p>se identificavam com o pacifismo promovido pelo papado. No entanto,</p><p>nas discussões em torno da política externa, o termo “germanófilo” e</p><p>sua assimilação com o neutralismo adquiriram uma forte carga nega-</p><p>tiva, próxima do insulto político. O escritor e jornalista Alberto Ger-</p><p>chunoff sintetizou essa assimilação depreciativa com um neologismo:</p><p>“neutrófilo”.101 A adesão à neutralidade foi considerada uma admissão</p><p>100. ROJAS, Ricardo. La voz del atalaya. La guerra de las naciones. Buenos Aires: La Facultad, 1924</p><p>[1917], p. 38.</p><p>101. GERCHNUOFF, Alberto. Los neutrófilos. La Nota, n. 120, 24 de novembro de 1917.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 62 8/14/2019 17:35:40</p><p>63</p><p>tácita e vergonhosa de germanofilia, uma hesitação perante o agressor</p><p>alemão; em suma, uma traição à nação.</p><p>Diante desses ataques, os neutralistas responderam com represen-</p><p>tações igualmente arbitrárias e simplistas de seus adversários. Em sua</p><p>perspectiva, postular o abandono da neutralidade implicava uma cessão</p><p>indigna diante das pressões aliadas e uma expressão do caráter entre-</p><p>guista de seus partidários. Assim, o “aliadofilismo intervencionista é ba-</p><p>sicamente uma soma de paixões e interesses estrangeiros [assim como]</p><p>o neutralismo é uma explosão do nacionalismo viril e do argentinis-</p><p>mo excludente e patriótico”.102 Enquanto os rupturistas eram identifi-</p><p>cados com as elites afrancesadas rastacueras das cidades cosmopolitas,</p><p>em particular da capital da república, os neutralistas associavam-se ao</p><p>povo e ao interior do país, reservatório por excelência da “argentinidade</p><p>pura”.103</p><p>Essa nova polarização atravessou a sociedade e conduziu a uma ver-</p><p>dadeira explosão associativa. Em todos os círculos sociais — universi-</p><p>dades, escolas secundárias, associações profissionais, clubes, biblio-</p><p>tecas populares, sociedades de bairro — havia divisões internas entre</p><p>os rupturistas e os neutralistas, que dificultavam a convivência social.</p><p>Além dessas divisões em associações preexistentes à guerra, surgiram,</p><p>em 1917, muitas organizações que tinham como objetivo tomar uma</p><p>posição clara a respeito da política externa do governo argentino e lu-</p><p>tar para que as autoridades a adotassem. Entre as muitas associações</p><p>que surgiram no calor desta situação, temos como exemplos: o Comi-</p><p>tê de Estudantes Pró-Aliados, o Centro de Trabalhadores Pró-Aliados,</p><p>o Comitê de Comércio Pró-Ruptura das Relações com a Alemanha, o</p><p>Comitê de Vendedores de Jornais Pró-Ruptura de Relações com a Ale-</p><p>manha, a Associação Desportiva Pró-Neutralidade, o Comitê Patriótico</p><p>102. COLMO, Alfredo. Los Estados Unidos y la neutralidad argentina. Mi neutralismo. Buenos Aires:</p><p>Renovación, 1918, p. 49–50.</p><p>103. COLMO, Alfredo, op. cit., p. 79, 112; BIEDMA, Ernesto Vergara. Guerra de mentiras: el discurso de</p><p>Wilson y el peligro yanqui. Buenos Aires: Talleres Gráficos de L. J. Rosso, 1917, p. 43–44, 47.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 63 8/14/2019 17:35:41</p><p>64</p><p>Pró-Neutralidade dos Funcionários do Correios e Telégrafos, o Comi-</p><p>tê Universitário Pró-Neutralidade e o Comitê de Estudantes Secundá-</p><p>rios Pró-Neutralidade. Estas associações, muitas vezes de natureza lo-</p><p>cal, tenderam a ser absorvidas por duas entidades nacionais. A maioria</p><p>dos rupturistas se reuniu no Comitê Nacional da Juventude, enquanto</p><p>uma grande parte das organizações neutralistas se uniu à Liga Patrióti-</p><p>ca Argentina Pró-Neutralidade. Ambas as organizações tinham em sua</p><p>comissão executiva a participação ativa de intelectuais e profissionais</p><p>destacados.104</p><p>Tanto as grandes cidades como as pequenas localidades em todo o</p><p>território argentino assistiram, cotidianamente, a massivos atos públicos</p><p>em suas ruas e praças. No caso de Buenos Aires, registraram-se mani-</p><p>festações nas ruas que reuniram cerca de 100.000 pessoas, quase 10% da</p><p>população da cidade.105 A heterogeneidade social nesses atos — que reu-</p><p>niam setores diversos, tanto nativos quanto estrangeiros, intelectuais e</p><p>dirigentes sociais, além de simples cidadãos — ficava resumida à identi-</p><p>dade de neutralista ou de aliadófilo, reforçada por uma grandeza de sím-</p><p>bolos: marchas patrióticas interpretadas por orquestras (o onipresente</p><p>Hino Nacional, além da Marselhesa, da Marcha Real, da Brabançonne, do</p><p>God save the King e do Hino Garibaldino no caso dos aliadófilos); bandeiras</p><p>(a argentina em ambos os casos, as das nações aliadas entre os ruptu-</p><p>ristas e a bandeira branca da paz entre os neutralistas); e cartazes com</p><p>palavras de ordem alusivas à mobilização. Os apaixonados discursos em</p><p>defesa da neutralidade ou pró-ruptura com a Alemanha pronunciados</p><p>pelos oradores contribuíam para estimular as solidariedades coletivas.</p><p>Como mencionado acima, a invocação da nação foi a força motriz</p><p>dos alinhamentos em torno da política externa do Estado argentino</p><p>neste período crítico e, por isso, foi base destas manifestações de massa</p><p>104. Sobre o fenômeno associativo nessa conjuntura e as atividades dessas organizações, ver: TATO,</p><p>op. cit., capítulo 6.</p><p>105. Tercer Censo…, op. cit., vol. II, p. 3. A cidade de Buenos Aires contava, em 1914, com 1.575.814 habi-</p><p>tantes, dos quais 49% eram estrangeiros.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 64 8/14/2019 17:35:41</p><p>65</p><p>que inundaram o espaço público. Apesar de apresentar diagnósticos di-</p><p>vergentes sobre questões internacionais e propor direções diplomáticas</p><p>opostas, tanto neutralistas como rupturistas coincidiram no apelo ao</p><p>nacionalismo para justificar suas respectivas posições referentes à guer-</p><p>ra. De fato, ambos se referiam ao destino manifesto da Argentina na</p><p>América Latina. Do ponto de vista do primeiro, a neutralidade garantia</p><p>a limitação do avanço do pan-americanismo norte-americano e, con-</p><p>sequentemente, a manutenção da liderança argentina na região. Por</p><p>essa razão, eles costumavam elogiar a política externa promovida pelo</p><p>presidente Yrigoyen. Para os rupturistas, por outro lado, o alinhamento</p><p>com os Aliados permitiria à Argentina ocupar uma posição vantajosa na</p><p>arena internacional, durante e após o conflito. Essa estratégia também</p><p>neutralizaria o avanço do Brasil na América do Sul, uma vez que se per-</p><p>cebia a entrada do país vizinho na guerra como uma eventual ameaça</p><p>ao status internacional da Argentina no subcontinente.106</p><p>Por outro lado, ambos os grupos mostraram adesão ou rejeição de</p><p>certas representações transnacionais da identidade argentina. Os ruptu-</p><p>ristas exibiram uma sólida francofilia à qual, em alguns casos, se acres-</p><p>centou um incipiente pan-americanismo, expressão do boom global do</p><p>“momento Wilson”.107 Consequentemente, os Estados Unidos come-</p><p>çaram a ser celebrados como um paradigma de liberdade e como um</p><p>poder libertador dos povos oprimidos, revisando os preconceitos arrai-</p><p>gados sobre essa nação e valorizando as vantagens de uma cooperação</p><p>hemisférica.108 Os neutralistas, como vimos, tenderam a rejeitar essas</p><p>106. COLMO, op. cit., p. 75; GERCHUNOFF, Alberto.</p><p>Conferencia de Dn. Alberto Gerchunoff en el Char-</p><p>mant-Cinema de Santa Fe en la velada pro-huérfanos belgas del 9 de junio de 1918. Santa Fe: Imprenta de J. F.</p><p>Ribles, p. 8-9.</p><p>107. MANELA, Erez. The Wilsonian moment: self-determination and the international origins of an-</p><p>ticolonial nationalism. Nova York: Oxford University Press, 2007, p. 6. Se alude, com essa expressão,</p><p>à popularidade que desfrutou o presidente norte-americano Woodrow Wilson entre o ingresso dos</p><p>Estados Unidos na guerra e a assinatura do Tratado de Versalhes, fundada em seus catorze pontos e,</p><p>especialmente, na afirmação do direito à autodeterminação dos povos.</p><p>108. COMPAGNON, Olivier. L’adieu à l’Europe. L’Amérique latine et la Grande Guerre. Paris: Fayard,</p><p>2013, p. 326-328.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 65 8/14/2019 17:35:41</p><p>66</p><p>identificações e adotaram um discurso anti-imperialista. Mesmo assim,</p><p>era comum que assimilassem uma identidade transnacional alternativa,</p><p>o pan-hispanismo, baseada em fatores históricos e culturais. A reconsi-</p><p>deração da antiga metrópole havia começado por volta de 1898, após</p><p>a guerra hispano-cubano-americana, junto com o surgimento do “pri-</p><p>meiro anti-imperialismo latino-americano”.109 Não é por acaso que a re-</p><p>cuperação da antiga Pátria Mãe foi reativada durante a Grande Guerra,</p><p>sendo postulada como modelo, em uma época em que a neutralidade</p><p>estava em questão – a Espanha havia adotado uma posição neutralista</p><p>ante o conflito, que persistiria até o fim da guerra, apesar das vicissitu-</p><p>des que a afetaram.</p><p>Em suma, as duas correntes que dividiram a opinião pública durante</p><p>essa fase crítica da Grande Guerra fizeram parte de um clima de efer-</p><p>vescência cultural. Como nas nações beligerantes, significou a coroação</p><p>do nacionalismo e deu novo impulso aos elementos ideológicos que</p><p>eram parte integrante de um substrato nacionalista generalizado, forte-</p><p>mente enraizado na cultura política da Argentina.</p><p>O estudo da mobilização da sociedade argentina frente às vicissi-</p><p>tudes da Primeira Guerra Mundial, que descrevemos nas páginas an-</p><p>teriores, permite explorar a divisão entre neutros e beligerantes, pois</p><p>demonstra que um Estado formalmente neutro pode registrar uma</p><p>forte beligerância no plano social e cultural. Essa afirmação não impli-</p><p>ca igualar beligerantes e neutros, mas apenas reconhecer que esses úl-</p><p>timos também construíram experiências sociais pujantes em torno de</p><p>uma guerra da qual estavam oficialmente à margem. Por outro lado, o</p><p>caso argentino confirma a natureza global do conflito e a profundidade</p><p>de seus impactos locais. Longe de se limitar ao nível mais óbvio — a</p><p>economia, afetada pelas farpas da guerra econômica entre as potências</p><p>— o conflito repercutiu fortemente em outras dimensões da vida social,</p><p>109. TERÁN, Oscar. El primer anti-imperialismo latinoamericano. En busca de la ideología argentina.</p><p>Buenos Aires: Catálogos, 1986.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 66 8/14/2019 17:35:41</p><p>67</p><p>como um olhar a partir da história social e cultural da guerra permite</p><p>vislumbrar. Afinidades eletivas baseadas em laços demográficos ou pro-</p><p>fissionais com os beligerantes e representações de identidade nacional</p><p>enraizadas em configurações identitárias transnacionais mostram a in-</p><p>tensidade das conexões e interações culturais que a sociedade argentina</p><p>estabeleceu com um mundo em guerra, bem como as particularidades</p><p>de sua resposta aos processos em desenvolvimento a nível global. Além</p><p>disso, explicam, pelo menos em parte, as reações de uma sociedade que</p><p>não tinha interesses diretos no conflito, nem alianças que a uniam aos</p><p>beligerantes, e que, no entanto, mobilizou-se intensamente em tor-</p><p>no dele.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BERTONI, Lilia Ana. Patriotas, cosmopolitas y nacionalistas. La construcción de la na-</p><p>cionalidad argentina a fines del siglo XIX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econó-</p><p>mica, 2001.</p><p>BIEDMA, Ernesto Vergara. Guerra de mentiras: el discurso de Wilson y el peligro</p><p>yanqui. Buenos Aires: Talleres Gráficos de L. J. Rosso, 1917.</p><p>COLMO, Alfredo. Los Estados Unidos y la neutralidad argentina. Mi neutralismo. Bue-</p><p>nos Aires: Renovación, 1918.</p><p>COLOMBI, Beatriz. Camino a la meca. Escritores hispanoamericanos en París (1900-</p><p>1920). In: MYERS, Jorge (ed.). Historia de los intelectuales en América Latina. Buenos</p><p>Aires: Katz Ediciones, vol. 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Assim interpelava a audiência</p><p>um Rui Barbosa em insólita campanha presidencial em março de 1919,</p><p>que tinha o oponente Epitácio Pessoa, durante todo o período eleitoral,</p><p>presente na Conferência de Paz de Versalhes111.</p><p>Alguns anos antes, às vésperas da Grande Guerra, mas distante mi-</p><p>lhares de quilômetros das tensões balcânicas, Lobato havia, de fato, de-</p><p>lineado o tal Jeca. Preocupado em apontar o que entendia como das</p><p>piores mazelas de seu país, o escritor assim descrevia o brasileiro habi-</p><p>tante do interior, representado no conto de mesmo nome, que depois</p><p>faria parte da coletânea Urupês:</p><p>Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha,</p><p>sem ânimo de fazer coisa nenhuma [...]. Jeca só queria beber pinga e espi-</p><p>char-se ao sol no terreiro. [...] Trabalhar não era com ele. Perto morava um</p><p>110. Um versão anterior, mais breve e incipiente, deste texto, foi publicada em 2014 no volume Inter-</p><p>national Security: A European-South American Dialogue e apresentada no Seminário “Tempos de Violên-</p><p>cia”, organizado em 2018 na Casa de Rui Barbosa pela PUC/RJ e pela UFRJ. Agradeço imensamente</p><p>a leitura atenta e os comentários construtivos feitos por Sílvia Correia, Felipe Loureiro, Martín Bergel</p><p>e Nelly De Freitas.</p><p>111. BARBOSA, Rui. Conferência A questão social e política no Brasil - 20 mar. 1919. In: BARBOSA,</p><p>Rui, 1849-1923. Pensamento e ação de Rui Barbosa / Organização e seleção de textos pela Fundação Casa</p><p>de Rui Barbosa. – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 1999, p. 367.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 71 8/14/2019 17:35:41</p><p>72</p><p>italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro.</p><p>Por que Jeca não fazia o mesmo?</p><p>Lobato tornar-se-ia mais popularmente conhecido pelo conjunto</p><p>educativo de sua obra de livros infantis, mas também fora adepto fer-</p><p>voroso de ideais eugênicos de melhoramento da raça, infamando os</p><p>mestiços brasileiros e idealizando os europeus, como nas linhas acima.</p><p>Anos depois de publicar o inventário fúnebre que representava o Jeca</p><p>Tatu, iria mesmo aderir à Sociedade Eugênica de São Paulo112.</p><p>Também contemporâneo de Barbosa e Lobato, o poeta e roman-</p><p>cista Menotti Del Picchia, por sua vez, oporia o Jeca Tatu a seu Juca</p><p>Mulato, publicado em 1917. Nas mãos de Del Picchia, o homem do inte-</p><p>rior do Brasil – o tal Juca – seria a antítese do Jeca, devendo ser caracte-</p><p>rizado pelo que pensava, sentia e sonhava. Era personagem complexa,</p><p>profunda, que dialogava visceralmente com uma muito mais rica repre-</p><p>sentação do interior do país; um autêntico herói romântico brasileiro,</p><p>tomando a mesma mestiçagem já referida como trunfo. Ainda para Del</p><p>Picchia, a razão da oposição entre o Jeca de 1914 e o Juca de 1917 era cla-</p><p>ra: o impacto da Primeira Guerra Mundial. O conflito teria provocado</p><p>uma renovação na forma de pensar, nas estruturas culturais e políticas</p><p>da sociedade brasileira. Para o poeta, teria sido esse o momento quando</p><p>ficara claro o fim da dicotomia que existia no Brasil: entre uma zona</p><p>urbana litorânea, protagonista, voltada para a Europa e outra rural, jo-</p><p>gada erroneamente às sombras, ao atraso, à ignorância e à falta de per-</p><p>sonalidade113.</p><p>112. FERES JUNIOR, João; NASCIMENTO, Leonardo Fernandes; EISENBERG, Zena Winona. Mon-</p><p>teiro Lobato e o politicamente correto. Dados, Rio de Janeiro, v. 56, n. 1, p. 81, Mar. 2013. Ver, também:</p><p>HABIB, Paula Arantes Botelho Briglia. Eis o mundo encantado que Monteiro Lobato criou: raça, eugenia e</p><p>nação. 2003. 175 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia</p><p>e Ciencias Humanas, Campinas, SP. Disponível em: . Acesso em: 13/02/19.</p><p>113. Juca Mulato tanto lançava o nome de Del Picchia nacionalmente quanto criava um símbolo do</p><p>brasileiro mestiço, que rapidamente seria instrumentalizado no terreno político. Sobre a obra, ver:</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 72 8/14/2019 17:35:41</p><p>73</p><p>Rui Barbosa usava a imagem do Jeca, tomada por seus opositores polí-</p><p>ticos como síntese do Brasil e “conjunto de todos os estigmas de calaçaria</p><p>e da estupidez”, para exatamente atacar o que chamava de “politicalha”</p><p>de “escaladores do poder”. Barbosa pretendia demonstrar que não se tra-</p><p>tava a sociedade brasileira de algo cadaverizado, mas de um conjunto hu-</p><p>mano com muito de “majestade” e a servir de inspiração. Uma imagem</p><p>de riqueza e complexidade próxima à de Del Picchia114. Finalmente, sua</p><p>derrota no pleito de 1919 acabou ilustrando duas realidades rondando a</p><p>elite política brasileira responsável pela inserção internacional do país.</p><p>Sobre a primeira, em um país de 30 milhões de habitantes, ser eleito</p><p>estando em plena Conferência de Versalhes, e por pouco menos de 250</p><p>mil votos, mostrava anedoticamente a grande fraqueza da incipiente</p><p>democracia representativa brasileira. Para a segunda, a figura do Jeca</p><p>e a idealização da Europa continuavam sendo as métricas de leitura da</p><p>sociedade por sua elite, em uma teimosa insistência em mantê-la à sua</p><p>mercê. Nesse contexto, a “majestade” e a identidade nacional que re-</p><p>presentavam o Juca, além de seu potencial em alinhar o Brasil a ou-</p><p>tras sociedades e culturas que também conheciam a mestiçagem, que</p><p>tinham passado colonial e eram igualmente marginalizadas no sistema</p><p>internacional de Estados, continuavam a passar longe das estratégias e</p><p>agendas de articulação para a elaboração de políticas públicas e para a</p><p>projeção internacional do pós-guerra.</p><p>Esse era o desenrolar da vida política nacional no momento em</p><p>que uma nova estratégia de inserção exterior se fazia urgentemente</p><p>CAMPOS, Maria José. Versões modernistas da democracia racial em movimento: - estudo sobre as trajetó-</p><p>rias e as obras de Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo até 1945. 2007. Tese (Doutorado em Antro-</p><p>pologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São</p><p>Paulo, 2007. doi:10.11606/T.8.2007.tde-19032008-104427. Acesso em: 2019-01-21, p. 37-47. SEMANA DE</p><p>ARTE MODERNA. Produção TV Cultura. São Paulo, 2002. Disponível em: . Acesso em 21/01/19. Sobre o moralismo de Lobato, o nacionalismo</p><p>de Del Picchia, os efeitos da guerra e a Semana de 22, ver BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura</p><p>Brasileira. 34ª ed., São Paulo, Cultrix, 1996,</p><p>p. 215-217, 331-337 e 367-368.</p><p>114. BARBOSA, Rui. op. cit., p. 368-369.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 73 8/14/2019 17:35:41</p><p>74</p><p>necessária. Mesmo se a diplomacia das grandes potências, através de</p><p>personalidades como o americano James McDonald, atuando nos co-</p><p>mitês de planejamento do pós-guerra, já antecipava que “o pedido por</p><p>igualdade absoluta entre todos os Estados soberanos não seria alcançá-</p><p>vel”115, acabou tratando-se a Liga das Nações da primeira experiência de</p><p>prática do liberalismo político internacional, que se manifestou através</p><p>da criação da diplomacia multilateral. Como lembra Mark Mazower,</p><p>a concepção da Liga inovava tanto pela criação de uma instituição de</p><p>aspiração universal, capaz de unir todos os sistemas internacionais re-</p><p>gionais existentes até então, quanto pela divisão tripartite dos poderes,</p><p>estruturando uma “democracia parlamentar”. Para Mazower, um des-</p><p>ses poderes seria o equivalente do Legislativo, com uma câmara alta,</p><p>o Conselho, e uma câmara baixa, a Assembléia116, o que Paul Kennedy</p><p>chamaria de “Parlamento da Humanidade” 117 e que exigiria uma nova</p><p>estratégia de ação, potencialmente de espírito parlamentar. De fato, ain-</p><p>da que tal transformação não tenha eliminado as assimetrias de poder,</p><p>nem mesmo um certo espírito de diplomacia imperial118, a nova dinâmi-</p><p>ca parlamentar da diplomacia criava oportunidades inéditas de inserção</p><p>e colaboração internacional, especialmente para potências médias e pe-</p><p>quenas caso conseguissem se associar de forma estável no tempo dentro</p><p>de tais “câmaras”.</p><p>Ao considerar as condições estruturais de distribuição de poder mi-</p><p>litar e econômico como relativas, e não absolutas, para medir inserção</p><p>115. RINKE, Stefan. Latin America and the First World War. Nova Iorque, Cambridge UP, 2017, p. 193.</p><p>116. MAZOWER, Mark. Governing the World. The History of an Idea. Londres: Allen Lane, 2012, p.</p><p>135-136.</p><p>117. KENNEDY, Paul. The Parliament of Man. The United Nations and the quest for world govern-</p><p>ment. Londres: Penguin Book, 2007.</p><p>118. Como lembra Akira Iriye, “a Primeira Guerra Mundial tinha infligido um dano irreparável à es-</p><p>trutura da diplomacia do imperialismo”, típica do XIX e da projeção de poder europeu. Ainda que tal</p><p>fato tenha estabelecido o contexto para entendermos as relações internacionais a partir da década de</p><p>1920, Iyiye também lembra que parte da elite japonesa continuou agindo dentro do enquadramento</p><p>da diplomacia do imperialismo (IRIYE, Akira. After Imperialism. The Search for a New Order in the Far</p><p>East (1921-1931). Cambridge, Harvard UP, 1965, p. 6-7).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 74 8/14/2019 17:35:41</p><p>75</p><p>internacional, este capítulo pretende debater algumas ideias, mas, so-</p><p>bretudo, lançar as bases de uma nova agenda de pesquisas sobre como</p><p>a elite política brasileira controlando o Catete e o Itamaraty teria lidado</p><p>com as novas oportunidades políticas oferecidas pela referida reestrutu-</p><p>ração das relações internacionais a partir de 1919. Com esse propósito, a</p><p>importância de uma análise das percepções sobre os rumos da socieda-</p><p>de brasileira no século XX e do impacto da Primeira Guerra sobre sua</p><p>inserção internacional através da História das Relações Internacionais,</p><p>que adotaremos aqui, é duplo. Ela permite dominar a complexidade</p><p>dos processos históricos não somente na construção e nas dinâmicas</p><p>das relações entre diferentes sociedades e culturas, mas também o im-</p><p>pacto sobre as conexões externas da complexidade inerente e interna a</p><p>essas próprias culturas, além dos jogos de escalas e de conflitos de tem-</p><p>pos e espaços119.</p><p>Considerando que a história das relações entre os beligerantes da</p><p>América Latina e a Primeira Guerra Mundial continua sendo um tema</p><p>pouco explorado120 e também mantendo o foco nas consequências po-</p><p>líticas das negociações de paz de 1919 para o Brasil no longo prazo, este</p><p>capítulo tentará, com a liberdade e os limites de uma primeira aproxi-</p><p>mação nessa perspectiva, identificar e comparar a estratégia que a elite</p><p>política nacional produziu para atuar no novo sistema multilateral mol-</p><p>dado no liberalismo internacionalista tanto quando de sua inauguração</p><p>na ordem internacional do pós-Versalhes (1919), como quando de seu</p><p>ressurgimento no pós-São Francisco (1945) e de seu descongelamento</p><p>no pós-Guerra Fria (1989).</p><p>119. Para mais detalhes sobre o enquadramento de análise da História das Relações Internacionais e</p><p>sobre os poderes e os limites dos tomadores de decisão, ver: FRANK, Robert (org.). Pour l’Histoire des</p><p>Relations Internationales. Paris, PUF, 2012, em particular, a Terceira Parte (Champs et Forces des Rela-</p><p>tions Internationales : Autonomie et Interdépendance), p. 291-472.</p><p>120. Há mais de uma década o historiador Olivier Compagnon vem apontando essas lacunas e incen-</p><p>tivando maiores estudos no tema (COMPAGNON, Olivier. Neutralité et engagement de l’Amérique</p><p>latine entre 1914 et 1918, Relations Internationales, n. 137/1, 2009, p. 31-33).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 75 8/14/2019 17:35:41</p><p>76</p><p>Trata-se de um ensaio propondo algumas provocações para uma</p><p>análise de longo prazo sobre tentativas e fracassos de uma estratégia de</p><p>não-alinhamento. Conjectura-se, assim, sobre as possibilidades e as con-</p><p>veniências em se criar uma nova comunidade de interesses nas relações</p><p>internacionais, buscando entender as origens do terceiro-mundismo no</p><p>longo prazo, ou o “prototerceiromundismo”, como assinalou Martín</p><p>Bergel em exercício recente e semelhante121.</p><p>O texto divide-se, assim, em uma primeira parte, analisando os fun-</p><p>damentos precedentes à reflexão e à ação da elite política brasileira em</p><p>Versalhes, seguida por uma parte preocupada diretamente com a ação</p><p>da delegação brasileira nas conferências de paz de 1919. Finalmente, o</p><p>texto caminha em direção a alguns esboços de conclusão antecedidos</p><p>por uma parte que analisa as estratégias de inserção política internacio-</p><p>nal no imediato pós-Segunda Guerra e por outra que propõe a mesma</p><p>análise no imediato pós-Guerra Fria.</p><p>NOVAS INTERROGAÇÕES PARA ANTIGAS RELAÇÕES</p><p>Enquanto Stefan Rinke rediscute a guerra de 1914-1918 como evento</p><p>global, combatendo a clássica perspectiva eurocêntrica e o nacionalis-</p><p>mo metodológico ao destacar a consciência latino-americana quanto</p><p>a uma interdependência mundial já nesse período122. Enquanto Olivier</p><p>Compagnon tem investido em uma melhor compreensão dos processos</p><p>históricos na América do Sul durante o conflito, em uma perspectiva</p><p>de história social e comparada entre Brasil e Argentina, ainda que res-</p><p>saltando a persistente raridade de trabalhos sobre o tema123. Enquan-</p><p>to pesquisadores como Luciana Fagundes têm estudado os impactos</p><p>da Primeira Guerra Mundial no cenário musical brasileiro, em uma</p><p>121. BERGEL, Martín. El oriente desplazado: los intelectuales y los orígenes del tercermundismo en la</p><p>Argentina. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2015, p. 16-18.</p><p>122. RINKE, Stefan. Latin America and the First World War. Nova Iorque: Cambridge UP, 2017.</p><p>123. COMPAGNON, Olivier. O Adeus à Europa: a América Latina e a Grande Guerra. Editora Rocco:</p><p>Rio de Janeiro, 2014.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 76 8/14/2019 17:35:41</p><p>77</p><p>perspectiva de história cultural124, novas outras fronteiras da historio-</p><p>grafia vêm sendo desenvolvidas para revisar trabalhos clássicos como</p><p>os de Bill Albert, Eugenio Garcia, Francisco Vinhosa e Clodoaldo Bue-</p><p>no. Esses últimos, enquanto pioneiros, acabaram dando prioridade aos</p><p>aspectos econômicos do conflito ou valorizando o fato diplomático, a</p><p>reduzida participação militar e as ambições sobre indenizações e sobre</p><p>o comércio internacional do café125. Tal estado da arte preocupa-se final-</p><p>mente pouco com o alheado e demasiado lento descolamento brasilei-</p><p>ro da diplomacia imperial do XIX no pós-Versalhes, sugerido neste texto</p><p>como central para entender como o Brasil se envolveu no conflito, cele-</p><p>brou a paz e, a partir dessa experiência, projetou-se internacionalmente</p><p>ao longo do século</p><p>história transnacional e política nacional.</p><p>Topoi, v. 15, n. 29, jul./dez. 2014, p. 650-673.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 8 8/14/2019 17:35:37</p><p>9</p><p>Nesse contexto, Antoine Prost e Jay Winter publicaram uma re-</p><p>visão da extensa produção historiográfica sobre o conflito, agrupan-</p><p>do-a em três gerações que se seguem e se entrelaçam. Em síntese, “a</p><p>primeira configuração explica a história pelas decisões dos atores; a</p><p>segunda pelo jogo das forças sociais; a última faz da cultura o motor</p><p>da história e encontra nela as suas explicações”6 . Essa divisão não dei-</p><p>xa de apresentar limites, reconhecidos pelos próprios autores, como</p><p>alguma concentração em uma produção historiográfica do hemisfério</p><p>norte, especialmente dos espaços anglófonos, francófonos e germa-</p><p>nófonos. Quanto da data do centenário da guerra, Winter apresen-</p><p>tou-nos uma quarta geração, a transnacional. Para o historiador, ela</p><p>assumiria como objeto fenômenos e escalas de análise que estão tanto</p><p>abaixo como acima do nível nacional, partindo-se do pressuposto que</p><p>se entende o conflito como total7. Interessa, para este livro, mapear</p><p>de que forma os debates propostos pelos autores dos capítulos enqua-</p><p>dram-se entre a terceira e a quarta gerações: a da cultura e a da pers-</p><p>pectiva transnacional.</p><p>Desde a guerra até aos anos 50, as histórias política, militar e di-</p><p>plomática dominaram a produção de conhecimento sobre o confli-</p><p>to. A Great War generation (a geração da Grande Guerra), protagoni-</p><p>zada por aqueles que viveram o conflito, promoveu uma abordagem</p><p>événementielle, procurando elucidar as origens da guerra e encontrar</p><p>os respectivos responsáveis. Trata-se, mas não exclusivamente, de</p><p>uma história sobre o oficial, marcada por trabalhos densos e técni-</p><p>cos, centrados no Estado e em seus líderes8. Na margem, mas de for-</p><p>ma considerável, proliferava a literatura de guerra produzida pelos</p><p>soldados.</p><p>6. PROST, Antoine; WINTER, Jay. op. cit, p. 47-48.</p><p>7. Winter, Jay. Historiography 1918-Today. In: DANIEL, et al. (Ed.). 1914-1918-online. . Freie Uni-</p><p>versität Berlin, Berlin 2014-11-11. DOI: 10.15463/ie1418.10498. Disponível em: . Acesso em: 27 dez. 2017.</p><p>8. PROST, Antoine; WINTER, Jay, op. cit.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 9 8/14/2019 17:35:37</p><p>10</p><p>Esse tipo de perspectiva persistiria mesmo quando, na década de</p><p>1950, despontava aquilo que Jay Winter9 chamou de geração Fifty Years</p><p>On (dos cinquenta anos em diante) dedicada à história da política e da</p><p>sociedade em guerra. O historiador identifica a sua produção como</p><p>uma people’s history (história do povo), em que o pêndulo pesa para uma</p><p>análise das estruturas e movimentos sociais, ainda que interessado em</p><p>seus efeitos sobre o aparelho estatal. Condicionado pela abertura dos</p><p>arquivos oficiais e pela dramática experiência da Segunda Guerra Mun-</p><p>dial, esse grupo desenvolve uma história da guerra cada vez mais aces-</p><p>sível ao público, retirando das lideranças políticas e diplomáticas uma</p><p>certa exclusividade da narrativa sobre os acontecimentos.</p><p>A década de 1960, por sua vez, apresenta-se como momento de vira-</p><p>da, quando mudanças mais amplas da prática historiográfica influencia-</p><p>ram a forma como se entendia a guerra, expandindo sua complexidade</p><p>e seu impacto. Surgiram, então, trabalhos interessados na experiência</p><p>de conflito dos soldados, alimentados por testemunhos, pela adoção de</p><p>novas perspectivas e pela afirmação do paradigma marxista, que permi-</p><p>tia uma valorização política dos movimentos sociais e do seu lugar no</p><p>fenômeno da guerra10. A história social materializar-se-ia, dessa forma,</p><p>em trabalhos como os de Jay Winter11, Jean-Jacques Becker12 e Antoine</p><p>Prost13. Esse último, focado na integração ou na exclusão dos antigos</p><p>combatentes na sociedade francesa do pós-guerra, faria já uma incursão</p><p>na história das mentalidades. Nesse ambiente, instala-se, entre as déca-</p><p>das de 1970 e 1980, aquilo que Winter e Prost denominaram de Vietnam</p><p>Generation (a geração Vietnã). Engajada em uma condenação da guerra</p><p>9. WINTER, Jay, 2014, op. cit.</p><p>10. WINTER, Jay, 2009, op. cit., p. 4.</p><p>11. WINTER, Jay. Socialism and the challenge of war: ideas and politics in Britain 1912-18. London: Rout-</p><p>ledge, 1974.</p><p>12. BECKER, J.-J. 1914. Comment les Français sont entrés dans la guerre: contribution à l’étude de l’opinion</p><p>publique printemps-été 1914. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1977.</p><p>13. PROST, Antoine. Les anciens combattants et la société française 1914-1939. Paris: Presses de la Fonda-</p><p>tion Nationale des Sciences Politiques, 1977. 3 vol.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 10 8/14/2019 17:35:37</p><p>11</p><p>e ambientada no contexto da intervenção norte-americana no Vietnã,</p><p>procura denunciar os efeitos dramáticos dos conflitos armados tanto</p><p>para vencedores quanto para vencidos.14 Transita-se, assim, paulatina-</p><p>mente, para uma nova historiografia da guerra, cultural, interessada,</p><p>entre outros, na experiência humana em suas perspectivas psicológicas</p><p>e emocionais. Para Winter e Prost, autores americanos como Paul Fus-</p><p>sell e seu The Great War and modern memory15, John Keegan e seu The face</p><p>of the battle16 ou ainda Eric Leed e seu No man’s land: combat and identity</p><p>in World War I17 abriram definitivamente espaço para uma análise críti-</p><p>ca da guerra e de seus efeitos, quebrando o limite entre a esfera públi-</p><p>ca e privada, entre frente e retaguarda, entre guerra e paz18. Esse tipo</p><p>de perspectiva instala-se definitivamente ao longo da década de 1990,</p><p>abrindo espaço para uma série de novos debates, dentre os quais: co-</p><p>memoração e rememoração, relação entre soldados e civis, experiência</p><p>da retaguarda, intimidade no front, violência e consentimento, ou ainda</p><p>ocupação e deportação.19</p><p>A publicação deste volume ocorre em um momento em que se colo-</p><p>ca a possibilidade de uma crise, ou de uma relativização, do paradigma</p><p>da história cultural da guerra. Para Winter, teria chegado o tempo de</p><p>questionar as unidades de análise das quais os historiadores têm lançado</p><p>mão, determinadas pela nação ou pelo império. Para ele, há experiên-</p><p>cias comuns como o motim, ou mesmo processos financeiros, tecnoló-</p><p>gicos ou logísticos conectados ao conflito e que se encontrariam em um</p><p>nível superior ou inferior ao nacional ou ao imperial, merecendo uma</p><p>nova atenção do historiador. Tomemos o exemplo referido do motim.</p><p>14. PROST, Antoine; WINTER, Jay, op. cit, p. 251 – 252.</p><p>15. FUSSELL, Paul. The Great War and modern memory. New York; London: Oxford University</p><p>Press, 1975.</p><p>16. KEEGAN, John. The face of the battle. London: Hutchinson, 1998.</p><p>17. LEED, Eric. No man’s land: combat and identity in World War I. New York: Cambridge University</p><p>Press, 1979.</p><p>18. PROST, Antoine; WINTER, Jay, op. cit., p. 42 – 50.</p><p>19. CORREIA, Sílvia, 2014, op. cit.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 11 8/14/2019 17:35:37</p><p>12</p><p>Ele teria ocorrido em diferentes exércitos que não tinham conexão di-</p><p>reta uns com os outros a não ser pelas batalhas. Entretanto, ao enten-</p><p>der se tratar de um fenômeno sincrônico, apresentando semelhantes ou</p><p>dissonantes justificativas em diversas tropas, revela-se um novo e inte-</p><p>ressante nível de análise. Para relativizar as trincheiras, Winter oferece</p><p>outro objeto a merecer o mesmo tratamento transnacional de análise:</p><p>a história das mulheres no tempo da guerra, quando o patriarcado e a</p><p>desigualdade de gênero eram realidades (e sofreram mutações) nas so-</p><p>ciedades conectadas pelo conflito.</p><p>Finalmente, Winter reconhece o forte eurocentrismo das narrativas</p><p>publicadas no eixo Atlântico Norte e propõe seu questionamento20. En-</p><p>quanto fenômeno corrente atravessando uma geração de historiadores,</p><p>a ambição por trazer para suas narrativas uma perspectiva dita “trans-</p><p>nacional” tem muitas vezes se justificado apenas tautologicamente. De</p><p>fato, a crítica de Winter procura conduzir as investigações sobre as rela-</p><p>ções entre diferentes sociedades</p><p>XX.</p><p>Considerando que os processos de tomada de decisão e as chancela-</p><p>rias sofrem múltiplas influências, como as das mentalidades e identida-</p><p>des coletivas, mas também que as elites políticas tentam influenciar as</p><p>sociedades que dirigem para guiar o Estado em determinada direção,</p><p>algumas novas interrogações, então, podem se apresentar aos historia-</p><p>dores interessados em reexaminar a inserção internacional do Brasil no</p><p>longo prazo através das experiências e repercussões da singular paz de</p><p>Versalhes de 1919. Teriam aquelas mudanças estruturais mencionadas</p><p>por Menotti Del Picchia também contaminado o mapa mental de toda</p><p>a elite política do país na saída do conflito? Qual seria, então, o enten-</p><p>dimento de sociedade e, a partir dele, a estratégia de projeção da diplo-</p><p>macia brasileira diante do século que se abria com a Paz de Paris? O</p><p>124. FAGUNDES, Luciana P. Música e guerra: impactos da Primeira Guerra Mundial no cenário mu-</p><p>sical carioca, Revista Brasileira de História, v. 37, n. 76, 2017, p. 23-44.</p><p>125. ALBERT, Bill; HENDERSON, Paul. South America and the First World War. Cambridge: Cam-</p><p>bridge UP, 1988. GARCIA, Eugenio V. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926). Porto Alegre/Brasília:</p><p>Ed. Da Universidade/UFRGS/FUNAG, 2000. VINHOSA, Francisco Luiz Teixeira. O Brasil e a Primeira</p><p>Guerra Mundial: a diplomacia brasileira e as grandes potências. Rio de Janeiro, IHGB, 1990 e BUENO,</p><p>Clodoaldo. Política Externa da Primeira República. Os anos de apogeu – de 1902 a 1918. São Paulo: Paz e</p><p>Terra, 2003. Ver, também: ABREU, Marcelo de Paiva (org.). A Ordem do Progresso: cem anos de política</p><p>econômica republicana 1889-1989. Editora Campus. 1995. DARÓZ, Carlos. O Brasil na Primeira Guerra</p><p>Mundial: a longa travessia. São Paulo: Editora Contexto, 2016.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 77 8/14/2019 17:35:41</p><p>78</p><p>que significava, nesse contexto, o Liberalismo Internacionalista então</p><p>emergente? Finalmente, pode-se perguntar se havia oportunidade para</p><p>uma participação na inédita diplomacia multilateral parlamentar que</p><p>não fosse discreta e que não acabasse na melancólica marginalização e</p><p>saída do Brasil da Liga em 1926.</p><p>Como pergunta síntese das anteriores, mas direcionada amplamente</p><p>para as diversas elites das Américas, Greg Grandin e Juan Pablo Scarfi</p><p>investigam qual ordem juristas imaginavam para as relações interna-</p><p>cionais do futuro baseando-se no impacto da Primeira Guerra sobre a</p><p>ideia de arquitetura do sistema internacional. Os historiadores levam</p><p>em conta, sobretudo, a tradição da própria região, extremamente so-</p><p>fisticada, defendem eles, mas desprezada pela literatura, que teima em</p><p>adotar o eurocentrismo em suas análises da paz de Versalhes, ainda que</p><p>com trabalhos interessantes como o já mencionado Governing the World,</p><p>the history of an idea, de Mark Mazower. Uma das principais figuras es-</p><p>tudadas nessa nova perspectiva é exatamente quem abre este capítulo:</p><p>Rui Barbosa.</p><p>Para Scarfi, Barbosa, ao lado de personalidades como o jurista chile-</p><p>no Alejandro Alvarez, fora vital no contexto da reconfiguração de uma</p><p>nova ordem global legal na sequência da Primeira Guerra Mundial.</p><p>Ainda para o historiador, essas personagens representavam o</p><p>pioneirismo da região na promoção de uma perspectiva continental e re-</p><p>gional distinta dentro do direito internacional e da paz mundial antes e</p><p>depois da criação da Liga das Nações, através da linguagem do direito in-</p><p>ternacional público interamericano [...] e de novos fundamentos como</p><p>solidariedade, paz, não-intervenção, autodeterminação e democracia, afas-</p><p>tando-se de uma ordem internacional legal de bases europeias126.</p><p>126. SCARFI, Juan Pablo. Globalizing the Latin American legal field: continental and regional approa-</p><p>ches to the international legal order in Latin America, Revista Brasileira de Política Internacional, v. 61, n.</p><p>2, 2018, p. 2. Ver também: GRANDIN, Greg. The Liberal Traditions in the Americas: Rights, Sovereig-</p><p>nty, and the Origins of Liberal Multilateralism, The American Historical Review, vol. 117, n. 1, 2012, p. 72.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 78 8/14/2019 17:35:42</p><p>79</p><p>Por mais inovadora e rica que essa agenda de pesquisa seja, desafian-</p><p>do trabalhos mais centrados no eixo Atlântico Norte ou nas dinâmicas</p><p>afro-asiáticas como de Patrick Cohrs127 e Erez Manela128, não é possível,</p><p>entretanto, tomá-la como chave totalizante para o período, apontando</p><p>a existência de uma elite aderindo totalmente ao liberal internaciona-</p><p>lismo nas Américas. Ainda que Barbosa tenha tido influência e revela-</p><p>do um forte ativismo (chegaria a defender que “os países americanos,</p><p>sob a liderança dos Estados Unidos, guiassem a Europa em direção ao</p><p>caminho da paz e da justiça”129), sabe-se que seu liberalismo político-</p><p>-internacionalista, além de limitado, havia entrado em choque com as</p><p>tendências autoritárias, clientelistas, oligárquicas e patrimonialistas de</p><p>boa parte da elite que comandou o Poder Executivo brasileiro, que nun-</p><p>ca fora o seu caso. Ademais, seu pensamento e suas reflexões, apesar de</p><p>terem advogado longamente por princípios que acabariam estruturan-</p><p>do a Liga das Nações, como ilustrado acima por Scarfi, se dividiam com</p><p>outros que criticavam duramente qualquer projeto de multilateralismo</p><p>político.</p><p>De fato, parte do pensamento prévio de Rui Barbosa ao conflito</p><p>foi modesto em termos de reflexão sobre um sistema político inter-</p><p>nacional, quando não frontalmente resistente à ideia. Nesse sentido,</p><p>por exemplo, manifestou-se diante da possibilidade de criação de uma</p><p>corte de justiça internacional quando da II Conferência de Paz de Haia</p><p>em 1907:</p><p>...se a forma judiciaria é a preferida no que respeita às relações entre os in-</p><p>divíduos, a forma arbitral é a única applicavel entre as nações. Estas não se</p><p>submettem senão às autoridades que há por bem adoptar. Substituir, para</p><p>127. COHRS, Patrick O. The Unfinished Peace after World War I: America, Britain, and the Stabilisation</p><p>of Europe, 1919–1932. Cambridge: Cambridge UP, 2006.</p><p>128. MANELA, Erez. The Wilsonian Moment. Self-Determination and the International Origins of</p><p>Anticolonial Nationalism. Oxford: Oxford UP, 2007.</p><p>129. SCARFI, Juan Pablo, op. cit., p. 5.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 79 8/14/2019 17:35:42</p><p>80</p><p>ellas, o arbitramento pela justiça, fôra trocar o assentimento voluntario</p><p>pela coacção. Crear-se-ia dest’arte o poder judiciário internacional. Mais</p><p>um passo, e teriamos o executivo internacional, enquanto não chegasse a</p><p>uma legislatura para o mundo todo. Seria a constituição dos Estados Uni-</p><p>dos do globo 130.</p><p>Para Barbosa, mesmo o referido poder judiciário trataria de ser “ino-</p><p>vação perigosamente reaccionaria”, pois legalizaria “o domínio da for-</p><p>ça, substituindo por este o do equilíbrio das soberanias”. Ao mesmo</p><p>tempo, como acreditava na ideia de que nada poderia submeter os Esta-</p><p>dos, para ele a guerra sempre estaria à espreita:</p><p>Lamentável é que tenhamos sempre de ir dar com a guerra ao cabo de</p><p>tudo quanto fazemos no intento da paz. Mas, emquanto existir a guerra e</p><p>os homens a ella se ativerem como meio de restabelecer o direito, não se</p><p>atinará como evitar este espectaculo melancólico, de que nós mesmos aqui</p><p>somos actores forçados, considerando-a como por assim dizer o derradeiro</p><p>tribunal de appelação...131.</p><p>Tratava-se de um forte pensamento jus internacionalista também</p><p>presente em outros nomes influentes no período como Epitácio Pessoa</p><p>e Raul Fernandes (dois delegados brasileiros em Versalhes), ou ainda</p><p>Clovis Bevilacqua, que imaginavam uma codificação do direito interna-</p><p>cional e uma espécie de judicialização (preferencialmente ad hoc) do sis-</p><p>tema de solução de controvérsias, mas não uma paz liberal ou a criação</p><p>de um sistema político democrático parlamentar multilateral132. Mesmo</p><p>130. BARBOSA, Rui. Tribunal de Justiça Arbitral (02/09/07). In: STEAD, William T. O Brazil em Haya.</p><p>Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1925, p. 168-169.</p><p>131. BARBOSA, Rui. Discurso sobre cobrança</p><p>de dívida de Estado. Doutrina Drago (23/07/07). In:</p><p>STEAD, William T. O Brazil em Haya. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1925, p. 125.</p><p>132. MACEDO, Paulo E. V. B. de. Clóvis Bevilacqua e a justiça internacional: entre o sim e não a Rui</p><p>Barbosa, Revista de Direito Internacional, v. 13, n. 2, 2016, p. 422-443. Para uma evolução do pensamento</p><p>de Bevilacqua, ver: BEVILÁCQUA, Clóvis. A Liga das Nações e a soberania dos Estados, Jornal do</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 80 8/14/2019 17:35:42</p><p>81</p><p>para personagens centrais da diplomacia desse tempo, como o Barão</p><p>do Rio Branco, se progresso na conservação da paz houvesse, esse seria</p><p>necessariamente através da arbitragem.</p><p>À frente do Itamaraty de 1902 até seu falecimento, em 1912, o Barão</p><p>construiu com enorme sucesso a resolução de disputas complexas de</p><p>fronteiras com outros Estados sul-americanos. Sua reputação projetou-</p><p>-se sobre o futuro, conservando ainda hoje o status de um dos estadistas</p><p>mais proeminentes do país e próprio símbolo da diplomacia brasileira.</p><p>Seu dito legado em defender os princípios da não-intervenção e da solu-</p><p>ção pacífica de controvérsias continua a ser reivindicado pelas mais dife-</p><p>rentes tendências dentro do establishment diplomático brasileiro, con-</p><p>sistindo em uma espécie de “evangelho a ser seguido e reverenciado”133.</p><p>Rio Branco, no entanto, apesar de trabalhar para contornar as vul-</p><p>nerabilidades brasileiras como ator internacional, parece ter pouco le-</p><p>gado, como Barbosa, que pudesse subsidiar uma nova estratégia para</p><p>atuação política a partir da era inaugurada por Versalhes. Ao contrário</p><p>de um doutrinador, foi um homem pragmático e de seu tempo, deixan-</p><p>do “lições ambíguas e contraditórias”, ainda que disfarçadas por uma</p><p>certa ideia de doutrina-legado, sobre cujos irresolutos fundamentos o</p><p>historiador Villafane Santos já longamente dissertou134. Concentrado</p><p>em assuntos regionais, Rio Branco exerceu a chefia da chancelaria de</p><p>forma pragmática, em um contexto de forte assimetria internacional</p><p>de poder, que oferecia muito pouca margem de manobra. Além disso,</p><p>enquanto a economia primária persistia como regra e a sociedade con-</p><p>tinuava internamente extremamente desigual, a ideia geral de política</p><p>internacional de Rio Branco defendia fortemente a soberania (ainda</p><p>que se posicionando dubiamente com questões como a extensão da</p><p>Commercio, 6/5/19. BARBOSA, Rui. Tribunal de Justiça Arbitral (02/09/07). In: STEAD, William T. O</p><p>Brazil em Haya. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1925, p. 168-169.</p><p>133. SANTOS, Luís C. Villafañe G. O Evangelho do Barão. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 9-14.</p><p>134. Ibid.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 81 8/14/2019 17:35:42</p><p>82</p><p>Doutrina Drago135). Reconhecia, também, uma organização oligárqui-</p><p>ca do sistema de Estados, combatendo-a de forma ocasional, sobretudo</p><p>quando a esperada posição de destaque para o Brasil não era reconhe-</p><p>cida136. Nada surpreendente para uma liderança do início do século XX,</p><p>quando havia uma expectativa de que os assuntos mundiais na abertu-</p><p>ra do novo século permanecessem profundamente influenciados pela</p><p>diplomacia imperial de outrora ou, no máximo, que se adaptariam a</p><p>potências em ascensão como o Japão ou os Estados Unidos.</p><p>Tratava-se, entretanto, de herança incompatível com as demandas e</p><p>expectativas do pós-Grande Guerra. Pior, era um conjunto de reflexões</p><p>sem sê-lo, pois o venerado chanceler não deixara nenhum “registro sis-</p><p>temático de suas ideias e orientações”, como bem lembra Villafane137.</p><p>Nesse contexto, o ministro conduzia a PEB ao sabor das circunstâncias,</p><p>diante de um país procurando o apoio americano, pois com restritas</p><p>alternativas devido às suas limitações de poder (inclusive militares e em</p><p>particular diante da Argentina). Rio Branco, manobrando com cuidado</p><p>entre um Cone Sul temerário e uma potência em forte ascensão ao nor-</p><p>te do continente, observava a Europa com um misto de nostalgia, por</p><p>suas duas décadas lá vividas, e temor, em razão das fronteiras comuns</p><p>com os ímpetos imperialistas de França, Inglaterra e Holanda. Final-</p><p>mente, alinhado com Barbosa e evitando expor as fraquezas de seu país,</p><p>apoiou habilmente negociações ad hoc ou a arbitragem na resolução de</p><p>conflitos internacionais138.</p><p>Ainda que experimentando e defendendo, de forma pioneira, al-</p><p>guns dos pilares do novo sistema internacional, como defende Juan</p><p>Pablo Scarfi, pouca estratégia havia de parte dessa elite para atuar no</p><p>que seria o novo sistema internacional, de democracia multilateral</p><p>135. Ibid. p. 108.</p><p>136. Ibid. p. 106-110.</p><p>137. Ibid. p. 9-14.</p><p>138. Ibid. p. 99-102, 112-114.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 82 8/14/2019 17:35:42</p><p>83</p><p>parlamentar139. De fato, para além do princípio da segurança coletiva,</p><p>o Pacto da Liga das Nações se inspirava no racionalismo kantiano e em</p><p>suas bases democrático-republicanas de separação de poderes e igualda-</p><p>de, sobre as quais os Estados finalmente poderiam ser organizados, mas</p><p>também se relacionar.</p><p>LONGE DE EVITAR A GUERRA, LONGE DE ABRAÇAR A PAZ</p><p>Retomando o envolvimento do país na Grande Guerra, sua causa mais</p><p>direta havia sido a nova campanha submarina alemã em 1917. Enquan-</p><p>to os americanos preparavam sua declaração de guerra, um submarino</p><p>afundava o navio mercante brasileiro Paraná, que navegava pela costa</p><p>da França. Devido à morte de marinheiros e à ausência de assistência</p><p>por parte dos alemães, a parte mais pró-Entente da opinião pública na-</p><p>cional, em um país que contava com uma considerável comunidade ale-</p><p>mã, elevou o tom e pressionou o governo a revogar sua posição de neu-</p><p>tralidade e a endurecer suas relações diplomáticas com o Reich. Nesse</p><p>ponto, depois de evitar partidos no conflito europeu, o sucessor de Rio</p><p>Branco e pró-neutralidade, o ministro dos Negócios Estrangeiros Lauro</p><p>Müller, ele mesmo filho de imigrantes alemães, foi forçado a renunciar.</p><p>Passados poucos meses, com a continuação do torpedeamento, o Brasil</p><p>declarou guerra ao Império Germânico e até se preparou para engajar</p><p>militares nas batalhas140.</p><p>A questão da entrada dos Estados Unidos no conflito não pode ser</p><p>evitada quando se tenta entender por que treze países latino-americanos</p><p>139. Para uma leitura revisionista sobre a ação de latino-americanos na Liga das Nações, particu-</p><p>larmente em seus órgãos especializados, ver: MCPHERSON, Alan; WEHRLI, Yannick (org.). Beyond</p><p>Geopolitics. New Histories of Latin America at the League of Nations. Albuquerque: University of</p><p>New Mexico Press, 2015.</p><p>140. A contribuição militar brasileira para o esforço de guerra foi limitada a uma unidade médica</p><p>enviada à França e formada por cem médicos, alguns assistentes médicos e soldados para proteger as</p><p>instalações. Ademais, treze oficiais aviadores serviram junto à Força Aérea Real Britânica e uma frota</p><p>da Marinha com dois cruzadores, quatro destróieres e dois navios auxiliares foram enviados para a</p><p>Europa cruzando Gibraltar, no entanto, apenas na véspera do armistício (CERVO, Amado; BUENO,</p><p>Clodoaldo. Historia da politica exterior do Brasil. 4a ed. Brasilia: Editora UnB, 2012, p. 209-211).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 83 8/14/2019 17:35:42</p><p>84</p><p>permaneceram neutros até que Wilson declarasse guerra, mudando</p><p>suas posições logo em seguida141. No caso extremamente hesitante da</p><p>América do Sul, com apenas o Brasil se engajando, é preciso acrescen-</p><p>tar também rupturas internas e disputas por hegemonia regional para</p><p>entender os cenários que as elites dominantes no Rio de Janeiro imagi-</p><p>navam para a futura ordem internacional142.</p><p>A combinação dessas duas causas mais indiretas da participação bra-</p><p>sileira na Grande Guerra, juntamente com a preferência pela arbitra-</p><p>gem como fórmula para resolver conflitos internacionais (lições de Rio</p><p>Branco e Barbosa claramente evocadas pelo presidente Venceslau Brás</p><p>ao declarar guerra143), constituem elementos essenciais para entender o</p><p>comportamento brasileiro tendo assento em Versalhes144 e mesmo du-</p><p>rante os primeiros anos da Liga</p><p>das Nações. O novo quadro político</p><p>para a diplomacia multilateral defendido por Wilson parecia distante e</p><p>limitado em interesse para o Rio de Janeiro.</p><p>Preocupada principalmente com as questões econômicas, a delega-</p><p>ção brasileira mostrou indiferença diante das transformações a serem</p><p>promovidas pela criação da Liga das Nações e pelas mudanças que a</p><p>delegação dos Estados Unidos pretendia para o antigo e fracionado sis-</p><p>tema internacional145. Epitácio Pessoa, acompanhado de Raul Fernandes</p><p>e Pandia Calogeras em Paris, conduziu pessoalmente a comitiva brasi-</p><p>leira enquanto candidato e vencedor das eleições presidenciais que se</p><p>141. Houve também aqueles que apenas romperam relações diplomáticas com os impérios centrais.</p><p>Em qualquer caso, a neutralidade fora a regra absoluta nas Américas até abril de 1917, ainda que pres-</p><p>sões existissem (RINKE, Stefan, op. cit., capítulo 2).</p><p>142. COMPAGNON, Olivier, op. cit., 2014,, p. 138-150.</p><p>143. CPDOC/FGV. Arquivo Venceslau Bras. VB pr 15.01.20 III. Venceslau para os Presidentes dos Esta-</p><p>dos, despacho oficial, 29 de Outubro de 1917.</p><p>144. Sua participação foi recompensada, com o apoio dos Estados Unidos, com um assento nas nego-</p><p>ciações de paz de Paris. Assim, em 28 de junho de 1919, o Brasil se tornou uma das 27 nações a assinar o</p><p>Tratado de Versalhes (CERVO, Amado; BUENO, Clodoaldo, op. cit., p. 209-210).</p><p>145. Sobre a posição da delegação dos Estados Unidos, ver: COHRS, Patrick. The unfinished peace</p><p>after World War I: America, Britain and the stabilization of Europe 1919-1932. Cambridge: Cambridge</p><p>UP, 2006.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 84 8/14/2019 17:35:42</p><p>85</p><p>realizavam do outro lado do Atlântico. Permaneceu, entretanto, essen-</p><p>cialmente preocupado com questões imediatas e práticas. Durante as</p><p>negociações, Pessoa tratava a questão dos navios alemães como “capi-</p><p>tal” para o Brasil quando discutia com Wilson146. Tal tratamento, nem</p><p>de longe, foi dado à questão da paz.</p><p>Pouco antes de o Brasil deixar a Liga de forma conturbada, Pessoa</p><p>publicaria um livro autoral defendendo o balanço de sua gestão à frente</p><p>do Catete, onde consta um capítulo inteiro dedicado a Versalhes, mas</p><p>nenhuma palavra com relação à posição do Brasil frente à nova paz ou</p><p>ao inédito e transformador sistema multilateral parlamentar da Liga.</p><p>Ainda que Eugênio Garcia afirme que “a aspiração de participar das</p><p>grandes decisões mundiais era um traço característico da política ex-</p><p>terna brasileira no período”147, Pessoa reafirmava que só duas questões</p><p>haviam levado o Brasil à Conferência: navios requisitados aos alemães</p><p>e o dinheiro do café comprado por eles148, razões que tomaram grande</p><p>atenção da literatura até hoje enquanto pouca discussão houve sobre o</p><p>planejamento de pós-guerra e, sobretudo, sobre a percepção brasileira</p><p>da estrutural reforma do sistema de governança política defendida pelos</p><p>Estados Unidos.</p><p>O tom do balanço da atuação brasileira em Versalhes e perante o</p><p>sistema político da Liga é, não raro, o da frustação provocada tanto por</p><p>questões domésticas quanto por não ter a delegação brasileira sido re-</p><p>conhecida como grande potência149. Pode-se, talvez, acrescentar outra.</p><p>Ao olhar para a inserção do Brasil no sistema multilateral no longo</p><p>prazo, uma discussão interessante e que poderia permitir entender a</p><p>saída da Liga em 1926, ou mesmo as hesitações em dialogar com o Ter-</p><p>ceiro Mundo e com o Movimento dos Não Alinhados no pós-Segunda</p><p>146. PESSOA, Epitácio. Pela Verdade. 2a ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1925, p. 20-21.</p><p>147. GARCIA, Eugênio V., op. cit., p. 28.</p><p>148. PESSOA, Epitácio, op. cit., p. 42.</p><p>149. SANTOS, Norma B., Diplomacia e fiasco: repensando a participação brasileira na Liga das Na-</p><p>ções. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 46, n. 1, 2003, p. 87-112.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 85 8/14/2019 17:35:42</p><p>86</p><p>Guerra, ainda que tais saltos no tempo apresentem problemas de análi-</p><p>se, parece ligada a outra questão, que já aparece em 1919: falta de articu-</p><p>lação de tipo parlamentar na nova diplomacia multilateral.</p><p>Ainda que Pessoa tenha enfrentado diversas barreiras materiais para</p><p>operar uma agenda de proposições em Paris150, articulou-se apenas</p><p>pontualmente com representantes de nações ditas então “menores”151.</p><p>Tal estratégia, vital dentro do inédito sistema parlamentar, de criação</p><p>de um “bloco” ou bancada, foi pouco explorada de forma sistemática,</p><p>tanto no pós-1919, como no pós-1945 e durante considerável período no</p><p>pós-1989. A capacidade brasileira de influenciar os resultados da agenda</p><p>do novo sistema internacional dependeria, claro, do que eram chama-</p><p>das as grandes potências. Entretanto, a literatura praticamente resume</p><p>a essa limitação estrutural as possibilidades das ditas potências menores,</p><p>raras vezes levando em conta a exploração das demais estruturas cria-</p><p>das a partir de 1919.</p><p>De fato, apesar de valorizar quase que exclusivamente as habilidades</p><p>individuais do delegado brasileiro, interessante observar que a própria</p><p>biógrafa de Pessoa notou implicitamente as oportunidades que a nova</p><p>arquitetura do sistema, a diplomacia multilateral parlamentar, ofertava</p><p>a qualquer nação disposta a jogar o novo jogo do sistema de governan-</p><p>ça política internacional. Pode-se alegar ter escapado ao brasileiro uma</p><p>agenda considerando uma maior e mais duradoura projeção de poder</p><p>internacional. Argumentamos, entretanto, que ele, assim como sua ge-</p><p>ração, parece não ter atentado para as mudanças sistêmicas em curso,</p><p>ou talvez não se preocupado nem preparado para enfrentá-las. As ações</p><p>em Versalhes parecem ter sido desenhadas a partir de uma perspectiva</p><p>150. Para além das já conhecidas assimetrias de poder, faz-se interessante registrar que o próprio</p><p>Pessoa, por exemplo, teve que se encarregar das traduções dos memorandos brasileiros para a Língua</p><p>Inglesa, além das dificuldades de acomodação e transporte em Paris, o que chegou a levar um dos</p><p>delegados brasileiros a perder compromissos (STREETER, Michael. Epitácio Pessoa. Londres: Haus</p><p>Publishing Ltd, 2010, p. 91-93).</p><p>151. Como para demandar sua presença no Comissão da Liga (GARCIA, Eugênio V., op. cit., p. 37).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 86 8/14/2019 17:35:42</p><p>87</p><p>provinciana e da crença na força única do Direito Internacional Público</p><p>e da arbitragem como meio de regrar a suposta manutenção de uma</p><p>diplomacia imperial, e não da política para transformá-la definitivamen-</p><p>te em diplomacia parlamentar multilateral. Esse momento de transi-</p><p>ção não escapou apenas aos brasileiros. Como demonstrou Akira Iriye</p><p>para o caso da inserção internacional da Ásia no pós-Grande Guerra, “a</p><p>diplomacia do imperialismo havia sido seriamente minada, mas uma</p><p>nova ordem ainda estava para emergir” segundo a percepção dos ja-</p><p>poneses152.</p><p>Sem menosprezar as assimetrias de poder, nem mesmo a manuten-</p><p>ção de alguns privilégios (como o assento permanente no Conselho di-</p><p>rigido a poucos), a biógrafa de Pessoa, Laurita Gabaglia, reconheceu as</p><p>margens de manobra criadas pelo Brasil, ainda que as explicasse única</p><p>e hagiograficamente pelas habilidades pessoais de Epitácio. Para ela,</p><p>o delegado brasileiro seria dotado, “como ninguém”, “de simpatia, de</p><p>finura e tato, assim como de prudência, perseverança e sagacidade” e</p><p>que, somente por isso, conseguira alguns frutos153.</p><p>Gabaglia explica que a Conferência de Versalhes, “não obstante a</p><p>sua feição política, era um cenáculo de juristas” e que, por essa razão,</p><p>“Epitacio Pessoa ali se achava em seu ambiente” onde teria manobrado</p><p>com “hábil influencia pessoal”. Sugerimos, entretanto, uma linha ar-</p><p>gumentativa divergente, na qual os eventuais sucessos somente foram</p><p>operados porque se tratava de um novo tipo de assembleia política e</p><p>que, exatamente por não a reconhecer dessa forma, limitaram-se em</p><p>muito os tais frutos conseguidos. Exemplificando involuntariamen-</p><p>te o potencial desperdiçado, Laurita Gabaglia continua a dizer que o</p><p>delegado brasileiro “não tardou em tornar-se</p><p>figura marcante entre os</p><p>delegados das pequenas potencias – espécie de elo vivo entre eles e os</p><p>152. IRIYE, Akira, op. cit.., p. 13. Ver, também: IRIYE, Akira. Global Community. The Role of Interna-</p><p>tional Organizations in the Making of the Contemporary World. Berkeley: University of California</p><p>Press, 2002, p. 33-34.</p><p>153. GABAGLIA, Laurita. Epitácio Pessôa (1865-1942). v. 2, Rio de Janeiro: J. Olympio, 1951, p. 284-285.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 87 8/14/2019 17:35:42</p><p>88</p><p>representantes das nações poderosas”. “Encabeçou-lhes”, continua, “o</p><p>movimento de reação contra o autoritarismo das Grandes Poténcias,</p><p>que pretendiam restringir-lhes de muito a participação nos trabalhos da</p><p>paz e sobretudo na incipiente organização da Liga das Nações”154. Entre-</p><p>tanto, por ter apostado em uma estratégia preocupada com a elevação</p><p>do prestígio do Brasil, como ressalta Villafañe155, em um cálculo indivi-</p><p>dualista e nacionalista, ou talvez por algum difuso “sentimento de justi-</p><p>ça”, como tenta defender Laurita, como se fosse um “defensor inflexível</p><p>dos direitos dos pequenos povos e da igualdade dos Estados”156, Epitácio</p><p>demonstrava não perceber ou, pelo menos, ainda não ser possível arti-</p><p>cular a existência de um grupo parlamentar permanente para atuar na</p><p>nova assembleia diplomática.</p><p>A análise de Olivier Compagnon vai ainda mais longe ao reforçar</p><p>a hipótese do cálculo individualista e nacionalista, apontando mesmo</p><p>certa farsa e deslealdade na ação da delegação brasileira. Para o histo-</p><p>riador, a fim de conseguir o assento no Conselho da Liga, os brasileiros</p><p>colocaram “em surdina as reivindicações iniciais que o Rio de Janeiro</p><p>apresentava de um tratamento equivalente entre todos os Estados in-</p><p>dependentes da comunidade internacional”. Ainda, para Compagnon,</p><p>a dissimulação teria se revelado quando, após obter a “recompensa”,</p><p>Epitácio Pessoa bradou ter ficado o Brasil, em Versalhes, “ao lado dos</p><p>fracos, de todas as reivindicações justas e todos os ideais nobres”157.</p><p>Ainda no contexto das conversas sobre a paz e sobre a criação da</p><p>Liga, Gabaglia afirma que os demais representantes em Versalhes eram</p><p>“diversos de raça, cultura e inspiração”158. Nesse contexto, mesmo que</p><p>as manobras dissimuladoras fossem descartadas, o Brasil continuaria</p><p>154. Ibid. p. 289-290.</p><p>155. SANTOS, Luís C. Villafañe G. O dia em que adiaram o Carnaval: política externa e a construção do</p><p>Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 166.</p><p>156. GABAGLIA, Laurita, op. cit., p. 289-290.</p><p>157. COMPAGNON, Olivier, op. cit., p. 229.</p><p>158. GABAGLIA, Laurita, op. cit., p. 288.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 88 8/14/2019 17:35:42</p><p>89</p><p>longe de ter credenciais para se colocar naturalmente entre “grandes” e</p><p>“pequenos”, sendo preciso contrariar ou contornar de forma coerente</p><p>tais diferenças. Na verdade, a grande possibilidade aventada neste texto,</p><p>que seria prática corrente de ação política no mesmo sistema multilate-</p><p>ral no pós Segunda Guerra, teria sido alinhar-se a tais diferenças articu-</p><p>lando, por exemplo, a composição multiétnica da sociedade brasileira.</p><p>A “majestade” do Juca Mulato, nesse sentido, poderia permitir outra</p><p>dinâmica política, que atendesse à democracia parlamentarista e que</p><p>não fosse aleatória ou pontual, nem mesmo que seguisse uma lógica</p><p>imperialista ou regionalista. Ainda era, porém, a vez do Jeca.</p><p>De fato, de forma oposta à de Gabaglia, Michael Streeter faz uma</p><p>interessante analogia para explicar a ação dos delegados brasileiros</p><p>durante a Conferência de Versalhes: “Eles eram como as personagens</p><p>Rosencrantz e Guildenstern em Hamlet; ocasionalmente faziam uma</p><p>aparição, mas saíam rapidamente do palco sem ter causado muito im-</p><p>pacto na narrativa dramática principal”159. Enquanto em Paris, em 1919,</p><p>Epitácio Pessoa, reclamou do tratamento discriminatório e abrupto ofe-</p><p>recido ao Brasil por seus colegas, mas não ofereceu ou buscou alterna-</p><p>tivas. Seu colega de Versalhes Pandia Calogeras, mais tarde Ministro da</p><p>Guerra, daria o tom das visões brasileiras da ordem do pós-conflito ao</p><p>contestar os planos de desarmamento debatidos na época, afirmando</p><p>que “ninguém respeita ou busca a solidariedade dos fracos” 160. Interpre-</p><p>tando a nova arena multilateral e iniciativas como a Conferência Naval</p><p>de Washington de 1922 como medidas para “deixar os países mais fracos</p><p>praticamente à mercê dos mais fortes”161, o ceticismo que dominara a</p><p>elite brasileira se reforçava e levava o país a não seguir ou lutar para</p><p>contribuir muito com o liberalismo internacionalista como fórmula</p><p>159. STREETER, Michael, op. cit., p. 95.</p><p>160. CALÓGERAS, Pandiá. Relatorio do ano de 1919 apresentado ao Presidente da Republica dos Estados</p><p>Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1920, p. 7.</p><p>161. HILTON, Stanley. Brazil and the Post-Versailles World : Elite Images and Foreign Policy Strategy,</p><p>1919-1929. Journal of Latin American Studies, v. 12, n. 2, 1980, p. 343.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 89 8/14/2019 17:35:42</p><p>90</p><p>para governar o mundo. Uma visão puramente oligárquica do sistema</p><p>parecia imperar.</p><p>Sobre o fracasso em constituir um grupo de influência e a melancóli-</p><p>ca saída do Brasil da Liga, em 1926, Villafañe lembra mesmo ser</p><p>bastante duvidoso o sucesso obtido pelo Brasil na tarefa de servir de ele-</p><p>mento de ligação e representar a América Latina ante os Estados Unidos</p><p>e, no caso da Liga, o hemisfério perante a comunidade internacional. O</p><p>episódio da saída do Brasil da Liga é sintomático dessa dissonância cogni-</p><p>tiva entre o entendimento brasileiro de que o Brasil estaria representando</p><p>a América Latina (e, no caso da Liga das Nações, o continente americano)</p><p>e os interesses concretos dos demais países latino-americanos, que não ne-</p><p>cessariamente se viam representados pelo Brasil. A antiga ideia dos vizi-</p><p>nhos hispano-americanos como o ‘outro’ da identidade internacional brasi-</p><p>leira persistia, sob outra roupagem162.</p><p>Somente a superação dessa alteridade daria uma nova oportunidade</p><p>para o país.</p><p>Enquanto coletivo de soberanos pequenos e médios poderes, o fato</p><p>de latino-americanos, por exemplo, não lutarem para forjar uma iden-</p><p>tidade e coesão comuns, o que poderia permitir alguma influência, le-</p><p>vanta a questão dos fundamentos de sua marginalização na nova ordem</p><p>política multilateral. As diferentes visões sobre o futuro das relações in-</p><p>ternacionais não se encontravam somente nos idealistas da Liga e nos</p><p>isolacionistas brasileiros. Diversas nações asiáticas, notadamente o Ja-</p><p>pão, passaram pelos mesmos dilemas sobre como imaginar a abertura</p><p>do século XX no pós-Versalhes. Como ensina Naoko Shimazu, dentre</p><p>os diversos debates existentes em meio à elite japonesa, encontrava-</p><p>-se uma tensão entre o que ela chama de posição ajia shugi (pan-asiá-</p><p>tica) e datsu-A ron (pró-ocidental), com diferentes meios previstos para</p><p>162. SANTOS, Luís C. Villafañe G., 2010, op. cit., p. 170.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 90 8/14/2019 17:35:42</p><p>91</p><p>alcançar ambas, inclusive o ultra-nacionalismo imperialista163. Manten-</p><p>do as pretensões que haviam ganhado fortes contornos com tratados</p><p>como o de 1902, de aliança com os britânicos e típica do XIX, parte da</p><p>elite japonesa “não tinha ideia de que a diplomacia imperialista que ten-</p><p>tavam restaurar havia sido minada pelos Estados Unidos, pela União</p><p>Soviética e pela China”, o que gerou um problema fundamental para o</p><p>aparelho político japonês no pós-guerra164. Argumenta-se neste capítulo</p><p>que o mesmo também se deu para outros, como para o brasileiro.</p><p>Precisamente no caso do Brasil, apesar de divulgar orgulhosos co-</p><p>mentários sobre quão prestigioso o país se tornou por ser membro da</p><p>Liga e por ocupar seu Conselho, uma visão paralela à da elite japonesa,</p><p>de que o sistema internacional continuava oligárquico, mas também o</p><p>paroquialismo, o isolacionismo e a assimetria de poder eliminaram a</p><p>maior parte da capacidade do Rio de Janeiro de ter influência global-</p><p>mente165. A questão é entender que a arquitetura do novo sistema,</p><p>ape-</p><p>sar de todas as suas imperfeições166, demandava exatamente uma estra-</p><p>tégia de atuação parlamentar em grupo, a fim de garantir influência</p><p>perante os Estados mais poderosos. A falta de planejamento de pós-</p><p>-guerra, a tradição diplomática brasileira, singularmente moldada sob o</p><p>Império no XIX e que ainda repercutia algumas décadas mais tarde, tan-</p><p>to de descartar qualquer articulação através da identidade quanto em</p><p>pensar o sistema como sendo intrinsicamente europeu (e, claro, sendo</p><p>o Brasil um de seus herdeiros mais legítimos no Novo Mundo) e apos-</p><p>tando na defesa da soberania e na arbitragem como vistas no pré-1919167,</p><p>mostram que o Catete e o Itamaraty ainda levariam um longo tempo</p><p>163. SHIMAZU, Naoko. Japan, race and equality: the racial equality proposal of 1919. Londres: Rout-</p><p>ledge, 1998, p. 92-94.</p><p>164. IRIYE, Akira, op. cit., 1965, p. 10.</p><p>165. GARCIA, Eugênio V., op. cit., p. 36-43 e HILTON, Stanley., op. cit., p. 352.</p><p>166. A Assembleia, por exemplo, não tinha iniciativa legislativa e qualquer de seus membros poderia</p><p>ainda impor um veto (MAZOWER, Mark., op. cit., p. 136).</p><p>167. SANTOS, Luís C. Villafañe G., 2012, op. cit., p. 138-145.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 91 8/14/2019 17:35:42</p><p>92</p><p>para repensar a inserção internacional e a gestão dos negócios interna-</p><p>cionais dentro da diplomacia parlamentar.</p><p>A reinauguração do multilateralismo no pós-1945 conheceria a pri-</p><p>meira grande e pretensamente coesa articulação do Brasil para atuar no</p><p>Parlamento da Humanidade.</p><p>A CHANCE PERDIDA DO NÃO ALINHAMENTO NA GUERRA FRIA</p><p>Com o final da Segunda Guerra aproximando-se e apesar de as ten-</p><p>sões regionais terem diminuído em importância e da reformulação da</p><p>Liga das Nações estar à vista, o Brasil demorou a perceber que a tenta-</p><p>ção do isolacionismo político não seria mais uma opção nas relações</p><p>internacionais, nem mesmo para os latino-americanos. Mergulhado,</p><p>porém, em um contexto nacional diferente daquele de 1919 e 1920, as</p><p>forças internas levaram o serviço diplomático a não se retirar da política</p><p>internacional e a forjar uma política externa capaz de contribuir para</p><p>a modernização e a industrialização. Naquele momento, pelo menos</p><p>parte da elite dominante brasileira parecia finalmente disposta a impor-</p><p>tar no renovado fórum multilateral e mesmo a encontrar alternativas</p><p>a um pleno alinhamento com os Estados Unidos. A questão era então</p><p>criar uma estratégia para superar a insularidade e suas vulnerabilidades</p><p>como poder médio.</p><p>Percebendo que os planos de tornar-se espontaneamente um prota-</p><p>gonista e de ter garantido seu assento permanente no Conselho de Se-</p><p>gurança das Nações Unidas haviam sido definitivamente condenados168,</p><p>o Brasil enfrentou inúmeras dificuldades para estabelecer uma agenda</p><p>alternativa para a ordem do pós Segunda Guerra Mundial, que ainda</p><p>aguardaria alguns anos após o armistício de 1945 antes de sofrer seu con-</p><p>gelamento pela Guerra Fria. Necessário dizer, entretanto, que vários fa-</p><p>tores perturbavam o planejamento do pós-guerra, como, por exemplo,</p><p>168. GARCIA, Eugênio V. O Sexto membro permanente: O Brasil e a criação da ONU. Rio de Janeiro:</p><p>Contraponto, 2011, p. 194-206.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 92 8/14/2019 17:35:42</p><p>93</p><p>a instabilidade causada pela mudança de três presidentes e quatro dife-</p><p>rentes administrações no Itamaraty entre apenas os anos decisivos de</p><p>1944 de 1946, mas também os distúrbios causados por um golpe de Es-</p><p>tado e pela mobilização nacional para as eleições presidenciais de 1945,</p><p>a primeira em quinze anos. A política nacional fez com que o país expe-</p><p>rimentasse uma verdadeira turbulência em um momento muito decisi-</p><p>vo para suas futuras relações internacionais169. Uma estratégia de longo</p><p>prazo só começaria a ser repensada no início de 1946, quando o primei-</p><p>ro Presidente a tomar posse desde 1926, Eurico Gaspar Dutra, nomeou</p><p>João Neves da Fontoura como seu Ministro dos Negócios Estrangeiros.</p><p>No entanto, enquanto se envolvendo com a política internacional</p><p>após a derrota do Eixo e não levando em conta a desafortunada expe-</p><p>riência do Brasil em Versalhes e na Liga das Nações, Fontoura escolhia</p><p>inicialmente as mesmas premissas equivocadas de Epitácio Pessoa para</p><p>pensar a inserção internacional do país. Ao considerar o Brasil capaz de</p><p>agir isoladamente, o novo Ministro viu-se exposto aos mesmos riscos de</p><p>1919. Sua primeira experiência direta com o novo sistema multilateral</p><p>ocorreu entre julho e outubro de 1946, durante uma excursão oficial à</p><p>Europa para tomar parte das negociações de paz.</p><p>Mesmo oferecendo novamente uma modesta contribuição para</p><p>o esforço de guerra quando comparado com as principais potências,</p><p>os brasileiros se envolveram no conflito com forças muito superiores</p><p>àquelas do outro único país da América Latina em luta, o México170. As-</p><p>sim, e pela segunda vez, o país foi o único representante da região a</p><p>ter assento durante as Conferências de Paz de Paris. Se os brasileiros se</p><p>169. Pouco explorado pela historiografia brasileira, o planejamento de pós-guerra foi tratado de for-</p><p>ma central por diversas potências em guerra. Para os casos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, ver</p><p>os trabalhos de David Reynolds, Mark Stoler, Jeff Engel e Christopher Baxter.</p><p>170. Enquanto os mexicanos enviaram um esquadrão para lutar nas Filipinas, o Brasil despachou cer-</p><p>ca de 25 mil soldados, juntamente com um Grupo de Aviação de Caça, para lutar junto aos americanos</p><p>na Itália. Além disso, sua Marinha participou da campanha do Atlântico (Para mais informações sobre</p><p>a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, ver: SEITENFUS, Ricardo. O Brasil vai à Guerra.</p><p>O processo de envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Manole, 2003).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 93 8/14/2019 17:35:43</p><p>94</p><p>engajaram mais uma vez nas negociações com a esperança de serem</p><p>ouvidos como nação soberana e influente, não desprezavam mais o</p><p>multilateralismo nem o renovado Parlamento da Humanidade quando</p><p>a decepção com o comportamento dos Estados Unidos e dos Estados</p><p>europeus começou a impactar a delegação. Na verdade, a diplomacia</p><p>multilateral parlamentar, apesar dos problemas que rapidamente co-</p><p>meçaria a experimentar, foi finalmente reconhecida como um caminho</p><p>viável para que pequenas e médias nações pudessem ganhar mais rele-</p><p>vância na política internacional ou, ao menos, garantir seus interesses</p><p>em um sistema mais democrático e estável de paz.</p><p>Tendo esse horizonte em mente, depois de vários dias lutando con-</p><p>tra obstáculos para expressar suas opiniões, em Paris, devido ao contro-</p><p>le de procedimentos e decisões pelos “Cinco Grandes”, tanto quanto</p><p>em 1919171, os brasileiros finalmente recorreram a uma estratégia muito</p><p>comum de política parlamentar, que eles bem praticavam em casa, a</p><p>fim de fazer com que sua posição fosse considerada e impor a nego-</p><p>ciação. Contando com vários deputados recentemente eleitos e sendo</p><p>liderada por um muito experiente, o próprio Fontoura, a delegação bra-</p><p>sileira aproveitou seu histórico de prática política nacional para promo-</p><p>ver uma estratégia de associação similar com outras delegações. Sua</p><p>intenção era de aumentar seu poder de influência e criar um terceiro</p><p>campo na disputa das relações internacionais dentro de um sistema que</p><p>se relançava através do liberalismo internacionalista.</p><p>“É curioso”, confessou Fontoura durante a Conferência, “assistir</p><p>a uma sessão plenária”. “Os delegados soviéticos”, prosseguiu ele, “e</p><p>171. Inusitadamente, Epitácio Pessoa e João Neves da Fontoura usaram a mesma expressão (“os Cin-</p><p>co Grandes”) para designar aquelas potências que lutavam para monopolizar a condução da política</p><p>internacional ao lidar com a fundação ou a refundação do sistema multilateral. Enquanto, para o</p><p>primeiro, tratavam-se dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da França, da Itália e do Japão, para o</p><p>segundo, tratavam-se dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da União Soviética, da França e da China</p><p>(PESSOA, Epitacio. Obras</p><p>completes de Epitacio Pessoa. v. 14, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro,</p><p>1961, p. 8 e Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Arquivo João Neves da Fontoura. João Neves da</p><p>Fontoura, Relatório da Delegação Brasileira, Rio de Janeiro, MRE, 1947, p. 23).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 94 8/14/2019 17:35:43</p><p>95</p><p>suas bancadas associadas (Polônia, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Ucrâ-</p><p>nia e Bielorrússia) levantam infinitas questões de ordem como aquelas</p><p>minorias fracas no Palácio Tiradentes172, na República Velha. É a tática</p><p>da obstrução tão conhecida por nós parlamentares nacionais”173. Pou-</p><p>cos dias depois, ao reconhecer esse método como o único viável para</p><p>criar uma força alternativa174, o ministro brasileiro pediu a constituição</p><p>de uma “frente”. Sua ideia era criar sua própria “bancada” no sistema</p><p>multilateral parlamentar175.</p><p>Naquele exato momento, a persistência dos planos da década de 1930</p><p>de impulsionar a industrialização tornou-se essencial para que os repre-</p><p>sentantes do país mantivessem a pressão e não recuassem na política</p><p>internacional, como fizera a elite ruralista dos anos 1920. Mais do que</p><p>capital, o país precisava de grande assistência externa em cooperação</p><p>técnica, da renovação de sua rede de transporte e de acesso a bens de</p><p>capital. O desenvolvimento deveria então ser promovido por recursos</p><p>nacionais e internacionais.</p><p>Nesse contexto, considerando a fórmula da política parlamentar, a</p><p>única peça que faltava para fazer emergir a estratégia brasileira era a</p><p>consistência e a solidez de tal “frente” ou “bancada” imaginada dentro</p><p>do sistema multilateral. Como então criar um grupo sólido de nações</p><p>para contrapor não apenas o bloco soviético, mas também o bloco esta-</p><p>dunidense nos médio e longo prazos?</p><p>Foi na solução desse preciso problema de grande estratégia que sur-</p><p>giu o arriscado plano brasileiro para se tornar protagonista na ordem</p><p>multilateral.</p><p>172. A então sede da Câmara de Deputados na capital federal do Rio de Janeiro.</p><p>173. CPDOC/FGV. Arquivo Oswaldo Aranha. AO 46.08.12. Carta de Fontoura para Aranha, de 12 de</p><p>Agosto de 1946.</p><p>174. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Arquivo João Neves da Fontoura. João Neves da Fon-</p><p>toura, Relatório da Delegação Brasileira. Rio de Janeiro, MRE, 1947, p. 23.</p><p>175. A.M. La Diplomatie Mondiale à Paris. Un entretien avec M. Neves da Fontoura chef de la déle-</p><p>gation brésilienne à la conférence de la paix qui travaille à la reconstitution d’un ‘front latin. Le Monde,</p><p>3o ano, n. 525, 30/08/1946, p. 3.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 95 8/14/2019 17:35:43</p><p>96</p><p>De fato, levando em conta o potencial de associar 21 Estados la-</p><p>tino-americanos a outros descontentes com os Big Five, influenciado</p><p>por suas habilidades literárias e por sua formação anticomunista, cris-</p><p>tã e conservadora, João Neves da Fontoura, ao olhar para o conjunto</p><p>de Estados soberanos existentes após a Segunda Guerra Mundial per-</p><p>cebeu existir apenas uma possibilidade: criar uma união “latina” de</p><p>nações.</p><p>Para Fontoura, ao promover essa fórmula, o Rio de Janeiro poderia</p><p>aspirar a liderar não apenas os latino-americanos (21 de 51 membros da</p><p>Organização das Nações Unidas), mas também a França e a Bélgica, o</p><p>que poderia lhe dar 23 dos 51 membros fundadores da ONU e também</p><p>3 dos 9 assentos do Conselho de Segurança, incluindo um com poder</p><p>de veto.</p><p>Apesar de um entusiasmo inicial com a ideia e a efetiva criação da</p><p>União Latina de Nações em 1948, a organização acabou por desapare-</p><p>cer após sua segunda cimeira em 1954 em Madri, considerada um fias-</p><p>co devido a disputas internas176. Na verdade, além de ser afetada pelos</p><p>efeitos mais imediatos da Guerra Fria, a própria latinidade não era de</p><p>forma alguma reconhecida como uma identidade suficientemente for-</p><p>te para dar solidez a um bloco político e econômico no sistema mul-</p><p>tilateral177. Ademais, tal aspiração ainda refletia a ambição de se euro-</p><p>peizar da visão de Monteiro Lobato sobre a sociedade brasileira, sobre</p><p>o Jeca Tatu. Enquanto muitas autoridades no Rio de Janeiro demons-</p><p>travam não perceber ou não aceitar que havia um mundo pós-colo-</p><p>nialista e inter-racial surgindo e que, nesse sentido, valeria talvez ar-</p><p>ticular a “majestade” multiétnica do Juca Mulato junto às sociedades</p><p>176. MORELI ROCHA, Alexandre L.; LE CHAFFOTEC, Boris. Countering war or embracing peace?</p><p>Dialogues between regionalism and multilateralism in Latin America (1945-1954). Culture & History</p><p>Digital Journal, v. 4, n. 1, 2015, p. e002. CHONCHOL, J.; MARTINIÈRE, G. L’Amérique latine et le latino-</p><p>-américanisme en France. Paris: L’Harmattan, 1985, p. 125-127.</p><p>177. Para além de uma coordenação política no novo sistema multilateral, havia ambições e metas</p><p>com relação a cooperação econômica e cultural (Arquivo Diplomático Francês. Série B Amérique</p><p>1944-1952, sub-série Questions générales, Union latine, vol. 76. Entrevista de Pierre Cabanes, [1948]).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 96 8/14/2019 17:35:43</p><p>97</p><p>aspirando ou vivendo o processo de descolonização, a terceira força</p><p>nas relações internacionais de fato emergiu alguns anos depois, em</p><p>Bandung, devido aos esforços de Nehru, Nasser e Suharto para, entre</p><p>outros, superar o imperialismo e evitar o alinhamento com Washing-</p><p>ton ou Moscou.</p><p>Conservadorismo, visão racialista das relações internacionais e ana-</p><p>crônica do colonialismo178, além do início da Guerra Fria179, todos esses</p><p>fatores combinados tiraram a possibilidade de qualquer protagonismo</p><p>para o Rio de Janeiro na diplomacia multilateral através da União La-</p><p>tina. Ao mesmo tempo, difícil não imaginar uma frente internacional</p><p>estruturada em torno de uma ideia de raça e religião perturbando (e</p><p>mesmo impossibilitando) o diálogo que o governo brasileiro teria com</p><p>o movimento não alinhado nos anos seguintes180. O Brasil então atra-</p><p>vessaria a Guerra Fria de forma hesitante quanto ao Terceiro Mundo,</p><p>instrumentalizando de forma não coordenada a oposição entre Estados</p><p>Unidos e União Soviética e limitando seus ganhos181.</p><p>178. MORELI ROCHA, Alexandre L.; LE CHAFFOTEC, Boris, op. cit.; CHONCHOL, J.; MARTINIÈRE,</p><p>G, op. cit.</p><p>179. Mesmo países como Portugal e Espanha, que antes estavam interessados em se unir à União</p><p>Latina e recuperar alguma legitimidade na ordem internacional, mais tarde encontraram acordos mais</p><p>interessantes através de uma aproximação com Washington dentro do bloco ocidental (TELO, An-</p><p>tonio. Portugal e a NATO, o reencontro da tradição atlântica. Lisboa: Cosmos, 1996, p. 113-134 e VIÑAS,</p><p>Angel. En las garras del aguila. Los pactos con Estados Unidos, de Francisco Franco a Felipe Gonzalez</p><p>(1945-1995). Barcelona: Critica, 2003, p. 198).</p><p>180. Importante ressaltar os problemas inerentes até mesmo à articulação do lusotropicalismo como</p><p>forma de criar solidariedade internacional. Para tal temática, ver: DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico: o Brasil</p><p>e o desafio da descolonização africana, 1950-1980. São Paulo: Terra e Paz, 2011.</p><p>181. Sobre essa instrumentalização, ver: CATERINA, Gianfranco. Um grande oceano: Brasil e União So-</p><p>viética atravessando a Guerra Fria (1947-1985), 2019, 415 f. Tese (Doutorado em História, Política e Bens</p><p>Culturais) – Escola de Ciências Sociais, Fundação Getulio Vargas. OLIVEIRA, Fernanda C. Negociações</p><p>Financeiras Internacionais e Atores Políticos: a Suspensão das Negociações entre Brasil e FMI na Admi-</p><p>nistração Juscelino Kubitschek (1957-1959), 2019 (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto de</p><p>Relações Internacionais, Universidade de São Paulo. Sobre como Nasser e Nehru instrumentalizaram</p><p>a Guerra Fria para obter ganhos concretos, como investimentos pesados em infraestrutura, ver: BUR-</p><p>NS, William J. Economic aid and American policy toward Egypt, 1955-1981. Albany: State University of New</p><p>York, 1985. EL HUSSINI, Mohrez M. Soviet-Egyptian relations, 1945-85. New York: St. Martin’s Press, 1987.</p><p>ENGERMAN, David C. The price of aid: the economic cold war in India. Cambridge: Harvard UP, 2018.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd</p><p>97 8/14/2019 17:35:43</p><p>98</p><p>QUAL MULTILATERALISMO PARA O SÉCULO 21?</p><p>A seguinte oportunidade igualmente promissora para o Brasil se pro-</p><p>jetar no sistema multilateral político e dialogar novamente com a era</p><p>do parlamentarismo diplomático inaugurada após a Primeira Guerra</p><p>Mundial viria com o fim do conflito bipolar.</p><p>Nesse momento, a política e a economia nacionais estabeleceram</p><p>não apenas o modelo dentro do qual o Itamaraty deveria tentar for-</p><p>jar uma nova política externa para o pós-Guerra Fria, mas também os</p><p>obstáculos para alcançar tal objetivo. Em 15 de novembro de 1989, ape-</p><p>nas seis dias depois de o muro de Berlim começar a ser derrubado, os</p><p>brasileiros votavam pela primeira vez em uma eleição presidencial em</p><p>quase trinta anos. O presidente eleito, Fernando Collor, tinha como</p><p>missão não apenas consolidar a democracia depois da ditadura militar,</p><p>mas também controlar uma hiperinflação que atingia taxas anuais de</p><p>1.000,00% e afetava as capacidades e a governabilidade do Estado.</p><p>Apesar da mobilização geral dentro da administração para alcan-</p><p>çar esses objetivos fortemente desafiadores (e o consequente impasse</p><p>para o resto da agenda política), houve um sério debate dentro do cor-</p><p>po diplomático sobre como imaginar o Brasil na ordem multilateral</p><p>renovada.</p><p>Depois de uma Guerra Fria intercalando aproximações e indife-</p><p>renças vis-à-vis Washington, mesmo que nunca levando o país próxi-</p><p>mo demais a Moscou182, diplomatas brasileiros começaram a debater a</p><p>eventualidade de mudanças estruturais enquanto o sistema multilateral</p><p>descongelava.</p><p>Um longo histórico de intensas relações interamericanas ainda mar-</p><p>cava os espíritos de Brasília. No entanto, apesar do aparente triunfo do</p><p>bloco ocidental, parte do Itamaraty não considerou a unipolaridade</p><p>americana como o seguro cenário futuro, especialmente quando se le-</p><p>vando em conta o longo prazo.</p><p>182. CATERINA, Gianfranco, op. cit..</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 98 8/14/2019 17:35:43</p><p>99</p><p>Apesar de ainda serem necessários mais estudos sobre o período, so-</p><p>bretudo com foco no sistema multilateral parlamentar de governança</p><p>internacional e com forte preocupação empírica183, visões de dois minis-</p><p>tros das relações exteriores têm sido distinguidas, podendo representar</p><p>o debate de ideias dentro do Ministério entre a década de 1990 e o início</p><p>do século XXI sobre a futura ordem multilateral: Celso Lafer (Ministro</p><p>em 1992 e depois em 2001 e 2002) e Celso Amorim (Ministro de 1993 a</p><p>1995 e depois de 2003 a 2010)184.</p><p>De acordo com o primeiro, a economia e a estrutura política inter-</p><p>nacional pareciam ditar a projeção exterior brasileira. Para Lafer, depois</p><p>de a dinâmica da Guerra Fria ter criado oportunidades para se colocar</p><p>desenvolvimento econômico como prioridade na agenda internacional,</p><p>a nova ordem parecia ainda não adequada para aceitar mudanças pro-</p><p>fundas conduzidas ou exigidas pelo “Terceiro Mundo”185. Como ressal-</p><p>tou Flavia Mello, Lafer afastava o “paradigma da aliança especial com</p><p>os Estados Unidos reinstaurado no inicio do governo Collor” sem, en-</p><p>tretanto, “um retorno integral do paradigma universalista”186 e, ainda</p><p>assim, mantendo uma forte parceria (ou “subserviência”, diria Amado</p><p>Cervo187) com Washington, a ser contrabalanceada com a Comunida-</p><p>de Europeia. Nesse sentido, a multipolaridade parecia limitada ao</p><p>183. Para uma resenha das teses sobre a política externa do governo Fernando Collor, nas quais se</p><p>ressalta a preocupação com o desenvolvimento econômico, ver: CASARÕES, Guilherme S. P. ‘O tempo</p><p>é o senhor da razão’? a política externa do governo Collor, vinte anos depois, 2014. Tese (Doutorado</p><p>em Ciência Política), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,</p><p>p. 36-41.</p><p>184. SPEKTOR, Matias, Brazilian assessment of the end of the Cold War. In: KALINOVSKY, Artemy</p><p>M.; RADCHENKO, Sergey (eds.). The End of the Cold War and the Third World. New perspectives on</p><p>regional conflict. London: Routledge, 2011, p. 229.</p><p>185. LAFER, Celso. Reflexões sobre a inserção do Brasil no contexto internaciona. Contexto Interna-</p><p>cional, v. 11, 1990, p. 38.</p><p>186. MELLO, Flavia de Campos. Regionalismo e inserção internacional: continuidade e transformação</p><p>da política externa brasileira nos anos 90. 2000. Tese (Doutorado em Ciência Política), Faculdade de</p><p>Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 109, 114-115.</p><p>187. CERVO, Amado. Política de Comércio Exterior e Desenvolvimento: a experiência brasileira.</p><p>Revista Brasileira de Política Internacional, v. 40, n. 2, 1997, p. 19.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 99 8/14/2019 17:35:43</p><p>100</p><p>círculo da economia internacional e ao eixo Atlântico Norte, enquanto</p><p>um multilateralismo político estratificado, após a queda do confronto</p><p>Leste-Oeste, agravaria um ambiente internacional hostil ao Brasil, que</p><p>deveria manobrar solitário (com talvez certo apoio do Mercosul) diante</p><p>dos gigantes ocidentais188.</p><p>Já Celso Amorim, ao refletir sobre o mundo pós-Guerra Fria, vendo o</p><p>sistema multilateral operando novamente durante a bem-sucedida inter-</p><p>venção coletiva das Nações Unidas na crise do Iraque-Kwait, imaginou a</p><p>década de 1990 como uma época portando uma mudança incapaz de ser</p><p>contestada pelos Estados Unidos, apesar de seu status de superpotência.</p><p>Para Amorim, entretanto, nem Washington nem o modo de vida norte-a-</p><p>mericano poderiam oferecer respostas a todos as questões que um mundo</p><p>extremamente diverso e multicultural estava para apresentar. A unipolari-</p><p>dade americana, então, não seria capaz de desafiar uma ordem multilate-</p><p>ralista renovada e reformadora. Mesmo ainda não sendo muito claro seu</p><p>formato final, essa ordem parecia pelo menos oferecer um lugar onde as</p><p>potências emergentes pudessem projetar uma diferente existência189.</p><p>Ambas reflexões sobre o futuro da ordem multilateral dialogariam du-</p><p>rante a década de 1990, enquanto o país estabilizava sua economia e con-</p><p>solidava a democracia. Então, em 2003, quando pela segunda vez substituí-</p><p>ra Celso Lafer no Itamaraty190, Celso Amorim passaria a consolidar uma</p><p>nova estratégia de inserção do Brasil na ordem multilateral parlamentar</p><p>que vinha articulando desde quando chefiava a Missão Brasileira junto à</p><p>Organização Mundial do Comércio191. Naquele contexto, nem resignação,</p><p>nem alinhamento, nem ação independente distinguiriam a posição de Bra-</p><p>sília, mas a construção de coalizões de países em desenvolvimento, como</p><p>188. LAFER, Celso, op. cit., p. 39.</p><p>189. AMORIM, Celso. O Brasil e a ordem internacional pós-Golfo. Contexto Internacional, v. 13, 1991,</p><p>p. 28-29.</p><p>190. Em 1993, Celso Amorim assumiu o Ministério apenas alguns meses depois de Lafer ter deixado</p><p>o posto.</p><p>191. AMORIM, Celso, op. cit, p. 31.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 100 8/14/2019 17:35:43</p><p>101</p><p>o G-20 no multilateralismo da OMC ou mesmo os BRICS192. De alguma</p><p>forma, buscava-se uma estratégia semelhante à de 1946, ainda que com</p><p>mui reduzida componente identitária. Notava-se, majoritariamente, um</p><p>alinhamento de agendas buscando o desenvolvimento econômico, de toda</p><p>a forma uma postura diversa daquelas vistas na década de 1920.</p><p>Apesar da pressão existente sobre analistas internacionais durante os</p><p>ciclos eleitorais de 2014 e 2018 no Brasil para promover um julgamento</p><p>definitivo sobre as últimas décadas em termos de realizações internacio-</p><p>nais, parece ser ainda prematuro medir os resultados da aplicação da úl-</p><p>tima estratégia de cooperação, dita por muitos de “Sul-Sul”193. A prudên-</p><p>cia é especialmente importante quando se considera que o mundo pode</p><p>estar experimentando, pela primeira vez nos cem anos da prática do</p><p>multilateralismo, seu momento menos hierárquico, mas mais ambíguo.</p><p>Enquanto, por exemplo, o banco dos BRICS anuncia o que parecem ser</p><p>inéditos princípios, propósitos e estrutura, difícil não enxergar na inicia-</p><p>tiva inspirações nas ideias anglo-americanas apresentadas no Hotel Mou-</p><p>nt Washington em Bretton Woods, New Hampshire, em julho de 1944.</p><p>Finalmente, parece não haver ansiedade em lutar por uma substi-</p><p>tuição da estrutura multilateral atual, mesmo que discursos inflamados</p><p>contestatórios tenham ganhado força exatamente quando se celebram</p><p>100 anos da primeira prática do liberalismo internacionalista.</p><p>CONCLUSÃO</p><p>Preocupada com a política nacional, as questões econômicas e o co-</p><p>mércio de café, a ação de Epitácio Pessoa em Versalhes, mas também</p><p>durante sua gestão frente ao Catete, concentrou esforços para conter</p><p>192. SPEKTOR, Matias., op. cit., p. 240.</p><p>193. Para algumas pistas sobre o tema, ver: MENDONÇA JR., Wilson; FARIA, Carlos A. P. Brazil’s</p><p>technical cooperation with Africa: comparing Fernando Henrique Cardoso’s (1995-2002) and Lula da</p><p>Silva’s (2003-2010) administrations. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 58, n. 1, 2015 e MILHO-</p><p>RANCE, Carolina. Brazilian cooperation policy with Sub-Saharan Africa on rural sector: transfer and</p><p>innovation on the diffusion of public policies. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 56, n. 2, 2015.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 101 8/14/2019 17:35:43</p><p>102</p><p>a contestação interna e evitar disputas regionais194. Ainda longe de dar</p><p>adeus à Europa e de articular o perfil sociocultural da mestiça socie-</p><p>dade brasileira como força na projeção internacional, a percepção de</p><p>manutenção da organização oligárquica do sistema internacional e o</p><p>militarismo apresentaram-se, na verdade, como os principais guias no</p><p>enquadramento das relações exteriores na década de 1920. Entre as</p><p>ideias sobre a diplomacia pós-imperial sendo articuladas desde o século</p><p>XIX, os brasileiros pareciam preferir fórmulas mais ligadas à arbitragem</p><p>internacional e não àquelas projetando a criação de estruturas políticas</p><p>multilaterais.</p><p>Eugenio Vargas Garcia não poderia ser mais claro quanto ao des-</p><p>prezo e não consciência brasileiros sobre a alteração estrutural prevista</p><p>pela Liga. Ainda que a nova estrutura de governança fosse evoluir ao</p><p>longo do século seguinte, ela ali já oferecia inéditas oportunidades que</p><p>pelo Brasil não foram aproveitadas:</p><p>Quanto ao discurso em prol dos direitos das potências menores, cristali-</p><p>zado no princípio da igualdade dos Estados (idealismo), o Brasil terminou</p><p>por negá-lo na prática aceitando o princípio inverso, o da classificação das</p><p>potências (realismo), expresso na Constituição do Conselho da Liga, que</p><p>concedia unicamente às grandes potências o privilégio de ali permanece-</p><p>rem ad infinitum. Em outras palavras, enquanto sua própria participação</p><p>nas decisões da Conferência era limitada pelo controle das grandes potên-</p><p>cias, o Brasil se uniu ao coro de protesto dos pequenos Estados, mas diante</p><p>de um fato consumado que lhe foi dado pela dinâmica internacional, com</p><p>a possibilidade de ver pertencer ao órgão da cúpula da Liga, o Brasil se</p><p>rendeu à aspiração de grandeza e aceitou de bom grado uma posição dife-</p><p>renciada no concerto das nações195.</p><p>194. BANDEIRA, L. A. Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos: Conflito e Integração na América</p><p>do Sul. Da Tríplice Aliança ao Mercosul. Rio de Janeiro, Revan, 2003. Ver, também: COMPAGNON,</p><p>Olivier, 2014, p. 138-150.</p><p>195. GARCIA, Eugênio V., op. cit., p. 43.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 102 8/14/2019 17:35:43</p><p>103</p><p>A questão não era exigir uma igualdade que os próprios brasi-</p><p>leiros sabiam não existir, mas entender limitada a relação privile-</p><p>giada com os Estados Unidos e necessário encontrar uma fórmula</p><p>para criar “bancada” e, então, ganhar mais influência. Enquanto a</p><p>delegação de Pessoa pouco articulou, Fontoura entendeu, articulou,</p><p>mas fracassou ao apostar na identidade cultural latina. No pós-1989,</p><p>a estratégia parece ter sido mais promissora, sobretudo quando da</p><p>atuação brasileira no surgimento do G-20 na Organização Mundial</p><p>do Comércio e dos BRICS, levando em conta os perfis emergentes</p><p>desses atores, especialmente quanto a suas matrizes econômicas. Um</p><p>denso balanço de tal estratégia parece ainda prematuro pelo pouco</p><p>tempo ainda passado, mas também em razão da influência atual de</p><p>fortes contestações ao princípio do multilateralismo e de certa postu-</p><p>ra ocidentalista tempestuosa, mais propensa a repetir a condenação</p><p>do Jeca do que a abraçar o Juca quando pensando a sociedade brasi-</p><p>leira no mundo.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ABREU, Marcelo de Paiva (org.). A Ordem do Progresso: cem anos de política econô-</p><p>mica republicana 1889-1989. Editora Campus. 1995.</p><p>ALBERT, Bill; HENDERSON, Paul. South America and the First World War. Cambrid-</p><p>ge: Cambridge University Press, 1988.</p><p>AMORIM, Celso. O Brasil e a ordem internacional pós-Golfo. Contexto Internacional,</p><p>v. 13, 1991, p. 25-34.</p><p>BANDEIRA, L. A. Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos: Conflito e Integração na</p><p>América do Sul. Da Tríplice Aliança ao Mercosul. Rio de Janeiro: Revan, 2003.</p><p>BARBOSA, Rui. Tribunal de Justiça Arbitral (02/09/07). In: STEAD, William T. O</p><p>Brazil em Haya. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1925.</p><p>_____. Discurso sobre cobrança de dívida de Estado. Doutrina Drago (23/07/07). In:</p><p>STEAD, William T. O Brazil em Haya. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1925.</p><p>_____. Tribunal de Justiça Arbitral (02/09/07). In: STEAD, William T. O Brazil em</p><p>Haya. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1925.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 103 8/14/2019 17:35:43</p><p>104</p><p>_____. 1849-1923. Pensamento e ação de Rui Barbosa / Organização e seleção de</p><p>textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, Conselho Edi-</p><p>torial, 1999.</p><p>BERGEL, Martín. El oriente desplazado: los intelectuales y los orígenes del tercer-</p><p>mundismo en la Argentina. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2015.</p><p>BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1996.</p><p>BUENO, Clodoaldo. 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O resultado de tal fenômeno é</p><p>mais informação vindo à tona, abrindo novos caminhos para pesquisa</p><p>e levando à investigação de outros conflitos, mais esquecidos, na Áfri-</p><p>ca. A internet e a maior facilidade de locomoção tornaram o compar-</p><p>tilhamento de informações muito mais fácil e contribuíram para a in-</p><p>ternacionalização de estudos sobre as campanhas. Tendo pesquisado,</p><p>ao longo de aproximadamente duas décadas, as campanhas nas regiões</p><p>Oriental, Central e Austral do continente africano e coordenado uma</p><p>rede online a respeito da Grande Guerra na África por sete anos, assim</p><p>como estudado História formalmente em dois países muito diferentes</p><p>(ainda que com suas similaridades), a autora encontra-se habilitada para</p><p>oferecer algumas reflexões a respeito do desenvolvimento da memória</p><p>da Primeira Guerra Mundial na África Subsaariana.</p><p>Um estudo como este está em contínua evolução, na medida em que</p><p>a memória não é uma constante. O que se apresenta ao longo do texto</p><p>é, portanto, um recorte a partir de uma determinada época, o ano de</p><p>2014, combinado com a ideia de complementar e estimular ainda mais</p><p>os debates atuais em torno da noção de memória. Ao fazê-lo, abrem-</p><p>-se discussões a respeito de reações e abordagens culturais voltadas à</p><p>196. Tradução para o português de Victor Serebrenick e André Vargas. Revisão técnica de Luah To-</p><p>mas, Sílvia Correia e Alexandre Moreli.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 109 8/14/2019 17:35:44</p><p>110</p><p>memória e à lembrança. Pretende-se demonstrar a complexidade da</p><p>memória e mostrar que ela é fragmentada, influenciada por fatores ex-</p><p>ternos e, por sua vez, influenciando as</p><p>futuras lembranças.</p><p>METODOLOGIA, TERMINOLOGIA E OBJETIVOS DO ESTUDO</p><p>A abordagem de pesquisa escolhida foi a da observação participante.</p><p>Consequentemente, reconhece-se que outro observador analisando o</p><p>desenvolvimento da memória em torno das campanhas na África possa</p><p>ter uma experiência completamente diferente, particularmente se for</p><p>de um país não anglófono. Apesar disso, algumas conclusões podem ser</p><p>tiradas, embasadas pela literatura a respeito da memória da Primeira</p><p>Guerra Mundial, particularmente pelos trabalhos de Jay Winter197, Jay</p><p>Winter e Antoine Prost198, Dan Todman199 e Paul Fussell200. Além disso,</p><p>os trabalhos de Benedict Anderson201 também foram úteis no entendi-</p><p>mento de aspectos da memória.</p><p>A vantagem de ser uma observadora participante no desenvolvi-</p><p>mento da memória reside na natureza imediata da informação com que</p><p>se trabalha. Somando as experiências na pesquisa das campanhas africa-</p><p>nas a um interesse no mapeamento do desenvolvimento da memória,</p><p>identificado e criado pela autora, é possível realizar um estudo de caso</p><p>por meio do qual podemos aferir conclusões e identificar áreas para pes-</p><p>quisas futuras. Do mesmo modo que Deon Fourie e Marius Whittle202</p><p>mencionam a importância de pesquisadores de História Militar terem</p><p>certa experiência no meio para interpretar as ações de comandantes e</p><p>197. WINTER, J. Sites of memory, sites of mourning: The Great War in European cultural history, Cam-</p><p>bridge: Cambridge University Press, 2007.</p><p>198. WINTER, J.; PROST, A. The Great War in history: Debates and controversies, 1914 to the present.</p><p>Cambridge: Cambridge University Press, 2007.</p><p>199. TODMAN, D. The Great War: Myth and memory. London: Hambildon Continuum, 2005.</p><p>200. FUSSELL, P. The Great War and modern memory. Oxford: Oxford University Press, 2000.</p><p>201. ANDERSON, B. Imagined communities. London: Verso, 2006.</p><p>202. FOURIE, D.; WHITTLE, M. Where fact and memory meet: The amateur historian’s contribu-</p><p>tions to military history. Historia, v. 58, 2013, p. 143 - 160.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 110 8/14/2019 17:35:44</p><p>111</p><p>seus oficiais, é útil a um historiador da memória da Primeira Guerra</p><p>Mundial na África ter conhecimento da guerra em si, assim como dos</p><p>vários grupos envolvidos. Contudo, o desafio de ter acesso a narrati-</p><p>vas diretas é a subjetividade da informação. O que é registrado se dá</p><p>por meio da visão da observadora e é influenciado por sua formação,</p><p>cultura, educação e experiência política. Os mesmos fatores impactam</p><p>a análise das descobertas. É o que Winter e Prost chamam de ver “por</p><p>meio do espelho [do país de interesse da historiadora]”.203</p><p>Outro aspecto que necessita esclarecimento, antes de tratar do de-</p><p>senvolvimento da memória em torno das campanhas na África, é o que</p><p>se entende por memória e seu desenvolvimento. A maioria dos estudos</p><p>de memória parece se basear em uma perspectiva psicológica, socio-</p><p>lógica ou cultural. A autora, contudo, está interessada na abordagem</p><p>histórica: apreender a memória como fixa no momento em que ela se</p><p>torna pública. É similar ao que Emile Durkheim denominou de “fato</p><p>social”204. Entender a memória como fixa em um determinado momen-</p><p>to permite que o pesquisador identifique possíveis fatores causais ex-</p><p>ternos que influenciaram seu desenvolvimento até aquele ponto, além</p><p>de explicar as razões pelas quais essas memórias não estão presentes</p><p>em outros tempos e lugares. É uma tentativa de reconciliar a tensão</p><p>identificada por Geoffrey Cubitt entre a noção de que o estudo histórico</p><p>seria “um estudo de um passado acabado, que é acessível para fins de</p><p>estudos acadêmicos apenas por meio dos vestígios materiais que dei-</p><p>xou para trás” e a ideia de “conectar intimamente história e memória</p><p>[...], na qual a noção de um passado nunca se conclui, isto é, nunca é</p><p>plenamente separável do presente no qual é estudada” 205.</p><p>203. Do original: “seeing ‘through the mirror of [the historian’s country of interest]” (WINTER, J.;</p><p>PROST, A., op. cit., p. 194).</p><p>204. JONES, R. A. Emile Durkheim: An Introduction to Four Major Works. Beverly Hills, CA: Sage</p><p>Publications, 1996, p. 60 – 81.</p><p>205. Dos originais: “a study of a past that is now over, that is accessible for the purposes of scholarly</p><p>study only through the material traces it has left behind” e “linking history closely to memory [...]</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 111 8/14/2019 17:35:44</p><p>112</p><p>PANORAMA DAS CAMPANHAS DE GUERRA</p><p>Para contextualizar o desenvolvimento da memória, um breve panora-</p><p>ma das campanhas da guerra é necessário. Alguns dos primeiros tiros</p><p>da Primeira Guerra Mundial foram disparados na África — no proteto-</p><p>rado da Togolândia em 12 de agosto de 1914 e na África Oriental em 8</p><p>de agosto de 1914. Travaram-se batalhas na África Ocidental com tropas</p><p>francesas e britânicas contra a Togolândia alemã e Camarões, onde os</p><p>Aliados tinham o apoio dos belgas.</p><p>Durante os meses de agosto e setembro de 1914, houve incursões ale-</p><p>mãs em Uganda, na África Oriental britânica, no Congo Belga, em Nias-</p><p>salândia e na África Oriental portuguesa, a maioria não autorizada pelo</p><p>governador alemão e que quase levaram Portugal oficialmente à guerra.</p><p>Na África do Sul, o governo da recém-formada União Sul-Africana de-</p><p>clarou apoio ao esforço de guerra britânico e se mobilizou para tomar</p><p>o Sudoeste Africano Alemão. Antes que isso acontecesse, contudo, os</p><p>nacionalistas e anti-imperialistas sul-africanos se rebelaram, criando uma</p><p>oportunidade para a incursão alemã no território português de Angola.</p><p>Togo foi a primeira colônia alemã a se render, em 26 de agosto de</p><p>1914, seguida pelo Sudoeste Africano Alemão em julho de 1915; essa últi-</p><p>ma foi considerada a primeira vitória contra os alemães na imprensa da</p><p>época. Seguiu-se a paz em Camarões, em fevereiro de 1916, mas a África</p><p>Oriental resistiu até depois do armistício de novembro de 1918. As cam-</p><p>panhas fizeram uso de tropas de populações locais — negros, brancos e</p><p>indianos, ainda que apenas soldados brancos tenham sido mobilizados</p><p>no Sudoeste Africano Alemão. Milhares de mensageiros e carregadores</p><p>negros foram recrutados como trabalhadores. Estima-se que, na cam-</p><p>panha da África Oriental, um milhão de pessoas negras locais tenha rea-</p><p>lizado serviços como não combatentes. Outros, como os regimentos da</p><p>Costa do Ouro, da Nigéria e das Índias Ocidentais, além de várias forças</p><p>where the notion of a past is never over [that is] never neatly separable from the present in which it</p><p>is studied” (CUBITT, G. History and memory. Manchester: Manchester University Press, 2007, p. 39).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 112 8/14/2019 17:35:44</p><p>113</p><p>indianas, cruzaram oceanos pela primeira vez para servir em terras es-</p><p>trangeiras, particularmente na África Oriental.</p><p>MENSURANDO A MEMÓRIA</p><p>Como se pode medir as dimensões da memória? É algo intangível e pes-</p><p>soal e apenas tomamos consciência de sua existência quando ela se torna</p><p>pública — tangível ou audível — seja por meio da voz falada ou em algu-</p><p>ma forma de gravação. Pensar como a memória se desenvolveu tem sido</p><p>o foco de muitos trabalhos sobre a Primeira Guerra Mundial. Os estudos</p><p>têm se debruçado particularmente em como se deram transformações</p><p>nas representações e o que pode ser inferido dessas mudanças206. Este</p><p>capítulo assume uma abordagem ligeiramente diferente ao analisar que</p><p>tipo de memória existe e onde ela existe. Trata-se, na verdade, de uma</p><p>tentativa de uma história comparativa ou relacional da memória207.</p><p>Como mencionado anteriormente, o ponto de partida é a África</p><p>Oriental, sendo, até o momento, o foco da pesquisa da autora desde</p><p>que assumiu a Great War in East Africa Association em novembro de 2011.</p><p>No início de 2013, o grupo decidiu expandir e incorporar todas as cam-</p><p>panhas africanas. Essa iniciativa por si só foi significativa na medida em</p><p>que demonstrou, superficialmente, o surgimento do interesse nas cam-</p><p>panhas e, consequentemente, de uma memória. Muitos têm interesse</p><p>em mais de uma campanha no palco</p><p>e culturas de uma forma não necessaria-</p><p>mente inovadora no ofício do historiador. Novos estímulos, entretanto,</p><p>é que parecem ter feito dessa perspectiva a nova tendência. A dita quarta</p><p>geração, nesse contexto e particularmente para com historiadores das</p><p>gerações anteriores, tem relativizado o nacionalismo metodológico e</p><p>produzido uma escrita da guerra não somente em termos europeus.</p><p>Enquanto não cabe aqui discutir quais estímulos seriam esses21, faz -</p><p>-se interessante se perguntar se um fenômeno intrinsecamente rela-</p><p>cional, como as guerras, foi ou tem sido reconhecido como tal. Nesse</p><p>sentido, pode-se tanto se perguntar se teria sido a guerra de 1914-1918</p><p>um conflito espacialmente global, como se teve ela impactos sobre ca-</p><p>tegorias de representações culturais ultrapassando fronteiras políticas.</p><p>20. WINTER, Jay, 2014, op. cit.</p><p>21. Para algumas ideias a respeito, ver MORELI, Alexandre e KREPP, Stella. Defying Ideas and Struc-</p><p>tures: Writing Global History from Latin America, Word History Bulletin, v. XXXIII, 2017a, p. 26-30 e</p><p>MORELI, Alexandre e KREPP, Stella. Quebrar el bloqueo hemisférico: América Latina y lo global,</p><p>Iberoamericana, v. 17, 2017b, p. 245-267.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 12 8/14/2019 17:35:37</p><p>13</p><p>Finalmente, surge a questão de ter sido ela “um mundo em si”, criando</p><p>uma experiência humana multidimensional e singular enquanto durou,</p><p>afetando noções temporais e espaciais, categorias morais e hábitos co-</p><p>tidianos, tanto dentro como fora das trincheiras. Tais questionamentos</p><p>parecem hoje pertinentes tanto para o estudo da Primeira22 quando da</p><p>Segunda Guerras Mundiais23.</p><p>Ademais, enquanto o segundo conflito revelou-se uma experiência</p><p>mundial única, preparada conscientemente por diversos de seus atores</p><p>muito antes da guerra sino-japonesa começar em 1937, ou da invasão da</p><p>Polônia acontecer em 1939, a guerra de 1914-1918 foi o laboratório não</p><p>esperado para um novo mundo em construção desde o século XIX. Ela</p><p>produziu experiências singulares e aceleradas de urbanização, industria-</p><p>lização e de transformação social na Europa, indiscutivelmente, mas</p><p>também em partes tão distantes como Buenos Aires ou o Punjab, onde</p><p>nenhum tiro por ela seria disparado. Tais dimensões só conduzem o</p><p>historiador a uma narrativa ainda mais complexa do período.</p><p>Se a terceira geração teria deixado finalmente a centralidade do Esta-</p><p>do de lado, mas ainda pensando sociedade e cultura a partir do enqua-</p><p>dramento nacional, uma quarta geração parece, então, interessada em</p><p>desconsiderar o fait national24 e tomar suas unidades de análise como</p><p>formadas a partir de fenômenos que desconceituam ou transbordam</p><p>as fronteiras nacionais. Um dos resultados parece ter gerado a perda</p><p>de referências geográficas e temporais mais amplas, como aponta John</p><p>Horne. O historiador, entretanto, diz não se tratar de uma ambição em</p><p>suplantar uma narrativa com outra, mas, ao contrário, de produzir uma</p><p>“conjugação e um diálogo tanto de métodos como de argumentos para</p><p>contribuir com novos entendimentos das experiências do tempo da</p><p>guerra”25.</p><p>22. HORNE, John, op. cit.</p><p>23. AGLAN, Alya; FRANK, Robert (org.). 1937-1947 La Guerre-Monde, v. I e II, Paris, Gallimard, 2015.</p><p>24. FRANK, Robert (org.). Pour l’histoire des relations internationales. Paris: PUF, 2012.</p><p>25. HORNE, John, op. cit.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 13 8/14/2019 17:35:37</p><p>14</p><p>Dada toda essa longa trajetória, uma pergunta, por fim, pode facil-</p><p>mente se apresentar àquele interessado em entender hoje o conflito:</p><p>qual complexidade teve a guerra?</p><p>Como historiadores do início do século XXI, o que oferecemos</p><p>através desta obra coletiva é uma resposta espelhando a complexidade</p><p>da guerra na própria complexidade das sociedades e de suas relações</p><p>tanto naquele tempo como na posteridade. Trata-se de uma forma de</p><p>abordar o período de forma totalizante, impondo às agendas de pes-</p><p>quisa enormes desafios que os textos deste livro pretendem começar a</p><p>resolver ao buscar entender as possíveis dimensões do fazer, do viver e</p><p>do herdar a guerra.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 14 8/14/2019 17:35:37</p><p>15</p><p>APRESENTAÇÃO DOS CAPÍTULOS E</p><p>RESUMO DOS ARGUMENTOS</p><p>Jay Winter, reconhecido historiador e responsável por algumas das</p><p>mais inovadoras incursões sobre o tema, apresenta-nos um capítulo</p><p>onde coloca em questão um dos mais importantes elementos no en-</p><p>tendimento do conflito: a sua cronologia. O historiador propõe uma</p><p>nova data para o fim do conflito, dividindo-o em duas fases: de 1914 a</p><p>1917 e de 1918 a 1923. Teríamos, então, mais do que cinco anos de confli-</p><p>to e uma Segunda Grande Guerra. O aprofundamento da investigação</p><p>sobre o conflito a Leste permitiu, segundo o autor, compreender que a</p><p>guerra não terminara em 1918, antes se estendera até 1923, na forma de</p><p>uma “guerra civil pós-imperial”. O ponto de viragem seria 1917 e seus</p><p>respectivos processos revolucionários, momento em que uma cultura</p><p>de mobilização de guerra é suplantada por uma cultura de ansiedade</p><p>de guerra face à radicalização da violência numa combinação de guerra</p><p>civil, conflito étnico e nacional.</p><p>Maria Inês Tato centra sua atenção na história social e cultural da Pri-</p><p>meira Guerra na Argentina, demonstrando o quão relativa foi a neutra-</p><p>lidade desse país sul-americano, principalmente quando se levam em</p><p>conta as conexões de sua sociedade com os beligerantes. Sua análise</p><p>revela que a guerra não foi travada somente nos campos de batalha,</p><p>mas também se refletiu em outras dimensões da realidade social de seu</p><p>tempo, mesmo em territórios tão distantes dos principais palcos do con-</p><p>flito armado. Tato finalmente nos apresenta uma análise de um Estado</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 15 8/14/2019 17:35:37</p><p>16</p><p>formalmente neutro, mas com uma forte beligerância no plano social e</p><p>cultural.</p><p>Alexandre Moreli procura pensar politicamente os impactos do con-</p><p>flito no longo prazo. Levando em conta o fato de a brutal excepcio-</p><p>nalidade da guerra ter criado o contexto para o início de uma nova</p><p>reestruturação política das relações internacionais, Moreli explora as</p><p>possibilidades de inserção criadas pela prática do liberalismo interna-</p><p>cionalista. A partir do caso brasileiro, analisam-se as percepções sobre</p><p>o novo sistema parlamentar do multilateralismo e as estratégias de</p><p>não alinhamento às grandes potências tanto no imediato pós Primeira</p><p>Guerra, como no pós Segunda Guerra e no pós Guerra Fria.</p><p>Anne Samson lembra os leitores de que a Primeira Guerra foi travada</p><p>em todos os quatro cantos do continente africano, até mesmo contando</p><p>com longas campanhas na África Oriental e Central, ainda que a histo-</p><p>riografia continue de certa forma desatenta a respeito. Utilizando a cam-</p><p>panha da África Oriental como ponto de partida, além de um rico traba-</p><p>lho de campo como participante-observadora, tanto online como offline,</p><p>Samson explora como foram e são lembradas as batalhas e qual o lugar</p><p>da memória em diferentes culturas nesses espaços. Entre os diferentes</p><p>debates que propõe, destaca-se o que discute o lugar de sociedades e tra-</p><p>dições orais prévias à chegada do agente colonizador branco quanto à</p><p>memória sobre a Primeira Guerra em diversas regiões africanas.</p><p>Sílvia Correia oferece um estudo dos processos de rememoração da ex-</p><p>periência da guerra em Portugal. Perante as condições de incredulidade</p><p>colocadas pelo evento-limite, a historiadora explora como os soldados,</p><p>face a uma demanda social de normalização da vida no pós-guerra,</p><p>procuram dar sentido à sua experiência. No enquadramento de uma</p><p>memória cultural, estes homens recorrem a soluções narrativas de um</p><p>passado remoto familiar – neste caso uma linguagem apocalíptica da</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 16 8/14/2019 17:35:37</p><p>17</p><p>tradição católica romana –, contrariando o espírito de laicização e mo-</p><p>dernidade que se fazia antever no século XIX, de forma a dar sentido à</p><p>experiência da guerra, sacralizando-a.</p><p>Santanu Das apresenta um refinado texto, sensível ao fato de</p><p>africano da guerra, tanto no Su-</p><p>doeste Africano e África Oriental ou nas Áfricas Oriental e Ocidental,</p><p>dependendo do conhecimento do pesquisador e do motivo pelo qual</p><p>estuda a guerra. Alguns poucos têm África Oriental e Egito como área</p><p>de interesse, enquanto uma minoria dirige seu foco a todos os palcos do</p><p>continente africano.</p><p>Muitos dos membros da Great War in Africa Association, como é hoje</p><p>conhecida, são também cadastrados no 1914-1918 Forum (que se iniciou</p><p>206. WINTER, op. cit.; WINTER; PROST, op. cit.; TODMAN, op. cit.</p><p>207. WINTER; PROST, op. cit., p. 194.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 113 8/14/2019 17:35:44</p><p>114</p><p>em 2002), onde acontece a maior parte dos debates. Existem outros fó-</p><p>runs ou redes online como, por exemplo, o International Network for the</p><p>Great War in Africa (que começou em 2013), o First World War Studies</p><p>(iniciado em 2000) e a The World War I Discussion List (fundada em 1994).</p><p>Uma análise do conjunto dos membros e das discussões desses fóruns</p><p>pode prover reflexões a respeito do desenvolvimento da memória em</p><p>diferentes comunidades.</p><p>Uma abordagem mais tradicional para mensurar a dimensão da me-</p><p>mória seria uma análise da literatura produzida a respeito das campa-</p><p>nhas. As análises tanto da literatura quanto dos fóruns online são limi-</p><p>tadas àqueles que fazem uso de tecnologia e têm acesso à linguagem</p><p>escrita, de maneira geral. Isso exclui aqueles que, por razões de escolha</p><p>ou circunstância, não têm acesso à internet nem à compra de livros e</p><p>artigos. Para avaliar a dimensão da memória em relação a esse último</p><p>grupo, situações específicas serão descritas e analisadas.</p><p>COMUNIDADES DE REMEMORAÇÃO</p><p>Trabalhar no limite entre acadêmicos e entusiastas expôs uma varie-</p><p>dade de comunidades de rememoração. De modo geral, existem três</p><p>grandes comunidades com interesse nas campanhas de guerra. Essas</p><p>comunidades são a acadêmica, a entusiasta e a do público em geral, sen-</p><p>do que as duas primeiras são interculturais, permitindo que pessoas de</p><p>diferentes países e origens interajam. Dentre elas, a acadêmica está pre-</p><p>dominantemente online, enquanto os entusiastas e o público em geral</p><p>são divididos entre usuários eletrônicos e não-eletrônicos – esses últi-</p><p>mos descobertos por acaso como consequência de conversas ou de in-</p><p>trodução pessoal. Acadêmicos podem ser encontrados em fóruns como</p><p>o First World War Studies e a World War I Discussion List, enquanto os</p><p>entusiastas tendem a dominar o 1914-1918 Forum.</p><p>A Great War in Africa Association (GWAA) e a International Network</p><p>for Great War in Africa (INGWA) são direcionadas a ambas as comuni-</p><p>dades. Contudo, uma análise detalhada da composição de cada uma</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 114 8/14/2019 17:35:44</p><p>115</p><p>sugere que, apesar de os dois grupos estarem representados, a GWAA</p><p>tende mais aos entusiastas e a INGWA aos acadêmicos. Outra compa-</p><p>ração interessante é o foco da GWAA, direcionada principalmente às</p><p>regiões Oriental, Central e Austral da África, com membros ao redor</p><p>do mundo, enquanto a INGWA é mais direcionada à África Ocidental</p><p>e dominada por membros do hemisfério norte. Há certa sobreposição</p><p>dos membros entre os dois grupos. A dimensão do envolvimento na</p><p>Royal West Africa Frontier Force (RWAFF) tem sido difícil de determinar</p><p>na medida em que o grupo não possui um website e seu periódico tem</p><p>acessibilidade limitada.208</p><p>Uma parte importante da vida acadêmica é o circuito de conferên-</p><p>cias, com um paralelo entre os entusiastas nas conversas públicas ou</p><p>encontros de associações. Essa vem sendo uma outra maneira de aces-</p><p>sar as dimensões da memória entre diversas comunidades. No início da</p><p>década de 2000, encontrar uma conferência onde houvesse uma análise</p><p>do palco africano durante a Primeira Guerra Mundial era um desafio.</p><p>Conforme a década progrediu, se tornou possível encontrar um ou dois</p><p>indivíduos interessados. O interesse nesses territórios de guerra cres-</p><p>ceu o suficiente para que fossem organizadas conferências dedicadas à</p><p>África na guerra de 1914 a 1918. Em 2013, a INGWA realizou conferên-</p><p>cias em Lisboa (em junho) e na Universidade de Reims (em novembro),</p><p>enquanto a GWAA organizou em Londres (em 9 de novembro) e na</p><p>Trinity College Dublin (em 28 de novembro). Todas foram prestigiadas</p><p>por diferentes públicos, consistindo principalmente de acadêmicos e en-</p><p>tusiastas, sendo que a autora esteve presente em três das quatro confe-</p><p>rências. Em cada um dos eventos no qual a autora esteve presente havia</p><p>pelo menos trinta participantes. Artigos foram apresentados por acadê-</p><p>micos em todos os eventos, ao passo que o da GWAA foi o único a ter</p><p>208. O mais próximo que há de um site pode ser encontrado em: ; a lista de artigos relacionados à Primeira Guerra Mundial pode ser encon-</p><p>trada em: . Acesso em</p><p>11/12/2018.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 115 8/14/2019 17:35:44</p><p>116</p><p>apresentações de entusiastas também. Todos contaram com a presença</p><p>de pelo menos um africano. Contudo, é significativo que a audiência e</p><p>os conferencistas tenham contado com uma esmagadora maioria bran-</p><p>ca e masculina, exceto pelo evento organizado pela INGWA em Lisboa</p><p>– um ponto explorado adiante neste capítulo.</p><p>O terceiro grupo – o público em geral – tem uma ligeira noção de</p><p>uma ou mais campanhas, mas não se mobiliza ativamente para desco-</p><p>brir mais. A memória é trazida à tona em debates ou como o resultado</p><p>de alguma determinada provocação, como a menção de um livro ou de</p><p>um filme. O seu engajamento a respeito da memória das campanhas é</p><p>invariavelmente, mas não exclusivamente, offline, e, sendo assim, mais</p><p>difícil de calcular: é possível dizer quem escreveu um livro e quando ele</p><p>foi publicado, mas não quem o comprou ou quando foi lido.</p><p>Uma avaliação dos principais fóruns online sustenta a popularidade</p><p>da campanha da África Oriental em relação aos outros palcos de guer-</p><p>ra do continente africano. Uma análise do 1914-1918 Forum identificou</p><p>que, em cada uma das amostras (2008-2009 e 2011-2012), ocorreram</p><p>150 discussões a respeito dessa campanha, sendo que, no recorte en-</p><p>tre 2011 e 2012, averiguou-se a participação de 73 pessoas nesse debate.</p><p>Mais especificamente, das 243 publicações encontradas na subseção</p><p>concernente à África Subsaariana, 134 lidam especificamente com a</p><p>África Oriental, a primeira delas tendo sido publicada em outubro de</p><p>2003. Essa informação contrasta com a existência de 898 tópicos de</p><p>discussão a respeito da campanha de Galípoli e outros 595 a respeito</p><p>da Batalha de Delville Wood. Em dezembro de 2013, havia 291 tópicos</p><p>a respeito da guerra ao sul do Saara, sendo que, desses, 178 eram a</p><p>respeito da África Oriental, 30 sobre o Sudoeste Africano Alemão, 29</p><p>sobre a África Ocidental e outros 28 que lidavam com mais de um pal-</p><p>co africano da guerra. Indagações a respeito da situação específica da</p><p>África do Sul (como, por exemplo, a rebelião de 1914) dizem respeito</p><p>a quinze tópicos, enquanto Sudão, Somalilândia e Egito foram temas</p><p>de seis.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 116 8/14/2019 17:35:44</p><p>117</p><p>Outros fóruns foram identificados por terem pelo menos um tópico</p><p>de debate a respeito de conflitos em solo africano. Esses fóruns vão de</p><p>sites de jogos até grupos de reencenação, de recriação de uniformes,</p><p>filatelia e outros coletivos de colecionadores.209 Colecionadores de me-</p><p>dalhas e aqueles que elaboram tours de campos de batalha são exemplos</p><p>de outras comunidades que estão constantemente procurando informa-</p><p>ção ou são membros dos grupos já existentes.</p><p>A dificuldade com grupos online é identificar onde essas pessoas es-</p><p>tão localizadas ou qual seria seu interesse primordial no grupo ou no</p><p>site. Alguma noção da distribuição dos membros pode ser verificada a</p><p>partir dos dados de composição da GWAA e da INGWA, conforme an-</p><p>teriormente destacado. Em janeiro de 2009, uma enquete que listava</p><p>possíveis razões para o interesse</p><p>na campanha da África Oriental foi pu-</p><p>blicada no 1914-1918 Forum. Sem surpresa, a maioria das pessoas (43%)</p><p>conhecia a campanha na África devido a uma conexão pessoal — envol-</p><p>vimento de um membro da família ou amigo próximo — e 7% declara-</p><p>ram ter vivido em algum país relacionado. O restante veio a conhecer</p><p>as campanhas por meio de serviço militar, investigação de medalhas,</p><p>livros ou filmes ou como uma alternativa aos principais palcos de guer-</p><p>ra na Europa.</p><p>O centenário da Grande Guerra teve uma influência significativa no</p><p>número de pessoas buscando informação, conforme evidenciado pelo</p><p>aumento súbito nas inscrições da GWAA. Com um aumento de cin-</p><p>quenta pessoas entre 2011 e 2012, a GWAA contava com 164 membros</p><p>em dezembro de 2013. Do mesmo modo, uma conta no Twitter específi-</p><p>ca para a Grande Guerra na África Oriental viu o número de seguidores</p><p>crescer em 56 pessoas entre janeiro e dezembro de 2013.210 Esse aumento</p><p>209. GREAT WAR IN AFRICA ASSOCIATION. Disponível em: .</p><p>Acesso em: 11 nov. 2018.</p><p>210. Cento e onze seguidores no Twitter desde 19 de fevereiro de 2012; 56 começaram a seguir em 2013,</p><p>sendo que 10 desses foram entre novembro e 7 de dezembro. Em dezembro de 2018, a GWAA contava</p><p>com 400 membros e 451 seguidores no Twitter.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 117 8/14/2019 17:35:44</p><p>118</p><p>não necessariamente pode ser atribuído a um interesse direto nos pal-</p><p>cos de guerra africanos, mas provavelmente aos aumentos evidenciados</p><p>em outras frentes, como, por exemplo, no Facebook, em sites de colabo-</p><p>ração coletiva ou na GWAA.</p><p>Esse aumento repentino nos interesses se conecta de alguma for-</p><p>ma com as publicações a respeito da campanha da África Oriental. Em</p><p>2012, 275 livros foram identificados a partir de uma busca na British</p><p>Library, na Library of Congress, na European Union Library e na Amazon.</p><p>Essa abordagem é falha na medida em que, desde que esse levanta-</p><p>mento foi feito, foram adicionados cerca de 200 livros à bibliografia</p><p>disponível no site da GWAA. Os resultados da pesquisa dependeram</p><p>de palavras-chave e termos de busca nos variados sites. Apesar dessas</p><p>falhas, esse panorama provoca algumas reflexões interessantes no que</p><p>diz respeito à memória de guerra. Essa seleção consiste de memórias</p><p>de vida e histórias em geral, dividida em oito idiomas e 16 países, sen-</p><p>do majoritariamente composta por livros publicados em inglês (195),</p><p>seguidos por 59 em alemão e o restante em francês (sobre o envolvi-</p><p>mento belga), dinamarquês, italiano, português e polonês. Havia 22</p><p>romances, 101 memórias e biografias, sete teses americanas e duas bri-</p><p>tânicas, 11 textos acadêmicos, quatro filmes (dos quais três baseados</p><p>em livros) e 28 histórias de regimentos, sendo o restante de histórias</p><p>regionais e depoimentos populares. Vinte e um textos eram reimpres-</p><p>sões (alguns com até seis edições), enquanto 17 foram publicados por</p><p>editoras particulares, dos quais seis antes de 1970 – ano que Winter e</p><p>Prost (2007) definem como o fim das publicações de testemunhos de</p><p>pessoas vivas.</p><p>Essa investigação reforça o que se vê nos fóruns de debate e em ou-</p><p>tras redes — a língua dominante da participação parece ser o inglês,</p><p>com interesse em todos os países identificados. As razões para tal in-</p><p>teresse, contudo, variam — anglófonos pertencentes à Commonwealth</p><p>se aproximam do estudo de guerra conforme identificado anterior-</p><p>mente, mas o interesse de alemães e poloneses tem particularidades</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 118 8/14/2019 17:35:44</p><p>119</p><p>geográficas211. O interesse americano, identificado por meio de sete te-</p><p>ses e três obras de ficção, fornece razões adicionais para o desenvolvi-</p><p>mento ou existência da memória. O primeiro grupo, das teses acadêmi-</p><p>cas, apresenta a influência militar. Os militares têm tido um particular</p><p>interesse no palco da África Oriental devido à natureza de “guerrilha”</p><p>ou à mobilidade da campanha. Todas as sete teses dizem respeito à ges-</p><p>tão da campanha por parte do Comandante Paul Von Lettow-Vorbeck.</p><p>Esses trabalhos surgem em dois momentos: na década de 1930 e no iní-</p><p>cio da década de 2000. Esses momentos se conectam com desenvolvi-</p><p>mentos internacionais, particularmente a iminência de uma guerra a</p><p>ser lançada pela Alemanha, que finalmente iniciou-se em 1939 e a guer-</p><p>ra contra o terrorismo. O outro grupo, de romancistas, tomou conhe-</p><p>cimento das campanhas por meio de experiências de trabalho na África</p><p>Oriental. Durante seu tempo na região, os autores ouviram a respeito</p><p>dos conflitos, possivelmente inspirados pelos memoriais de guerra nas</p><p>maiores cidades ou ainda pelo nome de alguma área de reserva de caça,</p><p>como a Selous, cujo famoso caçador de mesmo nome foi morto aos 64</p><p>anos de idade por um franco-atirador em 1916. Por fim, o interesse dina-</p><p>marquês tem se dado por meio de relatos ficcionais e o italiano devido</p><p>às conexões coloniais.</p><p>Uma análise comparativa da literatura produzida sobre a campanha</p><p>com detalhamento das forças envolvidas sugere uma lacuna na memó-</p><p>ria. Um grande número de tropas indianas e um número significativo</p><p>de rodesianos participaram desde 1914, enquanto a África do Sul entrou</p><p>na guerra em 1916 fornecendo soldados brancos e coloured212, trabalha-</p><p>dores negros e maqueiros indianos. Em 1917, vieram tropas da Costa</p><p>do Ouro, da Nigéria e das Índias Ocidentais com apoio de Serra Leoa.</p><p>No entanto, apesar dessa diversidade de participação, encontra-se refe-</p><p>rência somente em obras produzidas por autores brancos. A partir da</p><p>211. GÖTTSCHE, D. Rediscovering Africa: The rediscovery of colonialism in contemporary German</p><p>literature. Rochester: Camden House, 2013.</p><p>212. [Nota dos revisores]: no original.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 119 8/14/2019 17:35:44</p><p>120</p><p>análise de 275 livros, 31 deles (11%) identificam o envolvimento de ne-</p><p>gros, indianos e coloured. Isso não indica a existência de uma memória</p><p>desses grupos, mas, na verdade, uma memória intermediada pela pers-</p><p>pectiva de autores brancos. Essa lacuna indica que a memória através</p><p>de testemunhos diretos da campanha pelos participantes não brancos</p><p>pode muito bem estar perdida para sempre. Qualquer memória futura</p><p>desses grupos será derivada ou construída a partir da memória da co-</p><p>munidade dominante branca, adaptada pelo propósito que estimulou a</p><p>rememoração.</p><p>Uma viagem a Tsavo em 2011 reitera a hipótese da memória media-</p><p>da. Um motorista queniano, de etnia indiana, que havia passado sua</p><p>vida (mais de 60 anos) na área caçando e prestando serviços de safári,</p><p>não fazia ideia de que havia sepulturas e memoriais de guerra não mui-</p><p>to distantes da estrada principal pela qual ele viajava regularmente.213</p><p>Não apenas ele não conhecia os memoriais, como também ignorava</p><p>o fato de que muitos de seus compatriotas tinham perecido na região</p><p>e eram homenageados no memorial. Esse breve encontro o inspirou</p><p>e levou à criação de uma nova memória da campanha, já que ele rapi-</p><p>damente telefonou para seus familiares para contar a respeito de sua</p><p>descoberta. Como resultado, uma memória secundária mediada por</p><p>outros começa a surgir.</p><p>Tal fenômeno ganhou outros exemplos na mesma Região do Tsavo,</p><p>no Quênia, onde fortificações da Primeira Guerra Mundial foram iden-</p><p>tificadas e preservadas por uma equipe de quenianos negros e brancos</p><p>e por guias locais negros que aprenderam sobre a história e a impor-</p><p>tância das fortificações — a partir da perspectiva do homem branco. O</p><p>impacto e o envolvimento das populações prévias à colonização branca</p><p>permanecem ausentes, exceto por menções passageiras, e poderá man-</p><p>ter-se dessa forma, pois determinantes econômicos e tours aos campos</p><p>213. A estrada principal que cruza a área do campo de batalha, de 107 quilômetros de extensão, estava</p><p>para ser asfaltada em 2014. Não há certezas a respeito do impacto que isso terá no meio ambiente ou</p><p>na memória e na preservação dos campos de batalha e dos cemitérios.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 120 8/14/2019 17:35:44</p><p>121</p><p>de batalha garantem que</p><p>a memória branca continue, sendo muito pos-</p><p>sível que em algum momento essa se torne a memória negra da campa-</p><p>nha. Em 2013, esse ponto foi fortalecido pelo lançamento de um trecho</p><p>de notícia a respeito dos campos de batalha no Quênia214.</p><p>Em contraste com a África Oriental, há uma memória autóctone</p><p>mais forte ao redor das campanhas da África Ocidental, conforme no-</p><p>tado pela presença de acadêmicos de Camarões e Argélia na primeira</p><p>conferência da INGWA em junho de 2013. O palco de guerra da África</p><p>Ocidental também dominou a conferência de Reims, em novembro de</p><p>2013, ainda que todos os apresentadores acadêmicos fossem brancos, as-</p><p>sim como a plateia, exceto por seis indivíduos negros e mestiços. A ra-</p><p>zão para tal estado da arte demanda investigação, especialmente porque</p><p>as campanhas da África Ocidental foram de menor duração e a devasta-</p><p>ção da terra e da população menores que na África Oriental.</p><p>CULTURAS DA MEMÓRIA</p><p>Winter e Prost concluem que não há uma única memória da guerra e</p><p>sugerem que existem interpretações nacionais (em oposição à memória</p><p>nacional) dos eventos que, por sua vez, impactam a memória215. Esta</p><p>seção avança com essa hipótese. Além da interpretação nacional dos</p><p>eventos, a memória é mediada por tradições culturais e religiosas. Um</p><p>exemplo do impacto cultural na memória aconteceu durante uma ex-</p><p>cursão por um campo de batalha em Tsavo em 2011.</p><p>Enquanto estávamos em uma colina, onde os alemães mantiveram</p><p>um forte e trincheiras falsas, um grupo de mulheres Masaai se reuniu</p><p>em torno do veículo estacionado abaixo. No retorno do grupo ao veícu-</p><p>lo, as mulheres interrogaram o guia, também um Masaai, sobre o moti-</p><p>vo pelo qual os brancos estavam tão intrigados com aquele árido mon-</p><p>te. Elas eventualmente ficaram satisfeitas, embora não completamente</p><p>214. ENCA. Battlefield tourism takes off in Kenya. 2013 Disponível em: . Acesso em: 2 dez. 2013.</p><p>215. WINTER; PROST, op. cit., p. 194-8.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 121 8/14/2019 17:35:44</p><p>122</p><p>convencidas, de que o sentido da visita era o de “ver onde os soldados</p><p>da grande rainha inglesa tinham lutado contra os soldados do grande</p><p>rei alemão”. Isso elas entenderam, mas não tinham certeza por que o</p><p>local tinha de ser visitado; elas se lembram das realizações de seus gran-</p><p>des líderes por meio de tradições orais que não exigem nenhum objeto</p><p>físico como referência.</p><p>Não há nenhuma clara lembrança oral da guerra entre os Masaai da</p><p>região ou entre a população indiana, o que nos leva à questão: por quê?</p><p>Desde essa experiência, foi encontrada alguma memória entre as po-</p><p>pulações prévias à colonização branca na África Oriental – a maior parte</p><p>capturada na década de 1970, quando reminiscências orais foram registra-</p><p>das por guias de safári brancos que escutavam contos populares sobre os</p><p>envolvidos.216 Não se sabe se essas histórias foram passadas para a próxima</p><p>geração, requerendo maior investigação. Em 2018, foram tomadas medi-</p><p>das a esse respeito quando pesquisadores quenianos locais começaram a</p><p>usar termos diferentes para sondar lembranças. Antes dessa última desco-</p><p>berta, os únicos relatos orais conhecidos haviam sido capturados por Mel</p><p>Page217, que explorou o impacto da guerra na população do Malawi (Nias-</p><p>salândia), e Gerald Rillings, cujas entrevistas com veteranos Kikamba nos</p><p>anos 1980 foram traduzidas para o inglês em 2014.</p><p>Por meio da GWAA, a autora pode identificar uma memória negra</p><p>de segunda geração na África Oriental. A pessoa em questão atualmen-</p><p>te reside em um país onde a genealogia é um interesse crescente. Como</p><p>consequência, essa mesma pessoa foi inspirada a questionar as histó-</p><p>rias que seu pai contava sobre ser carregador tanto das forças alemãs</p><p>quanto das britânicas. Ela pretende, uma vez de volta à África Oriental,</p><p>216. Gerald Rilling registrou em fitas as histórias dos Kikamba (Quênia), cuja cópia está no Imperial</p><p>War Museum London, enquanto que Bror Urme MacDonell (2006) publicou o relato de Mzee Ali ao</p><p>servir o exército alemão na Tanzânia (África Oriental Alemã).</p><p>217. PAGE, M. The Chiwaya war: Malawians and the First World War. Colorado: Westview, 2000 e</p><p>The War of Thangata: Nyasaland and the East African Campaign, 1914-1918. In: Journal of African His-</p><p>tory, v. 19, n. 1, 1978, p. 87-100.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 122 8/14/2019 17:35:44</p><p>123</p><p>descobrir quais outras lembranças de seu pai e da guerra existem entre</p><p>os membros da família. Essa situação sustenta as diferenças culturais da</p><p>lembrança. Se o indivíduo referido não estivesse em uma comunidade</p><p>que procurasse descobrir os detalhes de seus antepassados e se não ti-</p><p>vesse acesso à internet, teria ele considerado explorar mais a fundo a</p><p>história de seu pai? Pode-se inferir que esse desejo de descobrir o passa-</p><p>do está ligado a uma erosão de identidade provocada por sua distância</p><p>das tradições culturais e familiares? Em 2017, a autora pode testemunhar</p><p>mais três negros da África Oriental, residentes na África, começarem a</p><p>explorar o envolvimento familiar e local na guerra.</p><p>Nos últimos anos, a questão de identidade (nacional e pessoal) veio à</p><p>tona particularmente na Grã-Bretanha e é um fenômeno crescente em</p><p>outras comunidades brancas de língua inglesa ao redor do mundo. Isso</p><p>é evidenciado pelo aumento de estudos genealógicos, sugerindo que os</p><p>indivíduos estão olhando para seus antepassados em busca de um sen-</p><p>tido sobre quem são218. Dada a experiência da autora com as mulheres</p><p>Masaai, os indianos quenianos e os tanzanianos negros, bem como ob-</p><p>servando as mudanças que acontecem entre os vários grupos étnicos</p><p>sul-africanos, fica claro que existem diferentes respostas culturais para</p><p>lembrar o passado. Se as comunidades brancas de língua inglesa fossem</p><p>mais confiantes sobre sua identidade e tradições culturais, estariam in-</p><p>vestigando seu passado como atualmente o fazem? E se não estivessem,</p><p>qual seria a memória das campanhas na África?</p><p>Na África do Sul, há uma memória variada sobre a Primeira Guerra</p><p>Mundial. Entre a população branca, particularmente os anglófonos, a</p><p>de Delville Wood é dominante. Sabe-se que a África do Sul obteve o Su-</p><p>doeste Africano Alemão como mandato colonial durante a guerra, mas</p><p>não há muito conhecimento dos detalhes, além de haver fragmentos</p><p>isolados de conhecimento a respeito de aspectos da campanha na África</p><p>218. KRAMER, A-M. Mediatizing memory: History, affect and identity. In: Who do you think you</p><p>are?, European Journal of Cultural Studies, v. 14, n. 4, 2011, p. 428-445.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 123 8/14/2019 17:35:45</p><p>124</p><p>Oriental. Entre a comunidade negra se conhece o navio Mendi, que ori-</p><p>ginou o jardim e a medalha por bravura civil de mesmo nome como</p><p>resultado das canções de protesto entoadas durante a era do apartheid</p><p>pela comunidade Xhosa, embora nem todos soubessem o que estavam</p><p>cantando219. Como consequência da instituição da medalha Mendi e do</p><p>jardim memorial, a comunidade branca tomou conhecimento desse</p><p>navio que afundou ao levar trabalhadores negros sul-africanos para a</p><p>França. Até agora, nenhuma memória significativa da campanha colou-</p><p>red ou indiana na África do Sul foi reconhecida.</p><p>O SS Mendi, que afogou mais de 630 homens — em sua maioria ne-</p><p>gros — quando naufragou na Ilha de Wight em fevereiro de 1917, assim</p><p>como o posto em Delville Wood, no qual mais de 600 homens brancos</p><p>perderam suas vidas mantendo sua posição em julho de 1916, são mais</p><p>conhecidos do que os outros palcos em que sul-africanos serviram. Por</p><p>quê? Todos os incidentes mencionados faziam parte da “guerra do ho-</p><p>mem branco”. A resposta não combinava com a política nacional da</p><p>África do Sul à época, ou desde então. A mesma conclusão pode ser</p><p>tirada em relação a outros países ou territórios envolvidos. No entan-</p><p>to, a memória se perpetuou de várias maneiras como, por exemplo, a</p><p>de Delville Wood, que foi mantida viva publicamente pela população</p><p>branca inglesa que permaneceu</p><p>próxima da Grã-Bretanha e que se or-</p><p>ganizou para comprar a terra e construir o memorial. Como atualmen-</p><p>te não há ganho nacional aparente na promoção dessa memória, uma</p><p>análise de qual memória existe fornece um terreno fértil para os pesqui-</p><p>sadores e o desenvolvimento da lembrança comunal.</p><p>Outro ato de recordação sobre a Primeira Guerra Mundial na África,</p><p>do qual muitos podem não estar cientes, é a Maratona dos Camaradas.</p><p>Essa é uma corrida anual de 56 milhas, ou 90 quilômetros, entre Durban</p><p>e Pietermaritzburg (ou o contrário) na província de Natal (atualmente,</p><p>219. SAMSON, A. The formation of the national memory through war with a particular focus on Britain</p><p>and South Africa during the First World War. Conference paper delivered at Newcastle University, 2006.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 124 8/14/2019 17:35:45</p><p>125</p><p>Kwa Zulu-Natal), na África do Sul. Foi inaugurada no Dia do Império,</p><p>em 24 de maio de 1921, por Vic Clapham, que havia lutado na África</p><p>Oriental e procurou uma maneira de lembrar o que ele e seus compa-</p><p>nheiros tinham sofrido. No entanto, apenas nos últimos anos as origens</p><p>da corrida foram reconhecidas em seu próprio site220.</p><p>O ato de dois minutos (hoje, um minuto) de silêncio praticado em</p><p>muitas partes do mundo no dia 11 de novembro teve origem na África</p><p>do Sul com sir Percy Fitzpatrick, que perdeu um filho na França e teve</p><p>outro servindo na África Oriental. O rei George V da Inglaterra, ao ou-</p><p>vir a ideia de relembrar os envolvidos, emitiu uma ordem para o silên-</p><p>cio em 1919. A ideia de Fitzpatrick de lembrar e contemplar em silêncio</p><p>se desenvolveu a partir de uma prática de guerra da Cidade do Cabo,</p><p>na qual todos os dias, ao meio-dia, todo trabalho era interrompido por</p><p>três minutos em consideração àqueles que lutaram por seu país e seus</p><p>ideais. Isso ajudava a conectar a cidade, tão distante dos combates, com</p><p>seus entes queridos onde quer que estivessem221. Todos estavam unidos</p><p>em luto, alegria, desespero e esperança, independentemente de crença</p><p>cultural ou religiosa.</p><p>Na Namíbia (antigo Sudoeste Africano Alemão), há memoriais em</p><p>alemão para aqueles que perderam suas vidas nas duas guerras mun-</p><p>diais. Pode não ser algo muito surpreendente para a Primeira Guerra</p><p>Mundial, dado que os habitantes alemães da colônia lutaram e morre-</p><p>ram pelo território. No entanto, quando comparados com os memo-</p><p>riais para os mortos da Segunda Guerra Mundial, quando a ex-colônia</p><p>alemã era administrada por um adversário da Alemanha, um novo sig-</p><p>nificado é atribuído aos da Primeira Guerra Mundial. O alemão ainda</p><p>220. COMRADES MARATHON ASSOCIATION. 1920-1925: A soldier’s dream. Disponível em:</p><p>. Acesso em: 10 dez. 2013.</p><p>221. SAMSON, Anne. Mining magnates and World War One., Talk given at Brenthurst Library and</p><p>Boksburg Historical Association in November 2012. 2012a., Disponível em: . Acesso em: 7 December dez. 2013. e</p><p>GREGORY, A. The silence of memory: Armistice Day 1919-1946. Oxford: Berg, 1994, p. 9 - 10.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 125 8/14/2019 17:35:45</p><p>126</p><p>é amplamente falado no país, o que pode ser atribuído ao fato de que,</p><p>dos cerca de 12.000 alemães residentes no país no início da guerra, ape-</p><p>nas 6.000 foram deportados para a Alemanha após a vitória sul-africana.</p><p>Questões de identidade e da política por trás da lembrança vêm à tona e</p><p>precisam ser melhor investigadas.</p><p>A TRAJETÓRIA DA MEMÓRIA</p><p>Analisamos, até o presente momento, a memória contemporânea. En-</p><p>tretanto, vamos também nos debruçar sobre seu desenvolvimento ao</p><p>longo do tempo. O momento das publicações sobre o tema da guer-</p><p>ra, conforme mencionado, fornece alguma ideia a respeito de influên-</p><p>cias externas na memória. Por exemplo, durante o conflito, foram pu-</p><p>blicados vários livros de memórias focados nas forças militares ou em</p><p>grandes grupos de homens contando suas experiências, pois as condi-</p><p>ções eram muito diferentes das do front ocidental. No final de 1916, Jan</p><p>Smuts, o então comandante das tropas na África Oriental, anunciou que</p><p>os alemães haviam sido derrotados e que apenas operações de “limpe-</p><p>za” eram necessárias. Como consequência, muitas tropas voltaram para</p><p>suas bases. Tal processo permitiu que homens e mulheres dos Impérios</p><p>Alemão, Belga e Britânico contassem suas histórias — o número recor-</p><p>de de publicações em 1917 e 1918 é desse momento testemunha222.</p><p>O número de biografias publicadas diminuiu no início da década de</p><p>1920, mas aumentou novamente na década de 1930, quando vemos pu-</p><p>blicações italianas pela primeira vez. Essas últimas surgiram na época de</p><p>crescente tensão na Europa, quando a Itália de Mussolini havia se alia-</p><p>do à Alemanha de Hitler. O então líder italiano via uma futura guerra</p><p>como uma oportunidade para reivindicar territórios africanos que a Itá-</p><p>lia sentiu que lhe foram negados ao final da Primeira Guerra Mundial,</p><p>222. SAMSON, Anne. Reappraising the First World War: A century of remembering the Great War</p><p>in East Africa. Talk given at Imperial War Museum, 10 July 2012. 2012b., Available atDisponível em:</p><p>. Acesso em:</p><p>7 December dez. 2013..</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 126 8/14/2019 17:35:45</p><p>127</p><p>quando o país aliara-se à França e à Grã-Bretanha. Durante este período,</p><p>também houve um aumento no número de memórias alemãs publica-</p><p>das, possivelmente pela mesma razão por trás das publicações italianas.</p><p>O comandante alemão Paul von Lettow-Vorbeck e o ex-governador ale-</p><p>mão Heinrich von Schnee uniram forças, após as negociações de paz em</p><p>Versalhes, para fazer campanha pelo retorno da África Oriental Alemã à</p><p>Alemanha, uma vez que não teria sido derrotada223 .</p><p>As publicações portuguesas têm sido muito escassas – três no total,</p><p>duas em português e uma em inglês. O envolvimento de Portugal na</p><p>campanha foi problemático para todos os envolvidos. Portugal se man-</p><p>teve neutro até abril de 1916. No entanto, os governadores provinciais</p><p>locais na África Oriental apoiaram os alemães, permitindo o contra-</p><p>bando de materiais através do seu território. Quando Portugal entrou</p><p>na guerra, as dificuldades e preocupações em torno da participação do</p><p>país mantiveram-se. Um governo instável, mudando aproximadamente</p><p>a cada seis meses, tampouco ajudou. Seria difícil, portanto, encontrar</p><p>um contexto para inserir o envolvimento de Portugal, que se estendeu</p><p>a quatro forças expedicionárias para a África. Apenas nos últimos anos</p><p>acadêmicos começaram a concentrar-se nesses palcos de guerra, suge-</p><p>rindo que Portugal possa estar pronto para lidar com o seu passado224.</p><p>A Bélgica publicou suas primeiras histórias da campanha em 1917 e</p><p>1918, sendo elas oficiais e dirigidas a glorificar o país. Em um contexto</p><p>mais amplo, esses documentos passam a ser entendidos como justifica-</p><p>tivas, possivelmente motivadas por publicações alemãs e reivindicações</p><p>britânicas, dos motivos pelos quais a Bélgica deveria receber territórios</p><p>na África Oriental ao final da guerra.</p><p>223. Ibid. e World War 1 in Africa: The forgotten conflict among the European powers. London: IB</p><p>Tauris, 2013.</p><p>224. SAMSON, Anne. Reappraising the First World War: A century of remembering the Great War</p><p>in East Africa. Talk given at Imperial War Museum, 10 July 2012. 2012b., Disponível em: ., Accessed Acesso em: 7</p><p>December dez. 2013..</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 127 8/14/2019 17:35:45</p><p>128</p><p>Os anos após a Segunda Guerra Mundial assistiram a um declínio</p><p>geral no número de publicações, embora tenha ocorrido um aumento</p><p>de romances e filmes sobre o palco de guerra. Talvez fosse uma for-</p><p>ma de escapismo — algo mais exótico do que os horrores dos campos</p><p>de concentração. A partir dos anos 1960, há um esgotamento das me-</p><p>mórias, mas percebe-se um aumento no número de textos acadêmicos</p><p>sobre a campanha. O trabalho de Winter e Prost225 sugere que essa ten-</p><p>dência se deve ao desenvolvimento de universidades e estudos acadê-</p><p>micos, assim como à abertura dos arquivos e à morte de veteranos de</p><p>guerra. Bruce Vandervort226 observa que o período entre 1960 e 1990</p><p>foi o auge das publicações sobre a guerra. Esse era o caso até recente-</p><p>mente, pois os textos primários usados pela maioria dos historiadores</p><p>foram publicados depois de 1971. Essas publicações coincidem com os</p><p>protestos contra a guerra do Vietnã, o movimento americano de direi-</p><p>tos civis dos anos 1970 e o movimento internacional antiapartheid do</p><p>final dos anos 1980. Desde 2000, há uma nova “onda” de publicações,</p><p>principalmente de artigos, algumas grandes narrativas que abrangem</p><p>aspectos econômicos, sociais e culturais e romances. Houve também</p><p>um ressurgimento das memórias disponíveis — agora dos descenden-</p><p>tes daqueles que lutaram.</p><p>Uma razão para o aumento da disponibilidade de memórias se deve</p><p>às possibilidades de auto publicação e impressão sob demanda que sur-</p><p>giram por volta de 2010. Ambas práticas trouxeram uma mudança no-</p><p>tável nas publicações: na primeira, os autores podem escrever e produ-</p><p>zir textos livremente, sem qualquer controle e checagem prévios; na</p><p>segunda, os editores são menos seletivos quanto ao que se publica. O</p><p>centenário da Grande Guerra também estimulou muito o interesse. O</p><p>número de periódicos populares está aumentando e diversos artigos</p><p>225. WINTER; PROST, op. cit., p. 202-4.</p><p>226. VANDERVORT, Bruce. New Light on the East African Theater of the Great War: A Review</p><p>Essay of English-Language Sources, in Stephen M. Miller, ed., Soldiers and Settlers in Africa, 1850-1918.</p><p>Leiden, Netherlands: Brill, 2009.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 128 8/14/2019 17:35:45</p><p>129</p><p>sobre a campanha estão aparecendo na internet227. Embora esses sejam</p><p>majoritariamente referenciados e precisos, existe uma pretensão entre</p><p>alguns autores que usam esses meios de que “contar uma boa história”</p><p>deva prevalecer às custas da verdade. No outro extremo, autores estão</p><p>se sentindo limitados pela ameaça de litígio por parte de membros das</p><p>famílias que se recusam ou não aceitam as conclusões extraídas de evi-</p><p>dências documentais. Isso ocorre apesar de a publicação passar pelas</p><p>verificações básicas de uma editora. A colossal fraud, de Brian Garfield228,</p><p>é um exemplo e sua experiência influenciou outros autores em suas</p><p>abordagens.</p><p>Desde que completamos essa revisão da literatura disponível até às</p><p>vésperas do centenário do conflito, várias outras fontes foram descober-</p><p>tas por meio de discussões sobre memória e por meio da lista disponí-</p><p>vel na internet. O acréscimo de mais de 200 títulos e quase 400 artigos</p><p>que precisam ser analisados indica uma memória constante das campa-</p><p>nhas na África, com a da África Oriental sendo a menos esquecida229. O</p><p>número de romances identificados sobre a campanha da África Orien-</p><p>tal, em novembro de 2013, era de 25, em inglês, alemão e dinamarquês,</p><p>além de cinco filmes, dos quais quatro são em inglês e um em alemão.</p><p>Sem dúvida, há mais por vir.</p><p>O advento da internet no início da década de 1990 foi fundamental</p><p>na criação e na manutenção das memórias das campanhas na África.</p><p>Em 1998, uma pesquisa por campanha da África Oriental no mecanismo</p><p>de busca Yahoo gerou cerca de 400 resultados. Em 2013, uma pesquisa</p><p>semelhante gerou 116.000 resultados. Depois de ter trabalhado de for-</p><p>ma isolada até aproximadamente 2004, hoje a autora tem contato direto</p><p>227. GREAT WAR IN AFRICA ASSOCIATION. Disponível em: . Acessado</p><p>em: 11 dez. 2018.</p><p>228. GARFIELD, Brian. The Meinertzhagen Mystery: The Life and Legend of a Colossal Fraud.</p><p>Washington: University of Nebraska Press, 2007.</p><p>229. A África Oriental tem sido cuidadosamente referida como o “front esquecido”, mas é claro que</p><p>existem outras frentes nas quais este título se encaixa mais apropriadamente.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 129 8/14/2019 17:35:45</p><p>130</p><p>com mais de 180 pessoas (acadêmicas, entusiastas, on-line e off-line) em</p><p>todo o mundo interessadas em campanhas na África — somente a Ásia</p><p>está visivelmente ausente dos contatos. Outros são alcançados através</p><p>de redes sociais mais gerais, como grupos do LinkedIn e no Facebook. No</p><p>espaço de um ano, desde que a autora entrou no Facebook em dezembro</p><p>de 2012 sob um pseudônimo e com muito pouco para ser identificada,</p><p>conectou-se com mais de 150 “amigos” interessados na Primeira Guerra</p><p>Mundial. Esse último exemplo demonstra a velocidade com que a me-</p><p>mória de palcos de guerra ou eventos potencialmente esquecidos pode</p><p>ser restabelecida ou criada.</p><p>Os anos do centenário da Guerra, 2014-2018, estimularam algum in-</p><p>teresse e novas pesquisas sobre as campanhas na África, especialmente</p><p>sobre o papel dos carregadores. No entanto, a relutância em trabalhar</p><p>com arquivos tanto no Reino Unido como na África significou a duplica-</p><p>ção de descobertas e a perpetuação de mitos, considerando a confiança</p><p>depositada em material digitalizado que, em relação à África, costuma</p><p>estar desatualizado. A análise de projetos financiados forneceria infor-</p><p>mações valiosas sobre como a “África” é percebida pela diáspora africa-</p><p>na, em comparação com os órgãos financiadores que parecem fundir a</p><p>África e o Caribe no que a autora chama de “Grã-Bretanha Negra”230.</p><p>MEMÓRIA DE QUEM?</p><p>Este capítulo se propôs a explorar o desenvolvimento da memória das</p><p>campanhas africanas da Primeira Guerra Mundial. Três comunidades</p><p>foram identificadas — a acadêmica, a entusiasta e a do público em ge-</p><p>ral. No entanto, dentro e através dessas comunidades há subgrupos</p><p>determinados pela localização, pelo acesso a fontes eletrônicas e cola-</p><p>boração e pela formação cultural ou educacional. Cada subgrupo tem</p><p>230. Ideias iniciais sobre os projetos financiados podem ser encontradas em Anne Samson, The end of</p><p>the war in Africa. In: Anglica, 2018, vol. 305. Disponível em: . Acesso em</p><p>11/12/2018.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 130 8/14/2019 17:35:45</p><p>131</p><p>suas próprias memórias da Grande Guerra na África, com algumas se</p><p>sobrepondo enquanto outras de distinguindo. O estudo também confir-</p><p>mou as lacunas nos relatos de primeira mão, em que certos grupos não</p><p>registraram suas experiências, por qualquer motivo, para que outros as</p><p>pudessem recorrer.</p><p>A maior parte da memória parece ter sido mediada por meio do in-</p><p>glês, embora se reconheça que isso pode ser devido à posição da au-</p><p>tora, na medida que mais textos em francês, alemão e português vêm</p><p>a público. O desafio de obter uma visão completa das campanhas nos</p><p>vários palcos continua sendo relacionado à acessibilidade - em termos</p><p>de linguagem e arquivo, particularmente porque os arquivos africanos</p><p>estariam supostamente em mau estado e com acesso dispendioso.</p><p>A tecnologia tem desempenhado um papel importante na capaci-</p><p>dade de identificar a extensão da memória das campanhas na África,</p><p>embora se reconheça que há memória da campanha entre aqueles sem</p><p>acesso à tecnologia, ainda que essa seja mais difícil de distinguir. Ao</p><p>fazer perguntas ou ao levantar o tópico das campanhas, uma memória</p><p>está sendo gerada. No entanto, saber até que ponto se trata de uma</p><p>memória duradoura é algo que, em muitos casos, permanecerá desco-</p><p>nhecido.</p><p>Onde a memória em primeira mão foi registrada, mesmo que me-</p><p>diada por grupos que não gravaram seus próprios relatos, faz-se possível</p><p>criar uma memória secundária. Tal processo difere-se do da memória</p><p>de segunda geração, em que a primeira é transmitida de uma geração</p><p>para outra dentro das mesmas tradições culturais. Em contraste, a me-</p><p>mória secundária, neste contexto, refere-se a uma memória adotada por</p><p>um grupo a partir de outro, invariavelmente preenchendo lacunas. A</p><p>partir das experiências descritas neste capítulo, entende-se que a criação</p><p>dessas memórias</p><p>é motivada e adotada por razões econômicas, o que,</p><p>por sua vez, levou-nos a nos interrogar sobre qual memória está sendo</p><p>lembrada e perpetuada.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 131 8/14/2019 17:35:45</p><p>132</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>1914-1918 FORUM. Disponível em: . Acesso</p><p>em: 7 dez. 2013.</p><p>ANDERSON, B. Imagined communities. London: Verso, 2006.</p><p>COMRADES MARATHON ASSOCIATION. 1920-1925: A soldier’s dream. Disponível em:</p><p>. Acesso em: 10 dez. 2013.</p><p>CUBITT, G. History and memory. 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Disponível em: . Acesso em: 5 dez. 2013.</p><p>KRAMER, A-M. Mediatizing memory: History, affect and identity. In: Who do you</p><p>think you are?, European Journal of Cultural Studies, v. 14, . 4, 2011, p. 428-445.</p><p>PAGE, M. The Chiwaya war: Malawians and the First World War. Colorado: West-</p><p>view, 2000.</p><p>_____. The War of Thangata: Nyasaland and the East African Campaign, 1914-1918.</p><p>Journal of African History, v. 19, n. 1, 1978, p. 87-100.</p><p>SAMSON, Anne. The end of the war in Africa in Anglica. v. 305, 2018. Disponível em:</p><p>.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 132 8/14/2019 17:35:45</p><p>133</p><p>_____. World War 1 in Africa: The forgotten conflict among the European powers.</p><p>London: IB Tauris, 2013.</p><p>_____. Mining magnates and World War One. Talk given at Brenthurst Library and</p><p>Boksburg Historical Association in November 2012. 2012a. Disponível em: . Aces-</p><p>so em: 7 dez. 2013.</p><p>_____. Reappraising the First World War: A century of remembering the Great War</p><p>in East Africa. Talk given at Imperial War Museum, 10 July 2012. 2012b. Disponível</p><p>em: . Acesso em: 7 dez. 2013.</p><p>_____. The formation of the national memory through war with a particular focus on Bri-</p><p>tain and South Africa during the First World War. Conference paper delivered at New-</p><p>castle University, 2006.</p><p>TODMAN, Dan. The Great War: Myth and memory. London: Hambildon Conti-</p><p>nuum, 2005.</p><p>VANDERVORT, Bruce. New Light on the East African Theater of the Great War: A</p><p>Review Essay of English-Language Sources. In: Stephen M. Miller (Ed.). Soldiers and</p><p>Settlers in Africa, 1850-1918. Leiden: Brill, 2009.</p><p>WINTER, Jay. Sites of memory, sites of mourning: The Great War in European cultural</p><p>history. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.</p><p>WINTER, Jay; PROST, Antoine. The Great War in history: Debates and controversies,</p><p>1914 to the present. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.</p><p>WWI-L. World War I Military History List. Disponível em: . Acesso em: 7 dez. 2013.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 133 8/14/2019 17:35:45</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 134 8/14/2019 17:35:45</p><p>135</p><p>S.O.S. (SAVE OUR SOULS)! REPRESENTAÇÃO</p><p>APOCALÍPTICA E NORMALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA</p><p>NA MEMÓRIA DOS SOLDADOS PORTUGUESES</p><p>DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL231</p><p>S í l v ia Corre ia (Un i vers idade Federa l do R io de Jane i ro, Bras i l )</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>A “dança macabra da morte” tornou-se protagonista na grande catás-</p><p>trofe. A natural sequência das gerações foi suspensa – mais de 10 mi-</p><p>lhões de homens pereceram, a maioria jovem – e consigo a possibilida-</p><p>de de se manter o fio do enredo da vida. A Primeira Guerra Mundial</p><p>aportaria efeitos profundos sobre a política, a sociedade e, acima de</p><p>tudo, aqueles que a combateram. Não foi só um conflito de extensão e</p><p>profundidade totais232, foi também uma experiência muito íntima.</p><p>A I República, que levou Portugal à guerra em 1917, mobilizou mais</p><p>de cem mil homens, dos quais sete mil morreram. As perdas humanas,</p><p>entretanto, vão muito além dos mortos. Apesar de não se ter verifica-</p><p>do confrontos em território metropolitano, a ausência de consenso em</p><p>torno da intervenção na frente europeia e a instabilidade política não</p><p>facilitaram o processo de reconstrução do país pela capitalização reme-</p><p>morativa do esforço de guerra. As políticas de memória da Primeira</p><p>Guerra Mundial resultam de uma negociação durante e após o conflito</p><p>entre os antigos combatentes, mais ou menos organizados, e os republi-</p><p>canos, não obstante a realidade política ter evoluído primeiro para uma</p><p>231. Agradecimento especial a Jay Winter pelas importantes sugestões de fundo, bem como a atenta</p><p>revisão de Pedro Caldas e Francisco Ferreira.</p><p>232. CHICKERING, Roger; FORSTER, Stig (Ed.). The Shadows of Total War. Cambridge: Cambridge</p><p>University Press, 2009.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 135 8/14/2019 17:35:45</p><p>136</p><p>ditadura militar e depois para um regime fascista. Salazar proibiria, em</p><p>1941, ritos à Grande Guerra fora de paredes cemiteriais. Porém, antes do</p><p>advento do fascismo em Portugal, projetos comemorativos prolifera-</p><p>ram. Delineia-se, fundamentalmente durante a I República (1910-1926),</p><p>um conjunto de práticas rememorativas fúnebres centrado no culto dos</p><p>mortos que deram suas vidas não pela nação, mas pela pátria. Estas prá-</p><p>ticas são decalcadas de formas familiares, que os republicados adaptam</p><p>quer da tradição cristã, quer da memória histórica na base da definição</p><p>do estado-nação moderno233. À questão, longamente colocada pela his-</p><p>toriografia, sobre a relação direta entre a banalização da violência na</p><p>guerra e a consequente brutalização da sociedade e da política no pós-</p><p>-guerra234, responde-se com a análise do caso português e uma cultura</p><p>de guerra longe das formas modernas dignas de uma cultura fascizante</p><p>que caracterizaram a memória da guerra em países como a Itália235. É a</p><p>partir do reconhecimento do carácter particular do processo rememo-</p><p>rativo em Portugal que iremos prosseguir para o nosso objeto.</p><p>Lendo as memórias dos soldados portugueses que lutaram na Pri-</p><p>meira Guerra Mundial percebemos como, em um contexto de pós-</p><p>-guerra de exigido retorno à normalidade, os autores mobilizam uma</p><p>certa linguagem e temporalidade apocalípticas, tornando o conflito</p><p>narrável. Isto é, face à estranheza da experiência da guerra moderna</p><p>que suspende a linearidade biográfica, os soldados, lidando com múlti-</p><p>plas camadas de censura, encontram formas de narrar a catástrofe inte-</p><p>grando-a às suas histórias de vida.</p><p>233. CORREIA, Sílvia. Políticas da Memória da I Guerra Mundial em Portugal 1918-1933. Entre a Experiên-</p><p>cia e o Mito. 2011. Tese (Doutoramento em História Política e Institucional), FCSH - UNL, Lisboa, 2011</p><p>e CORREIA, Silvia. Celebrating victory on a day of defeat: commemorating the First World War in</p><p>Portugal, 1918–1933. European Review of History-Revue européenne d’histoire, v. 24, n. 1, p. 108-130,</p><p>2016. p. 108-130.</p><p>234. ISNENGHI, Mario. Il mito della Grande Guerra: da Marinetti a Malaparte. Bari: Laterza, 1970 e</p><p>MOSSE, George L. Le guerre mondiali dalla</p><p>tragedia al mito dei caduti. Roma: Laterza, 1990.</p><p>235. CORREIA, Sílvia, op. cit., 2011 e 2016.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 136 8/14/2019 17:35:45</p><p>137</p><p>Neste capítulo, procuramos expor as ferramentas empregadas pelos</p><p>soldados portugueses em seu esforço para compreender e, assim, nor-</p><p>malizar a sua experiência da guerra. Deixamos de fora, entre muitas</p><p>outras possibilidades analíticas, o silêncio como linguagem de narração.</p><p>Pretendemos analisar as estratégias narrativas nas suas memórias, escri-</p><p>tas no pós-guerra, apresentando por um lado o que motiva os soldados</p><p>a escrever e, por outro, como o fazem em um diálogo com a metanar-</p><p>rativa pública da tragédia. Enfim, trata-se de questionar como os solda-</p><p>dos, depois da guerra, dão sentido à situação de extrema violência para</p><p>a qual são mobilizados e desmobilizados; mais, de compreender como</p><p>a experiência de anonimato massificado da guerra moderna é traduzida</p><p>em uma linguagem de experiência individual, compartilhada por seus</p><p>companheiros soldados, sem que deixe de ser enquadrada por uma me-</p><p>mória cultural.</p><p>TESTEMUNHOS DE CATÁSTROFE</p><p>No período de violência industrial inaugurado em 1914, a guerra, enten-</p><p>dida como evento-limite, “muda a base de continuidade das condições</p><p>de vida dentro da história”236. Essa ideia foi mobilizada por Friedlander</p><p>para tratar o limite da representação do Holocausto, paradigma dos</p><p>estudos da memória. Estendo, aqui, a possibilidade de compreender a</p><p>Primeira Guerra Mundial como um evento-limite, que tanto proliferou</p><p>quanto enfraqueceu linguagens tradicionais de representação. Depois</p><p>desse conflito, o futuro perde a sua força no campo da história, o fata-</p><p>lismo substitui o otimismo do oitocentos e o mais importante torna-</p><p>-se a permeabilidade entre presente e passado237, sendo a memória do</p><p>236. HABERMAS, 1987, p. 163 apud FRIEDLANDER, Saul. Probing the Limits of Representation: Na-</p><p>zism and the “final Solution”. Cambridge; Londres: Harvard University Press, 1992, p. 3 (tradução nos-</p><p>sa). Agradeço a Pedro Caldas as conversas em torno deste conceito no debate sobre Segunda Guerra</p><p>Mundial.</p><p>237. HARTOG, François, The Modern Régime of Historicity in Face of Two World Wars. In: LO-</p><p>RENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber. Breaking up time: negotiating the borders between present, past</p><p>and future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013, p. 124-133.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 137 8/14/2019 17:35:45</p><p>138</p><p>acontecimento catastrófico a janela para a complexidade238 . A memória</p><p>do primeiro conflito mundial passa, em um presente, por uma ressig-</p><p>nificação do passado face à necessidade de viver, ou mesmo sobreviver.</p><p>Não é à toa que é no pós-guerra que, na academia, Maurice Halbwachs</p><p>publica Les Cadres Sociaux de la Mémoire239 e, na política nacional, se con-</p><p>sagra o auge da projeção de “lugares de memória”.</p><p>O evento, pela sua excepcionalidade, suspende a narrativa históri-</p><p>ca, aniquila a causalidade. Aquele que, acometido por essa catástrofe,</p><p>não consegue encontrar no presente um arcabouço narrativo que lhe</p><p>permita narrar a experiência e integrá-la a si mesmo, cai, não raras ve-</p><p>zes, em um silêncio pós-traumático. Consideremos alguns dos termos</p><p>em que a análise da memória traumática foi estruturada. Um desses</p><p>referenciais diz respeito à noção de trauma, entendida como um cho-</p><p>que que ameaça a vida e rompe a sensação de continuidade necessária</p><p>para que um indivíduo mantenha a sua identidade. Para uns, esse im-</p><p>pacto pode ser tão severo que o indivíduo pode nem mesmo inscrever</p><p>traços na memória; a experiência permanece sem lastro e, portanto,</p><p>aquém da recordação. Outros desafiam essa visão, alegando que toda</p><p>a memória é registrada, mas aquele sujeito à experiência traumática</p><p>enterra-a tão profundamente tornando-a inacessível ou virtualmente</p><p>obliterada. Em ambos os casos, a “história catastrófica requer uma mu-</p><p>dança na compreensão, assim como formas sem precedentes de ação e</p><p>resposta”240. Segundo Walter Benjamin, a Primeira Guerra Mundial é o</p><p>momento simbólico em que a “experiência transmitida” é suplantada</p><p>pela “experiência vivida”, frágil, volátil e efêmera, que na dificuldade</p><p>de ser transmitida os soldados convertem numa estória coerente ou</p><p>238. LORENZ, Chris. Blurred Lines. History, Memory and the Experience of Time. International</p><p>Journal for History, Culture and Modernity (HCM), v. 2, n. 1, p. 43–62, 2014. p. 43–62.</p><p>239. HALBWACHS, Maurice. Les Cadres Sociaux de la Mémoire. Paris: Librairie Félix Alcan, 1925.</p><p>240. CARUTH, Cathy. Listening to Trauma: Conversations with Leaders in the Theory and Treatment</p><p>of Catastrophic Experience. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014, p. xiii. (tradução nossa).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 138 8/14/2019 17:35:45</p><p>139</p><p>linear241. Milhões de pessoas, principalmente jovens, foram arrancadas</p><p>de suas estruturas sociais e mentais, exigindo-se a criação de “lugares</p><p>de memória”242, entendidos aqui criticamente como um esforço políti-</p><p>co – público e privado – nostálgico, onde se fixam narrativas, para que</p><p>a velocidade moderna da destruição não afete a memória histórica e</p><p>crie vazios identitários.</p><p>Há uma produção substancial de obras sobre o que Samuel Hynes243</p><p>chama de conto do soldado (soldiers’ tale). Para Nicolas Beaupré a litera-</p><p>tura de guerra surge da busca de uma identidade depois da sua exposi-</p><p>ção à extrema violência, porém “narrativas estabilizadoras de memórias</p><p>instáveis são inerentemente cheias de tensão”244 . O mesmo indivíduo</p><p>pode, segundo Smith245, conter em si várias histórias contraditórias –</p><p>múltiplas identidades – que podem ou não se rever e adequar à me-</p><p>tanarrativa da tragédia. Importa olhar, então, como os testemunhos</p><p>tentaram fixar uma narrativa e um narrador definitivos. Segundo Jay</p><p>Winter246, os soldados usam da autoridade da experiência direta para</p><p>apresentar – e cristalizar – sua “verdade” sobre a guerra. O soldado é</p><p>uma testemunha moral247, aquela que fala por sofrimento próprio, que</p><p>nunca fala no vácuo, pois o que “oferece não é uma verdade simples,</p><p>mas uma construção muito subjetiva das condições extremas sob</p><p>as quais viveram”248. Assim, a testemunha moral refuta a “testemu-</p><p>nha imoral” que higieniza a guerra e a torna pensável, repetível e, até</p><p>241. BENJAMIN apud TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa: UNIPOP, 2012, p. 12.</p><p>242. NORA, Pierre (Dir.). Les lieux de mémoire. République. Paris: Gallimard, 1984. V. I.</p><p>243. HYNES, S. L. The soldiers’ tale: bearing witness to modern war. New York: Penguin, 1997.</p><p>244. BEAUPRÉ, N. Soldier-writers and poets. In: WINTER, J. (Ed.). The Cambridge History of the First</p><p>World War. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 466-467 (tradução nossa).</p><p>245. SMITH, Leonard V. Embattled Self: French Soldiers’ Testimony of the Great War. NY: Cornell</p><p>University Press, 2007.</p><p>246. WINTER, Jay. Remembering war: The Great War between memory and history in the twentieth</p><p>century. Londres; New Haven: Yale University Press, 2006, p. 101.</p><p>247. Este debate ainda será desenvolvido futuramente por nós no âmbito de um artigo sobre o que</p><p>se faz da história pessoal.</p><p>248. WINTER, Jay, op. cit., p. 271 (tradução nossa).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 139 8/14/2019 17:35:46</p><p>140</p><p>mesmo, gloriosa. Esse dever moral de “escrever ao povo português”</p><p>aparece em muitas memórias, como as do republicano António Gran-</p><p>jo249, dando conta do que viu e aprendeu “como é [sua] obrigação de</p><p>patriota”250. Não escrevem de ânimo leve, mas por obrigação numa lin-</p><p>guagem que se diz despretensiosa e que procura trazer apenas a verda-</p><p>de dos fatos sem os “floriados” da escrita profissional:</p><p>Só, muito instantemente, rogado por camaradas e amigos faço hoje sair</p><p>à publicidade estes apontamentos, tomados no próprio logar e logo em</p><p>seguida aos fatos, não por se ligarem à minha pessoa, mas porque, envol-</p><p>vendo outras, eu não tenho, na verdade o direito de os deixar no olvido,</p><p>a que eu próprio os condenava, por uma especial modalidade</p><p>do meu espí-</p><p>rito. Aí vão, pois, desalinhados, quase como figuram no meu canhenho251.</p><p>Reivindicações de autoridade são resultado de demandas contextuais</p><p>e, não raras vezes, servem ao reforço de coletividades identitárias, seja</p><p>comprando narrativas românticas de heroísmo, seja negando-as, evitan-</p><p>do a apropriação política de sua experiência no entreguerras. Reclaman-</p><p>do se afastar de todas as paixões, reivindicação ampla do movimento de</p><p>antigos combatentes em Portugal252, Granjo afirma a natureza apolítica</p><p>do seu testemunho:</p><p>249. Formado em direito, António Granjo foi diretor e proprietário de vários jornais onde contribuiu</p><p>ativamente na propagação dos ideais republicanos. Revelou-se figura central da I República até a sua</p><p>morte na Noite Sangrenta (1921). Além de convicto defensor da intervenção de Portugal na Grande</p><p>Guerra, servindo como oficial miliciano na frente europeia entre maio e dezembro de 1917, escreveu</p><p>sobre o conflito, não o glorificando, mas ressalvando o espírito de sacrifício dos soldados em nome da</p><p>pátria republicana (Leal; Nunes 2012).</p><p>250. GRANJO, António. A Grande Aventura. (Scenas da Guerra). Lisboa: Imprensa Portugal-Brasil,</p><p>S./D. (1920?), p. 181.</p><p>251. OLIVEIRA, Major J. Braz de. O Exército Português em A Grande Guerra. Scenas e Factos. Lisboa:</p><p>Tipografia do Diário de Notícias, 1924, p. 9 (grifo nosso).</p><p>252. CORREIA, Sílvia. The veterans’ movement and First World War memory in Portugal (1918-33):</p><p>between the Republic and Dictatorship. European Review of History-Revue européenne d’histoire, v. 19,</p><p>2012, p. 531-551.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 140 8/14/2019 17:35:46</p><p>141</p><p>Liberto-me de toda a espécie de prejuízo que me prenda a sistemas. Desfa-</p><p>ço-me de toda a espécie de compromissos que me ligue a partidos ou a pes-</p><p>soas. E procuro conseguir que as palavras e os juízos me corram da pena,</p><p>tão natural e verdadeiramente como a luz corre duma chama. Desejarei</p><p>que as minhas palavras toquem o coração do povo, porque desejo medir a</p><p>realidade, como aquela pêndula vai medindo o presente, como o canhão,</p><p>ao longe, vai medindo o futuro253.</p><p>O nosso objeto de estudo é o gênero das memórias de guerra, enten-</p><p>dido como uma forma de narrativa pessoal mais complexa, crítica e refle-</p><p>xiva. Sem grande tradição literária, as narrativas de guerra não almejam</p><p>fazer uma ode à guerra ou procurar a razão para a sua eclosão e seus res-</p><p>ponsáveis, elas “são livros de experiências: são sobre o que aconteceu; e</p><p>como foi sentido”254. O nosso ensaio não procura avaliar a sua qualidade</p><p>literária, apesar da sua popularização no pós-guerra, pois estão longe de</p><p>qualquer tradição; nem esgotar o universo de experiência dos soldados</p><p>portugueses, dado o grau de iliteracia ou os limites que perpassam a litera-</p><p>tura de violência (i.e. autocensura, censura, culpa, trauma, ressentimento</p><p>etc.). Pina de Morais255, em seu segundo livro de memórias, atesta essas</p><p>fronteiras “[t]enho decerto, como todos os combatentes, recordações da</p><p>guerra, que não escrevi no ‘Ao parapeito’, que não escrevi ainda e mes-</p><p>mo não escrevo voluntariamente só porque são tão dolorosas que me faz</p><p>sofrer a sua lembrança” e continua “[n]inguém leu nas minhas páginas a</p><p>ferida da guerra ou a saudade de amor que mais me emocionou”256.</p><p>253. GRANJO, António, op. cit., p. 182.</p><p>254. HYNES, S. L., op. cit., p. 11 (tradução nossa).</p><p>255. João Pina de Morais (1889-1953) partiu para a frente europeia em Abril de 1917, voltaria a Portugal</p><p>no fim da guerra desempenhando papel ativo na defesa da I República, vindo a exilar-se após o golpe</p><p>de 28 de Maio. Próximo ao grupo da Renascença Portuguesa, escreveu sobre a sua experiência no front</p><p>(Disponível em: . Acesso em:</p><p>11 de março de 2019.</p><p>256. MORAIS, Pina de. O Soldado-Saudade na Grande Guerra. Porto: Renascença Portuguesa,</p><p>1921, p. 68.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 141 8/14/2019 17:35:46</p><p>142</p><p>Essas narrativas – próximas da autobiografia, embora “uma narra-</p><p>tiva de guerra diz respeito a uma vida separada que, por mais que per-</p><p>maneça vividamente na memória, não é contínua à vida que o narrador</p><p>vive enquanto escreve”257– procuram dar sentido à experiência pessoal.</p><p>A escrita aparece aqui como meio privilegiado de “eternização e supor-</p><p>te da memória”258, de veiculação de uma experiência vivida. Tendo cons-</p><p>ciência da dimensão de silêncio e invenção, que a guerra inflama, esses</p><p>textos “caracterizam-se não só por uma relação recíproca entre a me-</p><p>mória, a narração e a identidade, como também muitas vezes por uma</p><p>avaliação autorreflexiva dos problemas e das limitações da memória”,</p><p>produzindo uma ficção de memória, onde a “obrigação mimética de re-</p><p>fletir a verdade objetiva”259 é mediada pela inevitável erosão do tempo e</p><p>pelos dispositivos de enquadramento da memória cultural. Assim, dada</p><p>a impossibilidade do testemunho “verdadeiro” sobre o “patrimônio ne-</p><p>gativo” da experiência guerra260, procuramos explorar a memória cul-</p><p>tural que, na perceção de Jan Assmann261, vai muito além do indivíduo,</p><p>o único que legitimamente possui memória, sendo enquadrada social-</p><p>mente em uma interação entre psique, consciência, sociedade e cultu-</p><p>ra. Público e privado, indivíduo e grupo se cruzam e se chocam em</p><p>demandas de normalização da vida no pós-guerra, constituindo uma</p><p>cultura de guerra, onde a necessidade de sobrevivência futura exigirá,</p><p>no presente, capitalizar a experiência associando-a a um passado estável</p><p>mais ou menos remoto. Compor narrativas de guerra torna-se, então,</p><p>parte de uma estratégia para imaginar um futuro quando a memória é</p><p>257. HYNES, S. L., op. cit., p. 8 (tradução nossa).</p><p>258. ASSMANN, Aleida. Espaços de recordação: formas e transformações da memória cultural. Campi-</p><p>nas/SP: Editora da Unicamp, 2012, p. 206.</p><p>259. NUNNING, Ansgar. A “verdade da memória” e o “frágil poder da memória”. A literatura como</p><p>meio de explorar ficções e enquadramentos de memória. In: ALVES, F.; SOARES, L. A.; RODRIGUES,</p><p>C. V. Estudos de Memória. Teoria e análise cultural. Famalicão: Edições Húmus, 2016, p. 221-233.</p><p>260. AMÉRY, Jean. Além do Crime e Castigo. Rio de Janeiro: Contraponto. 2013, p. 178.</p><p>261. ASSMANN, Jan. O que é a ‘Memória Cultural?’. In: ALVES, F.; SOARES, L. A.; RODRIGUES, C.</p><p>V. Estudos de Memória. Teoria e análise cultural. Famalicão: Edições Húmus, 2016, p. 87-116.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 142 8/14/2019 17:35:46</p><p>143</p><p>“domesticada” no sentido de não ser mais capaz de enfraquecer o senso</p><p>de identidade do indivíduo, do eu.</p><p>MITO, MANIQUEÍSMO E ESTRANHEZA</p><p>A demanda de retorno à normalidade colocada a esses homens mos-</p><p>trou-se rapidamente implausível, pois o mundo mudara de forma ir-</p><p>reversível. Esses confrontar-se-iam com resistências às suas estórias.</p><p>Se, por um lado, testemunhar, falar sobre si, implica passar o “fardo”</p><p>para outro (esposa, filho, amigo), por outro lado, revelar incapacidade</p><p>de adequação à normalidade, coloca-os na transgressão262. Para Eric</p><p>Leed, a impossibilidade de esquecer o evento traumático estabelece a</p><p>diferença entre reação normal e anormal – patológica – à experiência de</p><p>guerra, conduzindo a primeira à neurose. Portanto, a “razão pela qual o</p><p>esquecer é pedido aos homens que lutam nas guerras modernas reside</p><p>no fato de que elas são combatidas por homens que devem mudar suas</p><p>identidades, do civil ao soldado e vice-versa”263. Essa condição não pode</p><p>ser negligenciada em uma guerra alimentada por exércitos de cidadãos</p><p>nacionais. Aqueles que, no entanto, não conseguem esquecer, não são</p><p>capazes de forjar essa nova identidade pós-guerra “estável”, exigência</p><p>da sociedade pela qual lutaram, sentem-se desamparados, desapegados</p><p>de seus eus passados. Então, para dar conta dessa demanda de sanitiza-</p><p>ção, lançam mão de uma linguagem – indireta, por vezes irônica – que</p><p>age sobre os acontecimentos, produzindo uma realidade apreensível na</p><p>forma de mitos, superando as condições de incredulidade.</p><p>Uma importante</p><p>escola de pensamento segue a ideia de George</p><p>Mosse de que a criação do mito da experiência de guerra permitiria à</p><p>262. CABANES, Bruno. Negotiating Intimacy in the shadow of war (France, 1914-1920). New Pers-</p><p>pectives in the Cultural History of World War I. French Politics, Culture & Society, v. 31, n. 1, Spring</p><p>2013, p. 16.</p><p>263. LEED, Eric, Fateful Memories: Industrialized War and Traumatic Neuroses. Journal of Contempo-</p><p>rary History, v. 35, n. 1, Special Issue: Shell-Shock, 2000, p. 88. (tradução nossa).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 143 8/14/2019 17:35:46</p><p>144</p><p>nação transcender o horror da guerra e sacralizar a experiência. Esse</p><p>mito da experiência de guerra, segundo Mosse</p><p>resume alguns dos temas que moveram os homens numa ou noutra fase</p><p>da guerra: o espírito de 1914, a guerra como teste à masculinidade, a ideia</p><p>de camaradagem e o culto dos soldados caídos – uma série de atitudes que</p><p>ajudou o homem a confrontar-se e a aceitar esta experiência sem preceden-</p><p>tes e moldou muitas das percepções literárias, artísticas e políticas depois</p><p>da Primeira Guerra Mundial264.</p><p>Em um universo de demanda de sanitização da experiência da guer-</p><p>ra, são criadas soluções narrativas que permitiram aos soldados contar</p><p>a guerra, dando-lhe sentido, um sentido mais alinhado a uma demanda</p><p>do pós-guerra, do que à real experiência da guerra. Experiências tem-</p><p>porais e espaciais complexas são circunscritas a fórmulas maniqueístas</p><p>que apresentam o conflito como a grande catástrofe e o herói, o sol-</p><p>dado das trincheiras, como o mártir. Isto integra aquilo que Leonard</p><p>Smith265 apresenta como metanarrativa da tragédia. Nela, o soldado pos-</p><p>sui duas identidades aparentemente contraditórias, mas que se comple-</p><p>mentam – a vítima e o bruto –, por um lado, exemplo de virtude, pela</p><p>honestidade e bravura, por outro, jovem inconsequente. Assim eram</p><p>os “soldados de Portugal” tão idealmente retratados pela personagem,</p><p>“tão sofredor, tão saudoso, tão alegre, tão valente”, “Joaquim”, em A</p><p>avalanche,266 de Albino Sampaio. Este soldado anônimo, vítima incon-</p><p>sequentemente valente, aparece de forma recorrente nas memórias de</p><p>soldados portugueses:</p><p>264. MOSSE, George L. Two World Wars and the Myth of the War Experience. Journal of Contempo-</p><p>rary History, v. 21, n. 4, 1986, p. 492. (tradução nossa).</p><p>265. SMITH, Leonard V. Embattled Self: French Soldiers’ Testimony of the Great War. Nova Iorque:</p><p>Cornell University Press, 2007.</p><p>266. SAMPAIO, Albino Forjaz. A Avalanche. À margem da Grande Guerra. Lisboa: Santos & Vieira, 1918.</p><p>p. 206.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 144 8/14/2019 17:35:46</p><p>145</p><p>Mas, chegado o período da virilidade, no pleno desenvolvimento das mi-</p><p>nhas faculdades, animado pela chama que cria, conserva a instiga aos altos</p><p>projectos heroicos, vestiram-me uma farda, obrigaram-me a um juramen-</p><p>to terrível, substituindo o meu nome por um número e, arrebanhando-me</p><p>com os outros, mandaram-me aos campos de batalha defender ‘a liberdade</p><p>dos pequenos povos oprimidos’267. 268</p><p>Esse entendimento oferece ao pós-guerra uma narrativa redentora</p><p>onde o conflito teria rompido com as promessas de progresso e racionali-</p><p>dade, depositando-se na vítima a esperança de regeneração da catástrofe.</p><p>Os mitos tornar-se-iam necessários para reconciliar os homens com me-</p><p>mórias realmente inimagináveis. Hermínio Lusitano, pseudônimo dado</p><p>por Lapas Gusmão269 a um de seus soldados, “caminhava, vago, absorto,</p><p>como se houvesse de súbito despertado num mundo desconhecido, estra-</p><p>nho indefinível”270. O cerne das memórias não é o horror da guerra, mas</p><p>a sua diferença de qualquer outra existência imaginável. Em uma estra-</p><p>nha cultura de guerra moderna, relembra Granjo, “[o] essencial é ganhar</p><p>a soma de inconsciência necessária à vida animal em que se transformou</p><p>a existência de toda esta gente que se mata e que range os dentes.”271 A</p><p>experiência da guerra exige um esforço de reconfiguração identitária entre</p><p>uma demanda social e uma imagem de si mesmo que vai além do binaris-</p><p>mo vítima vs perpetrador e o coloca como personagem ambígua.</p><p>Em suma, os soldados estavam muito conscientes de que esta-</p><p>vam presos entre o silêncio e a falsa representação do evento-limite, o</p><p>267. PIMENTA, Eduardo. A Ferro e Fogo. Porto: Renascença Portuguesa, 1919. p. 122.</p><p>268. Eduardo Pimenta (1865-1922) foi tenente-coronel médico no Serviços de Saúde do C.E.P. de ja-</p><p>neiro de 1917 a setembro de 1918 (Disponível em: . Acesso em: 11 de março de 2019).</p><p>269. Lapas de Gusmão (1886-1962) foi militar de carreira, tendo estado a serviço em Angola e, desde</p><p>1917, no C.E.P. Paralelamente, dedicou-se ao jornalismo (Disponível em: . Acesso em: 11 de março de 2019).</p><p>270. GUSMÃO, Lapas. Visão da Guerra. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1932, p. 19.</p><p>271. GRANJO, António, op. cit., p. 101.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 145 8/14/2019 17:35:46</p><p>146</p><p>combate na guerra industrializada. A catástrofe da destruição moderna</p><p>sai do continuum possível da vida vivida e se instala à margem da lingua-</p><p>gem convencional, exigindo fórmulas que deem conta do absurdo e a</p><p>integrem numa lógica familiar.</p><p>MEMÓRIAS NA FORMA APOCALÍPTICA</p><p>Aqui foi o túmulo e o berço da Vida, – o pelourinho e a penitência, o Calvário e a</p><p>Redenção272.</p><p>Augusto Casimiro273 sintetiza, nesse fragmento de Calvários da Flandres,</p><p>a minha chave de leitura das memórias dos soldados portugueses que</p><p>combateram na Grande Guerra: penitência, calvário e redenção.</p><p>Se um conjunto de estudos defendem uma ruptura de modernida-</p><p>de na linguagem cultural provocada pelo conflito, Jay Winter274 vê na</p><p>rememoração da guerra uma abordagem tradicional. Nesse sentido, a</p><p>literatura de guerra não poderia ser diferente: o uso de imagens de tra-</p><p>dição apocalíptica – religiosas à partida, políticas em última instância</p><p>– “mostram como o conflito expandiu o ritmo literário preenchido por</p><p>um conjunto de ícones mais antigos, carregando mensagens sobre o fim</p><p>dos tempos, o colapso da ordem, o julgamento final.”275</p><p>Não se pretende aqui analisar a concretização do gênero literário,</p><p>mas como esses textos ganham forma no universo mais amplo da cul-</p><p>tura de guerra. Os processos de rememoração da Primeira Guerra</p><p>272. CASIMIRO, Augusto. Calvários da Flandres. Porto: Renascença Portuguesa, 1920, p. 192 (grifo</p><p>nosso).</p><p>273. Augusto Casimiro (1889-1967) foi um convicto defensor das ideias republicanas, escritor e militar.</p><p>Mobilizado no front da guerra, escreveu longamente sobre a experiência. Sendo um dos mais reco-</p><p>nhecidos memorialistas do conflito, Casimiro transparece em seus textos uma convicção patriótica</p><p>messiânica do esforço nacional.</p><p>274. WINTER, Jay. Sites of Memory, Sites of Mourning: The Great War in European Cultural History.</p><p>Cambridge: Cambridge University Press, 1998.</p><p>275. Ibid., p. 203 (tradução nossa).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 146 8/14/2019 17:35:46</p><p>147</p><p>Mundial em Portugal são tradicionais, apesar de extraordinariamente</p><p>novos, dada a dimensão e o impacto do conflito, decorrentes de um</p><p>esforço republicano em consolidar uma memória histórica garantido-</p><p>ra de continuidade da identidade nacional276. O mesmo se verifica nos</p><p>testemunhos em questão, onde os soldados lançam mão de estratégias</p><p>narrativas familiares no sentido de tornar a experiência compressível ao</p><p>mundo e a si mesmos.</p><p>A tradição da escrita apocalíptica, facilmente acessível aos portugue-</p><p>ses por via da tradição Católica Romana, aparece nas memórias como</p><p>“uma ‘visão subversiva’, uma afirmação tanto da desgraça quanto da</p><p>justiça divina”277. O Apocalipse pela tríade crise, julgamento e salvação,</p><p>fundamentalmente a partir da sua formulação no último livro do Novo</p><p>Testamento, permite-nos quer o emprego de uma linguagem metafóri-</p><p>ca e alegórica necessária à apresentação de um conflito cuja dimensão</p><p>“desafia</p><p>uma descrição realística”278, quer uma linearidade temporal que</p><p>dá à ficção histórica uma forma possível de racionalidade. O desejo mi-</p><p>mético das memórias transparece no emprego de estratégias narrativas</p><p>próximas aos processos de “entificação” da história na sua matriz judai-</p><p>co-cristã, na medida em que momentos de decadência devem ser consi-</p><p>derados “à luz de uma perspectiva totalizadora e futurante”279. Dito de</p><p>outra forma, a Grande Guerra passa a ser enquadrada como o fim dos</p><p>tempos, culminar de uma grande crise, onde os sacrifícios serão redimi-</p><p>dos pelo julgamento final garantindo uma nova ordem. Vejamos, então,</p><p>como tal processo se materializa numa seleção de memórias de soldados</p><p>portugueses.</p><p>276. CORREIA, Sílvia. Entre Heróis e Mortos: políticas da memória da I Guerra Mundial em Portugal</p><p>(1918-1933). Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2015 e op. cit., 2016.</p><p>277. WINTER, Jay. op. cit, 1998, p. 200-201 (tradução nossa).</p><p>278. KERMODE apud WINTER, op. cit., 1998, p. 202 (tradução nossa).</p><p>279. CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da História. Revista de História das Ideias. v. 23, 2002,</p><p>p. 134.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 147 8/14/2019 17:35:46</p><p>148</p><p>A crise – penitência – é-nos apresentada através de imagens de maca-</p><p>bro terror, dignas de um inferno, onde a baliza entre vivos e mortos se</p><p>esvai. A morte, limiar máximo da existência, é omnipresente quer nas</p><p>descrições mais realistas, quer nas alegorias como o faz António Granjo:</p><p>O sabor desta terra pútrida, a impressão horrível dêstes trapos desfeitos</p><p>que a saliva da morte humedeceu, ficam nos lábios, ficam nos olhos, ficam</p><p>na alma, como nódoas deixadas por larvas. […] desaba sobre o cemitério</p><p>a tempestade de fogo, e as cruzes partidas cirandam no ar e os cadáveres</p><p>saltam das sepulturas, numa dança macabra de membros despedaçados e</p><p>de caveiras partidas entre o fragor das explosões. A história dêsse cadáver,</p><p>que adubou a terra onde nasceram as humildes flores que lhe mando, é</p><p>uma das mais trágicas280.</p><p>Na visão de Pina de Morais281, os vivos em muito pouco se distin-</p><p>guem dos mortos, um amontoado de ossos revestidos de pele – “podes</p><p>apalpar numa massagem a tua caveira, aqueles ossos miseráveis” – que</p><p>terá o mesmo destino – a morte – um destino que se diverte a vê-los</p><p>sobreviver. O destino “ri[...]-se de quem? De quem há-de ser? De nós</p><p>mesmos, como se soubesse todos os fatalismos da existência e se divirta</p><p>a ver-nos viver”. O limbo foi ultrapassado e a guerra já não é a guerra,</p><p>mas o inferno, onde soldados mascarados parecem “figuras satânicas de</p><p>um círculo dantesco”, que “resvalam entre os taludes como fantasmas</p><p>sinistros de um mundo subterrâneo”282. O fim da esperança é anuncia-</p><p>do por Dante às Portas do Inferno. O abandono de uma visão cíclica</p><p>pelo Cristianismo anuncia a importância do tempo histórico. Em uma</p><p>temporalidade cíclica a libertação do sofrimento nunca seria possível.</p><p>Ao contrário, na linear temporalidade, a fé em um futuro de esperança</p><p>280. GRANJO, António, op. cit., p. 139-141.</p><p>281. MORAIS, Pina de. op. cit. , p. 119-120.</p><p>282. GRANJO, António, op. cit., p. 66-67.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 148 8/14/2019 17:35:46</p><p>149</p><p>permite que o passado surja como preparação, o presente como reve-</p><p>lação e o futuro como consumação – não uma epifania, mas uma teo-</p><p>fania. A existência encontra o seu limite, assim como a possibilidade</p><p>de testemunhar. Contudo, “Hermínio”, diante do “labirinto da morte”</p><p>onde “Dante inscrevera no Inferno: ‘Ó Vós entrais...’.” terá a força para</p><p>superar a crise em uma “gloriosa ascensão ao calvário máximo da guer-</p><p>ra”283. O inferno não é o fim, o calvário garantirá a salvação dos mortos,</p><p>pois no dia do julgamento final os sacrificados serão redimidos:</p><p>Que calvários rudes nos faz Deus subir para que a Vida vença e a Sua lei</p><p>domine! ... Poderá sua dôr redimi-los? […] E ao meio da messe enorme</p><p>onde ficam os cadáveres dormindo, ergo-me à aleluia da vitória próxima,</p><p>adivinho a primavera nova, sei que os homens se purificarão dos seus cri-</p><p>mes, maguados dos seus arrependimentos284.</p><p>O sacrifício dos homens simples – os mártires – não foi em vão, as-</p><p>sim como analogamente não foi em vão a morte de Cristo, pois ambos</p><p>voltarão no fim dos tempos. Trata-se do culto à “vítima inocente”, o</p><p>herói pronto para o martírio285. Essa dimensão regeneradora da morte –</p><p>do soldado e da pátria – aparece frequentemente em Augusto Casimiro:</p><p>Mortos?... Porque me custa dizer esta palavra, a mim? A morte não aniqui-</p><p>la, nem reduz os verdadeiros vivos ... E os mortos desta guerra viveram a</p><p>verdadeira vida. A morte, limiar obrigatório da eternidade, aligeirou-os das</p><p>suas e das nossas misérias, fê-los transparentes, e, integrando-os na grande</p><p>corrente de devoção que alaga o mundo e a renova, deu-lhes, a êles que</p><p>tinham sido o silêncio, a resignação do sacrifício, divinas fôrças activas, a</p><p>imaterial existência, a fôrça inexaurível dos símbolos que através das idades</p><p>283. GUSMÃO, Lapas. Visão da Guerra. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1932, p. 22-23.</p><p>284. CASIMIRO, Augusto. Calvários da Flandres. Porto: Renascença Portuguesa, 1920, p. 92-93.</p><p>285. BECKER, Annette. L’histoire religieuse de la guerre 1914-1918. Revue d’histoire de l’Église de France,</p><p>v. 217, 2000, p. 539-549.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 149 8/14/2019 17:35:46</p><p>150</p><p>veem embalando o coração e guardando os sonhos do mundo. Eles são</p><p>todos os mortos, os de hoje e de ontem286.</p><p>Por fim, na hora do julgamento final, os mártires serão redimidos e</p><p>os culpados julgados. Para António Granjo seria “necessária uma sanção</p><p>para tão aviltantes crimes”, pois o “sangue referve num chão de ódio e de</p><p>revolta contra aqueles que rebaixaram a existência humana até a fazerem</p><p>descer à atmosfera mefítica dos canos de esgoto”287. Não se trata de julgar</p><p>um ou outro homem, a causa é maior: a defesa da humanidade. Se Paes</p><p>Mamede288, em Rato Cinzento, vê na guerra a farsa “para o homem subju-</p><p>gar o homem!...”, Pina de Morais, em uma analogia recorrente entre as</p><p>memórias, questiona o sacrifício em prol da humanidade:</p><p>No olhar do soldado transpareceu a piedade que lhe nadava no coração.</p><p>Sem querer tinha pregado como um Nazareno. [...] – A vida é para isto? A</p><p>humanidade? [...]. Um povo inteiro, um planeta todo, não passa miseravel-</p><p>mente de um cordeiro da fabula!289</p><p>A duração e o impacto do conflito levaram necessariamente à criação</p><p>de explicações de nova ordem – a guerra passa a ser em nome da pátria</p><p>contra o inimigo da humanidade, a verdadeira cruzada que combina ele-</p><p>mentos sagrados e lições de cidadania290. O mito da experiência da guerra</p><p>cancela o horror da morte, através de alternativas de purgação com base</p><p>em temas familiares, destacando a imolação em combate de uma geração</p><p>envolvida em uma cruzada291. O soldado-cidadão comum, que se “sacrifi-</p><p>ca alegremente” em defesa da pátria, é elevado ao panteão dos heróis da</p><p>286. Ibid,. p. 177-178 (grifo nosso).</p><p>287. GRANJO, António, op. cit., p. 66-67.</p><p>288. MAMEDE, Coronel Paes. O rato cinzento. Coimbra: Coimbra Editora, 1925, p. 302-303.</p><p>289. MORAIS, op. cit. 1921, p. 59 (grifo nosso).</p><p>290. CORREIA, op. cit., 2011.</p><p>291. MOSSE, op. cit., 1990, p. 7.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 150 8/14/2019 17:35:46</p><p>151</p><p>religião civil, forjando-se como o homem novo, garante do futuro da nação.</p><p>A forma apocalíptica permite, então, narrar a experiência excecional – a</p><p>crise do fim dos tempos – dando-lhe uma linearidade de tradição judaico-</p><p>-cristã, onde o futuro estará garantido pelo sacrifício presente dos márti-</p><p>res, soldados-vítimas que adquirem um papel espiritual e político.</p><p>A aceleração da história, instalada no século XIX, levou a uma renova-</p><p>ção escatológica. A Grande Guerra, a última grande crise que põe fim ao</p><p>século precedente, demandou dos Estados estratégias de reconfiguração</p><p>e reconstrução nacionais. Assim, dando continuidade àquilo que caracte-</p><p>rizou a moderna definição de estado-nação,</p><p>que mais</p><p>se escreveu sobre os quatro principais poetas de guerra ingleses do que</p><p>sobre os quatro milhões de homens não-brancos das colônias que ser-</p><p>viram em combate. Em uma época em que o acesso a vestígios do pas-</p><p>sado parece aumentar exponencialmente para os que sobre ele querem</p><p>escrever, sobretudo se considerada a digitalização dos processos sociais,</p><p>Das alerta para o fato de que o principal desafio de seu trabalho não foi</p><p>o de vencer o eurocentrismo, mas a escassez de fontes. O historiador</p><p>assim conduz o leitor através de sua saga para escrever uma história da</p><p>experiência de guerra dos sepóis indianos, em sua maioria analfabetos e</p><p>que, de próprio punho, não haviam deixado rastro sobre o que viveram.</p><p>Dan Todman, especialista em memória da Primeira Guerra Mundial</p><p>na Inglaterra, traz um debate sobre história urbana. O capítulo resulta</p><p>de um projeto desenvolvido com estudantes de graduação e pretende</p><p>fazer uma “história das ruas”, na medida em que, a partir dos processos</p><p>de mobilização e desmobilização dos soldados da cidade de Londres,</p><p>desconstrói uma série de mitos sobre o Exército Britânico, nomeada-</p><p>mente a ideia de um voluntarismo generalizado em prol da causa na-</p><p>cional. Trata-se de trazer à escala da rua a compreensão da guerra total.</p><p>Vinícius Liebel procura perceber de que forma a tese de uma Segun-</p><p>da Grande Guerra é extensível ao caso alemão. A partir da análise das</p><p>ilustrações do semanário Simplicissimus, Liebel revela que, por mais que</p><p>a ideia da cultura de ansiedade de guerra não tenha em si o mesmo ob-</p><p>jeto/sujeito, ela está francamente presente na sociedade alemã, ressal-</p><p>vando o quanto as novas sensibilidades da guerra devem ser repensadas</p><p>para a Europa Central.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 17 8/14/2019 17:35:37</p><p>18</p><p>Annette Becker leva adiante uma reflexão sobre a natureza total da Pri-</p><p>meira Guerra Mundial. Para a historiadora, a “Grande Guerra foi uma</p><p>tragédia total e global” na medida em que se constatou um aperfeiçoa-</p><p>mento dos processos de violência contra não só o inimigo armado, mas</p><p>fundamentalmente aquele desarmado, designadamente prisioneiros,</p><p>populações ocupadas e, principalmente, aquelas forçadas à deportação</p><p>e extermínio. Não mais a divisão entre frente e retaguarda faria senti-</p><p>do. Entendendo-a como “laboratório para o Século XX”, Becker revela</p><p>como as formas de violência sofisticadas na Grande Guerra, a serviço</p><p>da destruição total, se massificaram e se intensificariam ao longo do sé-</p><p>culo XX.</p><p>AGRADECIMENTOS</p><p>Cabe, finalmente, o reconhecimento de colaborações que tornaram</p><p>este projeto possível. Em especial, agradece-se o apoio financeiro dado</p><p>pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade</p><p>Federal do Rio de Janeiro e a cooperação de Maíra Siman, do Institu-</p><p>to de Relações Internacionais da PUC-RJ, que participou da organiza-</p><p>ção do evento Tempos de Violência, em junho de 2018, tendo reunido, na</p><p>Casa de Rui Barbosa, alguns dos historiadores que aqui publicam seus</p><p>trabalhos, permitindo mais facilmente mobilizá-los para a participação</p><p>neste livro.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>AGLAN, Alya; FRANK, Robert (Org.). 1937-1947 La Guerre-Monde. Paris: Gallimard,</p><p>2015. 2 Vols.</p><p>BECKER, J.-J. 1914. Comment les Français sont entrés dans la guerre: contribution à l’étu-</p><p>de de l’opinion publique printemps-été 1914. Paris: Presses de la Fondation Nationale</p><p>des Sciences Politiques, 1977.</p><p>CORREIA, Sílvia. Cem anos de historiografia da Primeira Guerra Mundial: entre</p><p>história transnacional e política nacional. Topoi, v. 15, n. 29, jul./dez. 2014, p. 650-673.</p><p>FRANK, Robert (Org.). Pour l’histoire des relations internationales. Paris: PUF, 2012.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 18 8/14/2019 17:35:37</p><p>19</p><p>FUSSELL, Paul. The Great War and modern memory. Nova Iorque; Londres: Oxford</p><p>University Press, 1975.</p><p>HORNE, John. End of a Paradigm? The Cultural History of the Great War. Past &</p><p>Present, v. 242, n. 1, 1 February 2019, p. 155–192.</p><p>KEEGAN, John. The face of the battle. Londres: Hutchinson, 1998.</p><p>LEED, Eric. No man’s land: combat and identity in World War I. Nova Iorque: Cam-</p><p>bridge University Press, 1979.</p><p>______ . Fateful memories: industrialized war and traumatic neuroses. Journal of</p><p>Contemporary History, v. 35, n. 1, 2000, p. 85-100.</p><p>MORELI, Alexandre; KREPP, Stella. Defying Ideas and Structures: Writing Global</p><p>History from Latin America. Word History Bulletin, v. XXXIII, 2017a, p. 26-30.</p><p>______ . Quebrar el bloqueo hemisférico: América Latina y lo global. Iberoamerica-</p><p>na, v. 17, 2017b, p. 245-267.</p><p>PROST, Antoine; WINTER, Jay. Penser la Grande Guerre: un essai d’historiographie.</p><p>Paris: Éditions du Seuil, 2004.</p><p>PROST, Antoine. Les anciens combattants et la société française 1914-1939. Paris: Presses</p><p>de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1977. 3 Vols.</p><p>WINTER, Jay. Socialism and the challenge of war: ideas and politics in Britain 1912-18.</p><p>Londres: Routledge, 1974.</p><p>______ (Ed.). The legacy of the Great War: ninety Years On. Columbia; Londres: Uni-</p><p>versity of Missouri Press, 2009.</p><p>______ (Ed.). The Cambridge History of the First World War. Cambridge: Cambridge</p><p>University Press, 2014. 3 vols.</p><p>______. Historiography 1918-Today. In: DANIEL, et al. (Ed.). 1914-1918-online. Inter-</p><p>national Encyclopedia of the First World War. Freie Universität Berlin, Berlin 2014-11-</p><p>11. DOI: 10.15463/ie1418.10498. Disponível em: . Acesso em: 27 dez. 2017.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 19 8/14/2019 17:35:37</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 20 8/14/2019 17:35:38</p><p>21</p><p>1918 E A SEGUNDA GRANDE GUERRA26</p><p>Jay Winter ( Ya le Un i vers i t y, Estados Un idos)</p><p>Neste artigo, apresento uma interpretação bifurcada da história da</p><p>Grande Guerra, dividindo-a em duas partes: a primeira de 1914 a 1917 e a</p><p>segunda de 1918 a 1923. Nesse sentido, irei tirar partido de duas grandes</p><p>mudanças que ocorreram na historiografia nos últimos anos: primeiro,</p><p>o deslocamento do epicentro geográfico da guerra de Paris para Var-</p><p>sóvia e, segundo, a alteração na cronologia da guerra, reconhecendo o</p><p>fracasso em terminar em 1918.</p><p>A interpretação que ofereço sugere a existência de uma crise em 1917</p><p>que separa os primeiros três anos de conflito dos anos que se seguiram,</p><p>resultado de poderosas pressões econômicas e demográficas que deses-</p><p>tabilizaram todos os combatentes, embora mais as potências Centrais</p><p>que os Aliados. Essa crise que diminuíra na Europa Ocidental em 1918,</p><p>continuara de forma exacerbada no Leste Europeu nos cinco anos que</p><p>se seguiram. Ódio, fome e luta de classes foram elementos de radica-</p><p>lização da desordem do mundo pós-imperial, colocado à deriva pelo</p><p>colapso dos impérios dos Romanoff, dos Hohenzollern e dos Habsbur-</p><p>go, além do império Otomano. A violência pós-imperial era endêmica</p><p>nessas regiões, combinando guerra civil, conflitos étnicos e nacionais</p><p>que desembocaram no que podemos chamar de Segunda Grande Guer-</p><p>ra. A minha reivindicação é que a passagem da crise da guerra para a</p><p>26. [Nota do tradutor] Este texto serviu de base à apresentação feita por Jay Winter na Conferência</p><p>Internacional Tempos de Violência no Rio de Janeiro em junho de 2018. Tradução de Fernanda Arouca e</p><p>Gabriela Machado, revisão técnica de Sílvia Correia e Alexandre Moreli.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 21 8/14/2019 17:35:38</p><p>22</p><p>violência pós-imperial foi consistente e parte de uma fase complexa,</p><p>mas distinta, da história europeia, começando em 1918 e terminando</p><p>em cerca de 1923.</p><p>1. DE UMA GUERRA PARA OUTRA</p><p>A ilusão de que a Grande Guerra acabou no dia 11 de novembro de 1918</p><p>desenvolveu-se a partir de uma miopia do front ocidental sobre a guerra,</p><p>de que eu pessoalmente partilhei por demasiado tempo. Há trinta anos,</p><p>argumentei que, entre as muitas razões para o início da guerra em 1914,</p><p>estava o fato de a Grã-Bretanha e da Alemanha estarem preparadas para</p><p>se envolver num conflito armado para controlar o</p><p>a I República portuguesa in-</p><p>tegrou a experiência da guerra em uma narrativa nacional providencial,</p><p>onde símbolos, ritos e heróis são transfigurados em uma espécie de re-</p><p>ligiosidade cívica. Afinal, “os momentos que chamamos crises são fins e</p><p>começos”292. A metanarrativa da tragédia pública coloca o soldado como</p><p>o “‘homem providencial’, que nos resgataria da decadência provocada por</p><p>sucessivos naufrágios, favorecendo, desse modo, vários deslumbramentos</p><p>de messianismo político”293. Para Le Goff294, “[a] laicização da escatologia é</p><p>talvez a primeira e a mais inovadora das metamorfoses da escatologia”.</p><p>Em “Por Portugal”, último capítulo de suas memórias, António Granjo</p><p>manifestamente concretiza essa relação entre o sagrado e o político:</p><p>Creio num destino melhor para a humanidade, mas convenço-me de que</p><p>uma era de definitiva paz e perene abundância será por muito tempo, por-</p><p>ventura por séculos de séculos, uma generosa conceção de poetas e filósofos.</p><p>Por cada guerra, é certo, o povo, ao mesmo tempo que vai juncando a</p><p>estrada de cadáveres, vai dando mais um passo para a sua libertação. Por</p><p>cada revolução, é certo, vai-se criando uma nova ordem de ideas, que se</p><p>292. KERMODE, Frank. The sense of an ending. Studies in the theory of fiction with a new epilogue.</p><p>Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 96 (tradução nossa).</p><p>293. LEAL, Ernesto. A Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-</p><p>1938). Análise Social, v. xxxiii, n. 148, 4, 1998, p. 825-826.</p><p>294. LE GOFF, Jacques. História e memória. São Paulo: Campinas: Editora da UNICAMP, 1990, p. 361.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 151 8/14/2019 17:35:46</p><p>152</p><p>reflecte e fixa nas leis como mais uma conquista de liberdade e de justiça.</p><p>Mas enquanto o direito derivar da fôrça, quer esta seja detida pelas antigas</p><p>classes privilegiadas, por meio de regimes pessoais ou parlamentares, quer</p><p>seja detida pelo operariado, por meio de ditaduras ou pelo govêrno das</p><p>classes, o povo será sempre a fácil presa da tirania295.</p><p>CONCLUSÃO</p><p>Apesar do esforço de secularização da sociedade e do Estado durante a</p><p>I República em Portugal, a literatura de guerra é profundamente mar-</p><p>cada por uma dimensão religiosa de base cristã, agregando a presente</p><p>experiência ao conforto de antigas crenças, independentemente da po-</p><p>sição política e ideológica de quem escreve. Os tipos apocalípticos, em</p><p>um sincretismo de história e religião, permitem dar sentido ao mundo,</p><p>a partir do presente. A memória cultural é, portanto, um conjunto de</p><p>estratégias que ajuda os indivíduos a enquadrar suas memórias do con-</p><p>flito de forma a integrá-los na liturgia nacional.</p><p>Tal esforço foi, para muitos ex-soldados, uma questão de sobrevi-</p><p>vência. Códigos culturais tradicionais, tanto latentes quanto recuperá-</p><p>veis, permitiram que eles escapassem do limbo e se juntassem à nação</p><p>por meio de seus escritos. As memórias dos soldados recorrem a um</p><p>passado remoto para dar sentido ao caos da guerra em que lutaram. A</p><p>inquestionável autoridade moral de quem viveu coloca o passado no</p><p>lugar do sagrado. Porém, nem sempre é assim, e, apesar de não caber</p><p>nesta análise, muitas destas memórias revelam profundas dissonâncias</p><p>de uma narrativa maniqueísta da guerra.</p><p>Tratamos, aqui, de uma manifestação de cultura de guerra trans-</p><p>versal a muitas das experiências nacionais e sociais. Face a uma de-</p><p>manda de normalização da experiência do conflito colocada aos sol-</p><p>dados no pós-guerra – para benefício daqueles que não estiveram lá</p><p>295. GRANJO, António. A Grande Aventura. (Scenas da Guerra). Lisboa: Imprensa Portugal-Brasil,</p><p>S./D. (1920?), p. 182 -184.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 152 8/14/2019 17:35:46</p><p>153</p><p>– , as memórias individuais procuram dar sentido à catástrofe inte-</p><p>grando-a no continuum de suas histórias de vida pela mediação seja</p><p>de metanarrativas públicas devedoras de um projeto de estado-nação</p><p>moderno, seja de liturgias familiares e sagradas de um passado pré-</p><p>-moderno. As catástrofes do presente empurram esses homens, pela</p><p>“inaceitabilidade” de viver à e na margem, definida por si e pelo ou-</p><p>tro, para o retorno às liturgias herdadas que permitirão continuar a</p><p>viver. Até quando guerras e revoluções estarão fadadas a ser eternos</p><p>retornos?</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>AMÉRY, Jean. Além do Crime e Castigo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.</p><p>ASSMANN, Aleida. Espaços de recordação: formas e transformações da memória cul-</p><p>tural. Campinas/São Paulo: Editora da Unicamp, 2012.</p><p>ASSMANN, Jan. O que é a ‘Memória Cultural?’. In: ALVES, F.; SOARES, L. A.; RO-</p><p>DRIGUES, C. V. Estudos de Memória. Teoria e análise cultural. Famalicão: Edições</p><p>Húmus, 2016.</p><p>BEAUPRÉ, N. Soldier-writers and poets. In: WINTER, J. (Ed.). The Cambridge His-</p><p>tory of the First World War. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.</p><p>BECKER, Annette. L’histoire religieuse de la guerre 1914-1918. Revue d’histoire de</p><p>l’Église de France, v. 217, 2000, p. 539-549.</p><p>CABANES, Bruno, Negotiating Intimacy in the shadow of war (France, 1914-1920).</p><p>New Perspectives in the Cultural History of World War I. French Politics, Culture &</p><p>Society, v. 31, n. 1, Spring 2013, p. 1-24.</p><p>CARUTH, Cathy. Listening to Trauma: Conversations with Leaders in the Theory</p><p>and Treatment of Catastrophic Experience. Baltimore: Johns Hopkins University</p><p>Press, 2014.</p><p>CASIMIRO, Augusto. Calvários da Flandres. Porto: Renascença Portuguesa, 1920.</p><p>CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da História. Revista de História das Ideias. v.</p><p>23, 2002, p. 131-234.</p><p>CHICKERING, Roger; FORSTER, Stig (Ed.). The Shadows of Total War. Cambridge:</p><p>Cambridge University Press, 2009.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 153 8/14/2019 17:35:46</p><p>154</p><p>CORREIA, Sílvia. Políticas da Memória da I Guerra Mundial em Portugal 1918-1933. Entre</p><p>a Experiência e o Mito. 2011. Tese (Doutoramento em História Política e Institucio-</p><p>nal), FCSH - UNL, Lisboa, 2011.</p><p>_____. The veterans’ movement and First World War memory in Portugal (1918-33):</p><p>between the Republic and Dictatorship. European Review of History-Revue européenne</p><p>d’histoire, v. 19, 2012, p. 531-551.</p><p>_____. Entre Heróis e Mortos: políticas da memória da I Guerra Mundial em Portugal</p><p>(1918-1933). Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2015.</p><p>_____. Celebrating victory on a day of defeat: commemorating the First World War</p><p>in Portugal, 1918–1933. European Review of History-Revue européenne d’histoire, v. 24, n.</p><p>1, 2016, p. 108-130.</p><p>FRIEDLANDER, Saul. Probing the Limits of Representation: Nazism and the “final So-</p><p>lution”. Cambridge; London: Harvard University Press, 1992.</p><p>GRANJO, António. A Grande Aventura. (Scenas da Guerra). Lisboa: Imprensa Portu-</p><p>gal-Brasil, S./D. (1920?).</p><p>GUSMÃO, Lapas. Visão da Guerra. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1932.</p><p>HALBWACHS, Maurice. Les Cadres Sociaux de la Mémoire. Paris: Librairie Félix Al-</p><p>can, 1925.</p><p>HARTOG, François, The Modern Régime of Historicity in Face of Two World Wars.</p><p>In: LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber. Breaking up time: negotiating the borders</p><p>between present, past and future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013.</p><p>HYNES, S. L. The soldiers’ tale: bearing witness to modern war. New York: Pen-</p><p>guin, 1997.</p><p>ISNENGHI, Mario. Il mito della Grande Guerra: da Marinetti a Malaparte. Bari: Later-</p><p>za, 1970.</p><p>KERMODE, Frank. The sense of an ending. Studies in the theory of fiction with a new</p><p>epilogue. Oxford: Oxford University Press, 2000.</p><p>LEAL, Ernesto. A Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado</p><p>Novo (1918-1938). Análise Social, v. xxxiii, n. 148, 4, 1998, p. 823-851.</p><p>LEAL, Ernesto Castro; NUNES, Teresa. António Granjo: República e Liberdade. Lis-</p><p>boa: Assembleia da República, 2012.</p><p>LEED, Eric. Fateful Memories: Industrialized War and Traumatic Neuroses. Journal</p><p>of Contemporary History, v. 35, n. 1, Special Issue: Shell-Shock, 2000, p. 85-100.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 154 8/14/2019 17:35:46</p><p>155</p><p>LE GOFF, Jacques. História e memória. São Paulo; Campinas: Editora</p><p>da UNI-</p><p>CAMP, 1990.</p><p>LORENZ, Chris. Blurred Lines. History, Memory and the Experience of Time. In-</p><p>ternational Journal for History, Culture and Modernity (HCM), v. 2, n. 1, 2014, p. 43-62.</p><p>MAMEDE, Coronel Paes. O rato cinzento. Coimbra: Coimbra Editora, 1925.</p><p>MORAIS, Pina de. Ao Parapeito. Porto: Renascença Portuguesa, 1919.</p><p>_____. O Soldado-Saudade na Grande Guerra. Porto: Renascença Portuguesa, 1921.</p><p>MOSSE, George L. Two World Wars and the Myth of the War Experience. Journal</p><p>of Contemporary History, v. 21, n. 4, 1986, p. 491-513.</p><p>_____. Le guerre mondiali dalla tragedia al mito dei caduti. Roma: Laterza, 1990.</p><p>NORA, Pierre (Dir.). Les lieux de mémoire. République. Paris: Gallimard, 1984. V. I.</p><p>NUNNING, Ansgar. A “verdade da memória” e o “frágil poder da memória”. A lite-</p><p>ratura como meio de explorar ficções e enquadramentos de memória”. In: ALVES,</p><p>F.; SOARES, L. A.; RODRIGUES, C. V. Estudos de Memória. Teoria e análise cultural.</p><p>Famalicão: Edições Húmus, 2016, p. 87-116.</p><p>OLIVEIRA, Major J. Braz de. O Exército Português em A Grande Guerra. Scenas e Fac-</p><p>tos. Lisboa: Tipografia do Diário de Notícias, 1924.</p><p>PIMENTA, Eduardo. A Ferro e Fogo. Porto: Renascença Portuguesa, 1919.</p><p>SAMPAIO, Albino Forjaz. A Avalanche. À margem da Grande Guerra. Lisboa: Santos</p><p>& Vieira, 1918.</p><p>SMITH, Leonard V.. Embattled Self: French Soldiers’ Testimony of the Great War.</p><p>Nova Iorque: Cornell University Press, 2007.</p><p>TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa: UNIPOP, 2012.</p><p>WINTER, Jay. Sites of Memory, Sites of Mourning: The Great War in European Cultu-</p><p>ral History. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.</p><p>_____. Remembering war: The Great War between memory and history in the twen-</p><p>tieth century. Londres; New Haven: Yale University Press, 2006.</p><p>YPERSELE, Laurence van (Dir.). Questions d’histoire contemporaine: conflits, mémoi-</p><p>res et identités. Paris: PUF, 2006.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 155 8/14/2019 17:35:47</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 156 8/14/2019 17:35:47</p><p>157</p><p>A EXPERIÊNCIA DE GUERRA INDIANA</p><p>NA EUROPA, 1914-1918: FRAGMENTOS,</p><p>FORMAS E SENTIMENTO296</p><p>Santanu Das (Un i vers i t y of Ox ford , Grã-Bretanha)</p><p>No centro de Calcutá, antiga capital da Índia Britânica, está erguido,</p><p>como túmulo honorário, um memorial aos soldados mortos na Pri-</p><p>meira Guerra Mundial. Fortificado, em cada lado, por soldados com</p><p>feições saxônicas e uniformes militares ocidentais, o memorial simulta-</p><p>neamente convida e resiste à assimilação ao tecido cultural da cidade.</p><p>Atualmente situado do lado oposto da estátua de um dos mais impor-</p><p>tantes líderes nacionalistas anticoloniais da Índia, esse memorial im-</p><p>perial de guerra, com suas datas escritas em língua latina e estátuas</p><p>de soldados ingleses, é uma relíquia da Grande Guerra europeia para</p><p>o povo local. Enquanto eu crescia em Calcutá na década de 1980, fan-</p><p>tasias adolescentes, uma educação eurocêntrica e a eliminação quase</p><p>que completa do ensino sobre o serviço militar, na época imperial, da</p><p>história nacionalista da Índia pós-independência — em vez de qualquer</p><p>senso de “comunidade imaginada”297 — me atraíram para essas figu-</p><p>ras que se integravam perfeitamente à poesia de Wilfred Owen ensi-</p><p>nada no Presidency College Kolkata, que reivindicava ter o mais antigo</p><p>departamento de Língua Inglesa do mundo. Foi também sintomático</p><p>da amnésia cultural que marca a memória da classe-média metropoli-</p><p>tana indiana (com exceção de Punjab) sobre a própria participação do</p><p>296. Tradução para o português de Gabriela Machado e Fernanda Arouca. Revisão técnica de Luah</p><p>Tomas, Sílvia Correia e Alexandre Moreli.</p><p>297. ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Natio-</p><p>nalism. Londres, 2001.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 157 8/14/2019 17:35:47</p><p>158</p><p>país no conflito. De fato, a Porta da Índia, que se eleva a 40 metros de</p><p>altura sobre Nova Deli, foi tão perfeitamente assimilada à iconografia</p><p>da Índia pós-independência — é o local do desfile anual do “Dia da</p><p>República” — que dificilmente alguém se lembra que ela foi original-</p><p>mente projetada por Edwin Lutyens como o All India War Memorial em</p><p>1931. Os nomes inscritos nela não são de heróis nacionalistas, mas de</p><p>soldados indianos mortos na Primeira Guerra Mundial e também na</p><p>Terceira Guerra Anglo-Afegã.298</p><p>Entre 1914 e 1918, em uma inversão grotesca do que foi imaginado por</p><p>Joseph Conrad, centenas de milhares de sul-asiáticos, africanos, indianos</p><p>ocidentais e habitantes de ilhas do Pacífico partiram para o coração da</p><p>branquitude para testemunhar o horror da guerra ocidental. Mais de</p><p>quatro milhões de pessoas não-brancas foram recrutadas para os exérci-</p><p>tos da França, Alemanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos; cerca de um</p><p>milhão delas atravessou o solo francês entre 1914 e 1918.299 Dentre todas</p><p>as colônias dos Impérios Francês, Alemão e Britânico, a Índia da época</p><p>(equivalente hoje da Índia, do Paquistão, de Bangladesh e da Birmânia)</p><p>contribuiu com o maior número de homens. De acordo com os regis-</p><p>tros da época, o número total de fileiras indianas recrutadas durante a</p><p>guerra, até 31 de dezembro de 1919, foi de 877.068 combatentes e 563.369</p><p>não-combatentes, totalizando 1.440.437. Ademais, havia 122.000 homens</p><p>(incluindo 90.000 combatentes e 32.000 não-combatentes) recrutados</p><p>nos anos pré-guerra servindo no Exército da Índia Britânica em julho</p><p>de 1914, e cerca de 20.000 nas Tropas de Serviço Imperiais no mesmo</p><p>período. Isso soma mais de 1.5 milhão de indianos servindo no Exército</p><p>da Índia Britânica durante a guerra. Entre agosto de 1914 e dezembro</p><p>de 1919, a Índia enviou ao exterior, para fins de guerra, 622.224 soldados</p><p>298. Neste ensaio, “Índia” e “indiano” se referem à terra e ao povo da Índia Britânica pré-repartição,</p><p>que hoje inclui Índia, Paquistão, Birmânia e Bangladesh.</p><p>299. Para a discriminação dos valores, ver DAS, Santanu (ed.). Introduction. In: Race, Empire and First</p><p>World War Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 27, nota de rodapé 13.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 158 8/14/2019 17:35:47</p><p>159</p><p>e 474.789 não-combatentes.300 Nos quatro anos seguintes, centenas de</p><p>milhares de homens saíram de pequenas e pobres aldeias do norte da</p><p>Índia e do Nepal, tanto combatentes quanto não-combatentes, que se-</p><p>riam pressionados a se juntar a uma das sete divisões partindo para a</p><p>Europa, África Oriental, Mesopotâmia, Sinai e Palestina, Suez e Galípoli.</p><p>A história dos sipais indianos — palavra proveniente do persa sipahi, que</p><p>significa soldado — na Grande Guerra é necessariamente global, de um</p><p>mercado mundial impulsionado pelas forças combinadas do transporte</p><p>moderno e do trabalho colonial barato. Desses, um total de 132.496 in-</p><p>dianos, incluindo tanto combatentes quanto não-combatentes, foram</p><p>enviados para a França até 31 de outubro de 1918; a maioria deles serviu</p><p>entre outubro de 1914 e dezembro de 1915, quando a infantaria foi reti-</p><p>rada e enviada para a Mesopotâmia.301 É a experiência desse grupo de</p><p>homens na Europa que este capítulo irá investigar.</p><p>Mais se escreveu sobre os quatro principais poetas de guerra ingleses</p><p>do que sobre os quatro milhões de homens coloniais não-brancos que</p><p>serviram em combate. Entretanto, o maior desafio que o historiador</p><p>enfrenta hoje não é tanto o do eurocentrismo, mas o da escassez de</p><p>fontes. Os 140.000 trabalhadores chineses, os 166.000 africanos ociden-</p><p>tais, os 140.000 argelinos, os 100.000 vietnamitas ou ainda um milhão de</p><p>indianos que serviram eram amplamente semi ou não-alfabetizados e</p><p>não deixaram para trás a abundância de cartas, diários, cadernos, me-</p><p>mórias, poemas, histórias e romances que formam o pilar da memória</p><p>de guerra europeia. Uma fotografia dos arquivos do Imperial War Mu-</p><p>seum captura o problema com particular pungência. A legenda diz: “Um</p><p>indiano, incapaz de escrever, está colocando a impressão digital de seu</p><p>300. Os valores são do Statistics of the Military Effort of the British Empire during the</p><p>Great War, 1914-1920.</p><p>Londres, 1920, p. 777 e reproduzidos no India’s Contribution to the Great War. Calcutá, 1923. p. 79. Esse</p><p>número vai além dos soldados que já estavam no exército da Índia Britânica no momento da deflagra-</p><p>ção da guerra, estimados em 239.561 (p.777).</p><p>301. India’s Contribution to the Great War. Calcutá, 1923. p. 96.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 159 8/14/2019 17:35:47</p><p>160</p><p>polegar na folha de pagamento em vez de assinar para recebê-lo”.302 Em</p><p>tal contexto, é essencial ir além dos arquivos oficiais e da palavra escrita.</p><p>Um diálogo interdisciplinar entre culturas materiais, textuais, visuais e</p><p>orais — ou o que eu tenho chamado de objetos, palavras, imagens e</p><p>canções — se torna vital para o projeto de escavação histórica. Eu prefi-</p><p>ro a palavra “escavação” para manter o sentido de surpresa, contingên-</p><p>cia e acaso necessariamente envolvidos em um projeto desse tipo, as-</p><p>sim como para acomodar a variedade de fontes: objetos e artefatos das</p><p>trincheiras, cartas censuradas, fotografias, desenhos, pinturas, rumores,</p><p>fofocas, gravações de som e músicas folclóricas, assim como fontes tes-</p><p>temunhais, políticas e literárias.</p><p>É curioso que a “virada cultural” que revolucionou nosso entendi-</p><p>mento sobre a guerra não tenha acontecido até agora com essas histó-</p><p>rias coloniais: ainda não há equivalente, no caso da esfera colonial não-</p><p>-branca, para o trabalho fundamental de Jay Winter, Sites of Memory,</p><p>Sites of Mourning (1995), que abriu um novo caminho para os estudos</p><p>de guerra. É necessário mais tempo e escavação para produzir um tra-</p><p>balho de tal escopo no contexto colonial, mas isso também nos leva</p><p>a perguntar: qual formato deveria ter a história da guerra no contex-</p><p>to não-europeu? De fato, para fazer tal história cultural, torna-se ainda</p><p>mais importante deseuropeizar nossas ferramentas metodológicas e nossas</p><p>fontes históricas. Nós precisamos repensar o que constitui um arquivo</p><p>em uma situação na qual a maioria dos participantes era analfabeta. Os</p><p>próprios Estados pós-coloniais eram ambivalentes sobre a sua participa-</p><p>ção no conflito e tanto os arquivos nacionais quanto os oficiais seriam</p><p>lamentavelmente inadequados. Sem abandonar as fontes tradicionais,</p><p>torna-se crucial visitar, no sentido antropológico, os “lugares” e pro-</p><p>curar famílias e comunidades, investigar os arquivos de outros países</p><p>cujas histórias de guerra se cruzam com a nossa, completar registros de</p><p>302. A fotografia (Q12500) pode ser acessada no site do Imperial War Museum, disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2019.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 160 8/14/2019 17:35:47</p><p>161</p><p>guerra oficiais com fontes não-convencionais e — igualmente impor-</p><p>tante — saber quais perguntas fazer aos materiais colhidos.</p><p>Ainda que alguns trabalhos sobre história social e militar dos sipais</p><p>indianos na Europa durante a Primeira Guerra Mundial tenham sido</p><p>publicados nos últimos anos303, este capítulo procura recuperar as di-</p><p>mensões afetivas da experiência indiana da guerra na França por meio</p><p>de um diálogo entre testemunhos e fontes orais e materiais. Qual será</p><p>a configuração de uma história mais íntima desses indianos chegando à</p><p>Europa pela primeira vez e sendo jogados nas trincheiras ou detidos em</p><p>campos de prisioneiros de guerra na Alemanha? Esta reflexão é parte</p><p>de um estudo mais amplo — India, Empire and First World War Culture:</p><p>Writings, Images and Songs304 — que examina a experiência de guerra de</p><p>sul-asiáticos, combatentes, não-combatentes e civis, homens, mulheres</p><p>e crianças, políticos, artistas e intelectuais da Índia Britânica. Meu foco</p><p>neste capítulo será então no pessoal, nas dimensões testemunhais e vi-</p><p>venciais da experiência de guerra dos combatentes e não-combatentes</p><p>que serviram na Europa entre 1914 e 1918, e na sua relação com as es-</p><p>truturas e modos de representação. Os objetivos são tanto de recupe-</p><p>ração quanto metodológicos: adotaremos uma abordagem interdisci-</p><p>plinar para compreender a plenitude da experiência de guerra desses</p><p>303. Tem havido um aumento do interesse sobre a Índia e a Primeira Guerra Mundial. Ver, por exem-</p><p>plo: ELLINWOOD, DeWitt; PRADHAN, S.D. (org.). India and World War I. Delhi: Manohar, 1978;</p><p>OMISSI, David. The Sepoy and the Raj. Basingstoke : Macmillan, 1994; OMISSI, David (org.). Indian</p><p>Voices of the Great War: Soldiers’ Letters, 1914-1918. Basingstoke: Macmillan, 1999; AHUJA, Ravi; LIE-</p><p>BAU, Heike Liebau; ROY, Franziska Roy (org.). ‘When the War Began, We Heard of Several Kings’: South</p><p>Asian Prisoners in World War I Germany. Delhi: Social Science Press, 2011; DAS, Santanu (org.). Race,</p><p>Empire and First World War Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2011; BASU, Shrabani.</p><p>For King and Another Country: Indian Soldiers on the Western Front 1914-1918.London: Bloomsbury</p><p>Publishing, 2015; JACK, George Morton. The Indians Army on the Western Front, 1914-1915. Cambridge:</p><p>Cambridge University Press, 2014 e The Indian Empire: From Jihad to Victory. Londres: Little, Brown, ,</p><p>2018; SINGH, Gajendra. The Testimonies of the Indian Soldiers and the Two World Wars: Between Self and</p><p>Sepoy. London: Bloomsbury Publishing, 2014 e DAS, Santanu. India, Empire and First World War Culture.</p><p>Cambridge: Cambridge University Press, 2018.</p><p>304. DAS, Santanu. India, Empire and First World War Culture. Cambridge: Cambridge University</p><p>Press, 2018.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 161 8/14/2019 17:35:47</p><p>162</p><p>homens semi ou não-alfabetizados servindo na Europa, e também para</p><p>investigar e questionar materiais primários específicos, particularmente</p><p>seus modos de produção, bem como questões ligadas a gênero, forma</p><p>e estrutura. Começando com alguns vestígios materiais da experiência</p><p>indiana da guerra, devo examinar principalmente três tipos de fontes</p><p>— cartas censuradas, gravações de som e alguns textos literários — e</p><p>investigar as intensidades de significado que produzem quando lidas</p><p>conjuntamente e em contraponto.</p><p>Em seu ensaio Resonance and Wonder, Stephen Greenblatt fala da</p><p>“ressonância” que certos objetos materiais do passado transmitem para</p><p>nós – o tecido surrado de uma cadeira velha, um vaso quebrado por</p><p>Marcel Proust, um par de sapatos pertencentes a uma jovem garota em</p><p>um campo de concentração — por conta de seu “uso, da marca do cor-</p><p>po humano no artefato”, que permite insights sobre a “zona de conta-</p><p>to”, “o espaço encantado” onde o testemunho nasce.305 Isso é particu-</p><p>larmente verdade para os objetos de tempos de guerra, na forma como</p><p>condensam uma história violenta, testemunho e ressonância emocio-</p><p>nal. Artefatos de guerra indianos parecem estar dispersos por todo o</p><p>mundo. Uma visita à casa de um colecionador privado em Ypres, na Bél-</p><p>gica, há alguns anos, possibilitou que fosse encontrado um lota, ou um</p><p>jarro de água, no qual seu dono tinha inscrito seu nome em hindi; em</p><p>um pequeno arquivo em Chandernagore, uma antiga colônia francesa</p><p>em Bengala Ocidental, é possível se deparar com os óculos quebrados e</p><p>manchados de sangue do Dr. J.N. Sem, que lutou como um soldado no</p><p>Regimento Ocidental de Yorkshire, morto em dezembro de 1914 e tal-</p><p>vez o único membro não-branco do Batalhão de Leeds Pals; uma olhada</p><p>no diário do soldado australiano Stinson, em Galípoli, revela uma pá-</p><p>gina em que um sipai indiano assinara seu nome em três línguas.306 Es-</p><p>305. GREENBLATT, Stephen. Learning to Curse: Essays in Early Modern Culture. Nova Iorque: Rout-</p><p>ledge, 1990, p. 172.</p><p>306. Itens pertencentes ao Dr. J.N.Sen, Dupleix House, Chandernagore, Bengala Ocidental, Índia,</p><p>sem numeração; STINSON, Charles. ‘Diary’, Australian War Memorial. Canberra, PR84/066. As</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 162 8/14/2019 17:35:47</p><p>163</p><p>ses artefatos obtêm sua pungência a partir de seu valor enquanto fonte</p><p>histórica, assim como de um constante frenesi entre presença e perda:</p><p>o conforto sensorial das mãos que uma vez conheceram e o lamento de</p><p>sua ausência. Ao terem</p><p>sido presentes afetivos, agentes de troca cultural</p><p>ou apenas itens de uso cotidiano, eles não apenas congelam o tempo e</p><p>servem como arquivos de “toque e intimidade”, mas também apontam</p><p>para narrativas e redes, indicando a natureza multidirecional e palimp-</p><p>séstica da memória de guerra.</p><p>CARTAS COMO LITERATURA: TESTEMUNHO, FORMA E SENTIMENTO</p><p>As cartas censuradas das tropas indianas, majoritariamente armazena-</p><p>das no India Office Library, na Biblioteca Britânica, permanecem sendo</p><p>as fontes mais substanciais, importantes e, ainda assim, tentadoramen-</p><p>te incompletas. “Por que somente uma”, escreveu um médico oficial</p><p>indiano de um navio hospital, “você deveria me escrever toda semana</p><p>ou pelo menos a cada quinze dias”.307 Entre março e abril de 1915, os</p><p>soldados indianos escreviam da França cerca de 10.000 cartas por sema-</p><p>na. Uma fotografia dos arquivos do Imperial War Museum nos dá uma</p><p>pista vital para o processo de composição. Um soldado ferido sentado</p><p>em uma cadeira de rodas dita uma carta a um escrivão: suas mãos al-</p><p>cançam e tocam-no em um gesto de gratidão, intimidade e confiança,</p><p>mostrando o espaço homossocial em que tais cartas eram produzidas.308</p><p>Do mesmo modo, a leitura de cartas era também frequentemente uma</p><p>atividade comunal. Os leitores pretendidos dessas cartas — parentes ou</p><p>fotografias de ambos os objetos podem ser encontradas em meu livro DAS, Santanu, op. cit. 2018, p. 20.</p><p>307. Carta de um cirurgião sub-assistente em um navio hospital na Inglaterra para um amigo em Pe-</p><p>shawar, no início de 1915? Censor of Indian Mails 1914-1918 (Departamento Militar), India Office Library,</p><p>British Library, Londres (daqui em diante abreviada como IOL), L/MIL/5/825/1. Uma boa seleção</p><p>dessas cartas se encontra em OMISSI, David. Indian Voices of the Great War: Soldiers’ Letters, 1914-</p><p>1918. Basingstoke: Macmillan, 1999; também ver OMISSI, David. Europe Through Indian Eyes. English</p><p>Historical Review, v. 122, 2007, p. 371-396 e VISRAM, Rozina. Asians in Britain. Londres: Pluto, 2002, p.</p><p>169-401.</p><p>308. A fotografia é parte da coleção do Imperial War Museum. Seu número de referência é Q053887.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 163 8/14/2019 17:35:47</p><p>164</p><p>amigos nas aldeias — eram geralmente analfabetos. O índice de alfa-</p><p>betização em Punjab, de onde vinham mais da metade das tropas, por</p><p>exemplo, era somente de cinco por cento.309 Em tal cenário, quando</p><p>uma carta chegava da frente de batalha, a família se reunia e a carta era</p><p>lida pelo carteiro ou pelo professor da aldeia.</p><p>Essas cartas originais estão agora perdidas. No entanto, o que sobre-</p><p>viveu são trechos e partes das cartas, que foram traduzidos e extraídos</p><p>pelos censuradores coloniais da época para avaliar a “moral” das tropas</p><p>indianas – com frequência, uma seleção era encaminhada para o chefe</p><p>de censura E.B. Howell. Essas circunstâncias singulares tanto de com-</p><p>posição quanto de recepção das cartas levantam questões sobre a sua</p><p>própria natureza: seriam elas privadas ou públicas? Quanto se pode ge-</p><p>neralizar a respeito do mundo experiencial e íntimo dos indianos com</p><p>base nesses tipos de fragmentos? Como o conhecimento da censura</p><p>colonial afeta o processo de composição? Já no início de 1915, os solda-</p><p>dos perceberam que suas cartas eram lidas e censuradas e elaboraram</p><p>códigos para evitar a censura, como na carta a seguir escrita em abril de</p><p>1915, depois da batalha de Neuve Chapelle, sugerindo que não houvesse</p><p>mais recrutamento: “Acabaram com toda a pimenta preta que veio da</p><p>Índia, então agora a pimenta vermelha está sendo usada. Mas a pimenta</p><p>vermelha é pouco usada e a preta”310. As “pimentas pretas” se referem</p><p>às tropas indianas, enquanto que as “pimentas vermelhas” às inglesas.</p><p>A natureza fortemente mediada desses documentos acaba enfraque-</p><p>cendo o seu valor testemunhal, mas, como David Omissi observa na</p><p>introdução de sua importante antologia Indian Voices of the Great War:</p><p>Soldiers’ Letters, 1914-1918 (1991): “a questão crucial se trata, seguramen-</p><p>te, menos do que não podemos aprender com essas cartas, e sim do</p><p>que nós podemos aprender com elas”.311 Dados seus múltiplos lugares</p><p>309. OMISSI, David (ed.). Introdução. op. cit., 1999, p. 4.</p><p>310. Mausa Ram do Hospital indiano de Kitchener para Naik Dabi Shahai, abril de 1915. Censor of</p><p>Indian Mails 1914-1918, L/MIL/5/825/2, p. 208.</p><p>311. OMISSI, David (ed.), op. cit., 1999, p. 9.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 164 8/14/2019 17:35:47</p><p>165</p><p>de textualidade, a melhor forma de ler essas cartas é, eu defendo, não</p><p>como envelopes transparentes da experiência dos sipais, mas como pa-</p><p>limpsestos nos quais, sob acréscimos de diferentes agências, pode-se ou-</p><p>vir os ecos de seus corações.</p><p>Nos últimos anos, as cartas têm sido usadas para desvendar o mundo</p><p>social desses sipais na Europa.312 Entretanto, elas também são dos mais</p><p>antigos testemunhos de uma história subalterna do sentimento. Pode-se</p><p>imaginar a variedade de emoções — excitação, fascinação, entusiasmo,</p><p>medo, pavor, horror, saudade, pesar, inveja, dúvidas religiosas — que</p><p>os sipais devem ter sentido ao encontrar novas terras, povos e culturas,</p><p>assim como separação, segregação, solidão e uma máquina de guerra</p><p>industrial. Quais formas elas tomaram? Recortadas, citadas e resumidas,</p><p>essas cartas são geralmente exauridas a fim de se obter informações,</p><p>mas raramente são lidas no sentido de que raramente são investigadas</p><p>suas estruturas narrativas, as teias de associações e suposições, ou os</p><p>códigos socioculturais e as nuances da comunidade “sentida” dentro da</p><p>qual elas têm sua ressonância. Para ler essas cartas devidamente, preci-</p><p>samos desenvolver estratégias cuidadosas que se disponham a entender</p><p>não somente o que elas dizem, mas como dizem, para quem dizem e o</p><p>que deixam de dizer.</p><p>Considere a carta a seguir, escrita em 18 de março de 1915 por Amir</p><p>Khan logo após a batalha de Neuve Chapelle, para seu irmão em Punjab:</p><p>O inimigo está se enfraquecendo. Na batalha de 10 de março, até o dia 12,</p><p>de acordo com minhas estimativas, 5.525 alemães foram levados como pri-</p><p>sioneiros de guerra, e foram tomadas 25 armas e metralhadoras. [...] Nosso</p><p>novo exército está fortemente confiante. Onde quer que ele mostre força,</p><p>nossas armas o derrubam de imediato. Por favor, Deus, eu falo com con-</p><p>vicção, nosso Rei — Deus o abençoe — irá vencer e irá vencer logo. [...]</p><p>312. OMISSI, David, op. cit., 2007; VISRAM, Rozina. op. cit., 2002.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 165 8/14/2019 17:35:47</p><p>166</p><p>[Em um pedaço separado de papel] Deus que sabe se a terra da França</p><p>está manchada de pecado ou se o Dia do Julgamento começou na França.</p><p>Para armas e rifles, há um dilúvio, corpos sobre corpos, e sangue fluindo.</p><p>Deus nos proteja, tudo o que aconteceu! Do amanhecer ao anoitecer e do</p><p>anoitecer ao amanhecer, continua como o granizo que caiu no campo de</p><p>Swarra [?]. Mas especialmente nossas armas encheram as trincheiras ale-</p><p>mãs com mortos e as fizeram transbordar de sangue. Deus, nos conceda</p><p>graça, pois graça é necessária. Oh Deus, nos arrependemos! Oh Deus, nos</p><p>arrependemos!313</p><p>A carta se refere à famosa ofensiva de Neuve Chapelle, por volta dos</p><p>dias 9 e 12 de março de 1915, em que o exército indiano foi fortemente</p><p>envolvido e mais de 12.500 homens foram mortos ou feridos. Referin-</p><p>do-se à mesma ofensiva, outro sipai escreve: “Quando nós alcançamos</p><p>suas trincheiras, usamos a baioneta e o kukri e sangue foi derramado</p><p>tão livremente que não podíamos nos reconhecer”.314 Tais descrições de</p><p>combate corpo-a-corpo e de matança estão ausentes na descrição de</p><p>Amir Khan; em vez disso, temos um drama textual em dois pedaços</p><p>de papel. Seria uma tentativa de evitar os censuradores, ou um teste-</p><p>munho de um conflito interno entre o endosso (oficial) da vitória e sua</p><p>angústia interna, entre um superego oficial e um instinto traumatizado?</p><p>Izzat, como ensina Ravi Ahuja, é um termo polissêmico extraordina-</p><p>riamente complexo, com múltiplas filiações e conotações.315 Se a vitória</p><p>estava ideologicamente no domínio da noção estato-patrocinada de iz-</p><p>zat, ou honra, o cerne moral, um domínio concorrente de izzat, é vio-</p><p>lado pelo sentido visceral de culpa: “Oh Deus nos arrependemos, oh</p><p>313. KHAN. Amir. 129º [Balúchis] da França, para seu irmão em Punjabi, 18 de março de 1915, IOL, L/</p><p>MIL/5/825/2, p. 141-2.</p><p>314. Departamento Militar, Censor of Indian Mails 1914-1918, L/MIL/5/825.</p><p>315. AHUJA, Ravi. The Corrosiveness of Comparison. In: AHUJA, Ravi; BROMBER, Katrin; HAM-</p><p>ZAH, Dyala; LIEBAU, Heike (eds.). The World in World Wars. Experiences, Perceptions and Perspecti-</p><p>ves from Africa and Asia. Studies in Global Social History, Vol. 5. Leiden: Brill, 2010, p. 131-166.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 166 8/14/2019 17:35:47</p><p>167</p><p>Deus nos arrependemos”. De fato, declarações de “lealdade” nas cartas</p><p>não podem ser aceitas como corretas, uma vez que os soldados estavam</p><p>muito conscientes de que elas eram censuradas e, de fato, como uma</p><p>recente pesquisa sobre literatura local dos tempos de guerra revela, há</p><p>frequentemente uma tendência subversiva, quase paródica, em afirma-</p><p>ções exageradas de lealdade. O que a carta supracitada aponta são emo-</p><p>ções conflitantes e ambivalência moral, ampliando a tese do “comba-</p><p>tente interior”316 para o domínio de participantes coloniais não-brancos.</p><p>Elas nos auxiliam a ir além dos binários simplistas que caracterizam os</p><p>sipais como homens leais e valentes ou infelizes e subalternos mudos.</p><p>Em vez disso, os mostra, assim como soldados europeus, como indiví-</p><p>duos com histórias emocionais complexas.317</p><p>Essas cartas não são a transcrição da experiência nas trincheiras,</p><p>tampouco apenas embelezamento dos escrivães, mas sim alguns dos</p><p>encontros mais antigos entre forma textual e história subalterna sul-a-</p><p>siática. Considerando os problemas de alfabetização e censura, é sur-</p><p>preendente o quanto os sipais conseguiram incluir em suas correspon-</p><p>dências: de relatos detalhados de suas primeiras impressões da Europa</p><p>até vinhetas sobre a guerra e observações sobre questões de gênero,</p><p>educação e distinções de classe. Em uma primeira leitura, as cartas dos</p><p>sipais parecem ser bastante funcionais, com um objetivo triplo: dar in-</p><p>formação, oferecer conselhos e fazer pedidos. Se lermos mais intensa-</p><p>mente, penetrando nesses relatos — codificados em narrativas, mergu-</p><p>lhados em metáforas — está a intimidade do corpo trêmulo dos sipais</p><p>indianos e de seu mundo de sentimentos. As cartas são assombradas</p><p>por imagens relacionadas ao coração: “Meu coração deseja se aliviar”,</p><p>“Meu coração estava dia e noite permanentemente em casa”, “Meu</p><p>316. SMITH, Leonard. The Embattled Self: French Soldiers’ Testimony of the Great War. Ithaca: Cornell</p><p>University Press, 2007.</p><p>317. Michelle Moyd faz uma observação similar em relação aos askaries alemães em “We don’t want</p><p>to die for nothing”: askari at war in German East Africa, 1914-1918. In: DAS, Santanu (ed). Race, Empire</p><p>and First World War Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 167 8/14/2019 17:35:48</p><p>168</p><p>coração está tristemente falhando”, “Meu coração não está tranqui-</p><p>lo, pois não posso ver uma forma de salvar minha vida”. A imagem</p><p>em torno do coração vem da poesia punjabi, que circulava oralmente</p><p>nas aldeias. Não era apenas uma metáfora convencional, pois estava</p><p>incorporada em uma rica matriz de associações, comparações e expec-</p><p>tativas por meio das quais o sipai deu sentido a si mesmo, à guerra e ao</p><p>mundo. Talvez por conta dos censuradores, ou pela necessidade de se</p><p>comunicar, ou ainda pelas pressões íntimas de masculinidade, honra e</p><p>patriarcado, os sentimentos geralmente não eram diretamente expres-</p><p>sados; em vez disso, há um adensamento da linguagem uma vez que</p><p>emoções como horror, resignação e saudade se expressam por meio de</p><p>imagens, metáforas e símiles:</p><p>As condições na guerra são como folhas caindo de uma árvore, e ne-</p><p>nhum espaço permanece vazio no chão. Então é aqui: a terra está cheia</p><p>de homens mortos e não há um lugar desocupado. [...] Deve-se ficar em</p><p>cima dos corpos e até dormir sobre eles, porque não sobra espaço vazio</p><p>em parte alguma. [...] Quando nós atacamos as trincheiras alemãs nós</p><p>usamos baionetas e o kukri, e as balas voaram mais densamente que go-</p><p>tas de chuva. [Amar Singh Rawat (Garhwal Rifles) do Hospital Indiano</p><p>de Kitchener para Dayaram Jhapaliyal em Garhwal, 1 de abril de 1915].318</p><p>Pelo amor de Deus, não venha, não venha, não venha para esta guerra na</p><p>Europa. [...] Canhões, metralhadoras, rifles e bombas não cessam, dia e</p><p>noite, como as chuvas no mês de Sawan. Aqueles que escaparam até agora</p><p>são como os poucos grãos que acabaram por não cozinhar em uma panela.</p><p>[Havildar Abdul Rahman (Muçulmano punjabi) da França para Naik Raj-</p><p>wali Khan em Baluchistão, 20 de maio de 1915].319</p><p>318. IOL, L/MIL/5/825/3.</p><p>319. Ibid.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 168 8/14/2019 17:35:48</p><p>169</p><p>O estado das coisas é indescritível. Há embate por toda parte, e você deve</p><p>imaginá-lo como uma floresta seca com ventos fortes no clima quente,</p><p>com a abundância de grama seca e palha. Ninguém pode extingui-lo, so-</p><p>mente Deus — o homem não pode fazer nada. [de Sowar Sohan Singh,</p><p>Hospital Indiano de Kitchener, Brighton, 10 de julho de 1915 para Jodh</p><p>Singh, Bitaspur, Punjab].320</p><p>Como bois e búfalos cansados que se deitam no mês de Bhadon, também</p><p>se deita o mundo exausto. Nossos corações estão se partindo, um ano se</p><p>passou enquanto nós estivemos a postos sem descanso. [...] A Alemanha</p><p>luta contra o mundo com um poder terrível, mais difícil de romper que</p><p>um grão encharcado no moinho. Até mesmo o grão mais molhado pode</p><p>ser moído a tempo. [...] Nós nos unimos sob a bandeira e devemos entregar</p><p>nossos corpos. [de Santa Singh, hospital em Brighton, para seu tio na Índia,</p><p>18 de agosto de 1915].321</p><p>Essas são algumas das cartas mais sensoriais com um duplo sentido:</p><p>de um registro de impressões sensoriais e de emprego da linguagem</p><p>dos sentidos. As imagens de “floresta seca com ventos fortes”, ou de</p><p>“búfalos cansados”, ou “grão encharcado” não são apenas gestos comu-</p><p>nicativos ou embelezamento literário, mas repositórios de sentimentos.</p><p>Transportados por milhares de quilómetros, mostram que os processos</p><p>cognitivos e narrativos estão enraizados na economia agrária de Punjab,</p><p>de onde mais da metade dos combatentes indianos foram recrutados.</p><p>Certamente não sabemos o quanto foi escrito ou ditado pelos sipais</p><p>e o quanto foi embelezamento dos escrivães; além disso, a seleção que</p><p>foi feita por E. B. Howell pode ter tido um viés literário.322 Ao mesmo</p><p>320. IOL, L/MIL/5/825/4.</p><p>321. IOL, L/MIL/5/825/5.</p><p>322. MARKOVITS, Claude, Indian Soldiers’ Experiences in France during World War I: Seeing Eu-</p><p>rope from the Rear of the Front. In: AHUJA, Ravi; BROMBER, Katrin; HAMZAH, Dyala; LIEBAU,</p><p>Heike (eds.). op. cit., 2010, p. 38-39.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 169 8/14/2019 17:35:48</p><p>170</p><p>tempo, o que as passagens sugerem são certas estruturas perceptivas</p><p>e representacionais comuns. A primeira guerra mundial industrial, uti-</p><p>lizando gás, minas terrestres e cartuchos de artilharia, está sendo ar-</p><p>ticulada por meio de imagens naturais e orgânicas, tornando-as parti-</p><p>cularmente pungentes. O campo de batalha é imaginado como “uma</p><p>floresta seca com ventos fortes no clima quente”; a guerra é “como</p><p>moer o milho em um moinho”; balas voam “mais densamente que go-</p><p>tas de chuva”; canhões não param “como chuva no mês de Sawan”; o</p><p>sipai saudoso é “como um peixe fora d’água lutando convulsivamente</p><p>na ribanceira” ou como “pássaros cujos ninhos estão na Índia”; aque-</p><p>les que escaparam são como os “poucos grãos que acabaram por não</p><p>cozinhar em uma panela”; a cavalaria cresce como sarson (um tipo de</p><p>mostarda)323. O que temos é uma rara concretização da experiência. Às</p><p>vezes, as imagens passam do cognitivo e descritivo para o mundo do</p><p>mito e da religião: as batalhas épicas de</p><p>Mahabharata ou Carbala são in-</p><p>vocadas repetidamente, tanto para apreender a guerra quanto para co-</p><p>municar sua intensidade para as pessoas em casa. Assim, um sipai hindu</p><p>ferido escreve, “isto não é guerra. É o fim do mundo. Esta é uma guerra</p><p>como foi relatada no Mahabharata sobre os nossos antepassados”, ao</p><p>passo que um sipai muçulmano acrescenta, “Mas isso não é uma luta</p><p>[ordinária], é Carbala”324. Mahabharata é uma epopeia fundacional que</p><p>narra uma batalha épica; já Carbala foi o local de uma batalha, em outu-</p><p>bro de 680, onde Husayn ibn Ali foi derrotado e morto — o aniversário</p><p>do evento é uma data anual sagrada de luto entre os muçulmanos xii-</p><p>tas325. É possível traçar similaridades com as alusões religiosas nas cartas</p><p>de tropas europeias, que geralmente se referiam a Cristo e a imagens</p><p>do Calvário, ou ao “Inferno de Dante”, para invocar a paisagem do front</p><p>ocidental. Transcorrendo no nível da experiência ou da representação,</p><p>323. OMISSI, David (ed.). op. cit., 1999, p. 37; 48; 63; 67; 77; 254.</p><p>324. Um rajapute de Punjab, da Inglaterra para um parente na Índia, 29 de janeiro de 1915, IOL L/</p><p>MIL/825/1; Alla Ditta, da França para seu pai em Punjab, 23 de abril de 1915, IOL, L/MIL/5/825/2.</p><p>325. OMISSI, David (ed.), op. cit., 1999, p. 56.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 170 8/14/2019 17:35:48</p><p>171</p><p>essas cartas, carregadas com imagens, símiles e alusões, podem ser lidas</p><p>como a literatura indiana das trincheiras. Esses homens podem ter sido</p><p>analfabetos, mas ser analfabeto não significa não ser um literato.</p><p>Essas cartas são frequentemente analisadas como bolhas linguísticas</p><p>no mar negro da história plebeia sul-asiática, mas estão enraizadas nas</p><p>tradições regionais e culturais locais. Em The Social Space of Language:</p><p>Vernacular Culture in British Colonial Punjab, Farina Mir escava a natureza</p><p>extraordinariamente rica e poliglota da “formação literária” dos pun-</p><p>jabis, que atravessa divisões de casta, religião e gênero, embora essas</p><p>categorias também operassem em outras áreas.326 Até mesmo quando</p><p>os britânicos substituíram o urdu pelo gurmukhi (punjabi) como a lín-</p><p>gua oficial, Mir mostra a resiliência e popularidade das práticas literá-</p><p>rias punjabis por meio de seus vários locais de circulação oral: o recitar</p><p>de qissas e dastans, a prática de Qawwali e Samah, a performance dos</p><p>mirasis e os rituais nas feiras das aldeias e festivais religiosos.327 Entre</p><p>1884 e 1901, quando o oficial do exército britânico Richard Temple deci-</p><p>diu compilar contos populares — base para sua obra em três volumes</p><p>Legends of the Punjabi — ele contratou “bardos” para interpretar esses</p><p>textos, mostrando a profunda conexão entre memória oral e tradições</p><p>narrativas, entrelaçados por meio de rima, ritmo, repetição e refrão. Em</p><p>vez de afirmar que as cartas censuradas dos sipais têm antecedentes em</p><p>textos de elite, tais como Wonders of Vilayet (1827), de Mirza Sheikh I’te-</p><p>samuddin,328 eu defenderia que vemos aqui uma transição extraordiná-</p><p>ria de uma cultura oral vibrante e robusta para uma cultura textual de</p><p>escrita de cartas. Uma geração inteira de homens que cresceram escu-</p><p>tando histórias, mitos, cantos e recitais seria agora forçada a escrever ou</p><p>ditar cartas que, não obstante, são formadas por essas tradições orais.</p><p>326. MIR, Farina. The Social Space of language: Vernacular Culture in British Colonial Punjabi. Ber-</p><p>keley: University of California Press, 2010, p. 17; 97.</p><p>327. Ibid. p. 91-122. Mir também fornece evidências de que tais performances atravessam divisões</p><p>religiosas e de gênero, atraindo hindus, muçulmanos e sikhs.</p><p>328. MARKOVITS, op. cit., p. 42.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 171 8/14/2019 17:35:48</p><p>172</p><p>Certamente, algumas frases ou cartas têm de ser situadas dentro de</p><p>tradições linguísticas, culturais e religiosas específicas, no entanto, nós</p><p>precisamos começar a conceber essas cartas como pertencentes a certas</p><p>“comunidades emocionais”,329 parcialmente moldadas por essas tradi-</p><p>ções. As cartas com frequência trazem versos que representavam um</p><p>claro sinal de “péssima moral” para o censor chefe E. B. Howell, um lin-</p><p>guista muito talentoso, embora fosse algo que o interessasse profunda-</p><p>mente, como fica evidente por suas traduções cuidadosas.330 Os poemas</p><p>que aparecem nas cartas ressoam intimamente com os versos e canções</p><p>de recrutamento no Punjab na época. Considere o poema que aparece</p><p>em uma das cartas enviadas de Amritsar, em 15 de março de 1916, para</p><p>um sipai na França, sem dúvida com intuito de entusiasmá-lo:</p><p>Permita que o mundo veja seus feitos, soldados da Índia!</p><p>A Grã-Bretanha é nossa e nós somos todos pela Grã-Bretanha [...]</p><p>Mostrem a eles tudo o que a bravura é, soldados da Índia!</p><p>Como heróis de Bharat, atropelem o inimigo</p><p>Façam fluir riachos de sangue, soldados da Índia!331</p><p>(originalmente escrito em gurmukhi, traduzido pelo censurador colonial)</p><p>Compare-o com versos de recrutamento, tais como o recém-desco-</p><p>berto “O Raag de Recrutamento”, de Nara-i-Jang (1914), que circulava</p><p>em Punjab:</p><p>Levantem levantem Ó bravos por que se tardam, façam estrondo no mundo</p><p>Amado George declarou a vocês que expressem a glória no amor e na leal-</p><p>dade [...]</p><p>329. ROSENWEIN, Barbara H. Emotional communities in the Early Middle Ages. Ithaca: Cornell Univer-</p><p>sity Press, 2007; RAY, Rajat. The Felt Community: Commonality and Mentality Before the Emergence of</p><p>Indian Nationalism. Delhi: Oxford University Press, 2008.</p><p>330. MARKOVITS, op. cit., p. 39.</p><p>331. L/MIL/5/828, 337v.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 172 8/14/2019 17:35:48</p><p>173</p><p>Rujam como leões no campo de batalha, destruam as fileiras dos inimigos</p><p>Vocês são filhos corajosos de Bharat Maata, guardem hoje sua honra</p><p>Quem ousará confrontá-los se somente vocês lustram suas espadas</p><p>Vão para o campo de batalha e fomentem uma tempestade, façam com</p><p>que rios de sangue corram.332</p><p>Considerando que a maioria dos potenciais recrutas era analfabeta, a</p><p>campanha de recrutamento recorreu à oralidade, incluindo canções e ver-</p><p>sos. Por exemplo, em aldeias no Punjab, assim como no distrito de Karnal,</p><p>cantores eram comissionados para compor canções de recrutamento, que</p><p>eram realizadas no período da tarde geralmente em encontros populares</p><p>nas aldeias; depois de tais apresentações, solicitava-se que jovens se enfilei-</p><p>rassem para o alistamento.333 Um evento desse tipo foi realizado no Natal</p><p>de 1917, na aldeia de Rithal, onde canções de guerra foram cantadas para</p><p>encorajar recrutamento e doações.334 No entanto, às vezes havia uma ten-</p><p>dência subversiva em algumas canções, como no trecho a seguir:</p><p>Holi trouxe a juventude na velhice, o Sr. Seth está celebrando o holi com a</p><p>Sra. Seth</p><p>Por que o sobrinho não deveria estar chocado, vendo seu tio celebrar o holi</p><p>com sua tia!</p><p>Nascentes de sangue estão correndo na Europa, em que novas cores che-</p><p>garam ao velho Holi</p><p>OU</p><p>A Alemanha tem mantido sua “chaaein chaeein” por quatro anos, corvos</p><p>provocam leões com kaeein kaeein</p><p>332. The Raag Recruitment, de Nara-i-Jang (Amritsar, 1914). Traduzido por Asad Ali.</p><p>333. Jat Gazette, 15 de janeiro de 1918.</p><p>334. Jat Gazette, 25 de dezembro de 1917.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 173 8/14/2019 17:35:48</p><p>174</p><p>Estamos enfrentando a inflação no mercado, o comércio está lento, esse</p><p>vento está soprando do Ocidente com “saaein saaein”335</p><p>No primeiro exemplo, a guerra europeia é domesticada e evolui para</p><p>um drama familiar frívolo durante o holi (festival das cores), com o sangue</p><p>substituindo o pó vermelho (aabir) e as duas forças beligerantes referencia-</p><p>das como Sr. e Sra. Seth. No segundo, os efeitos econômicos da guerra no</p><p>dia a dia do agricultor de Punjab são evocados alegre e desoladamente por</p><p>meio da rima onomatopaica. Talvez esse seja o motivo pelo qual Mall Singh</p><p>recita os versos da forma como o faz: não foi lido, mas recitado. Sob os dois</p><p>textos está a crítica mordaz à guerra e à forma como ela é entendida nas</p><p>aldeias e como afeta suas vidas cotidianas, aproximando</p><p>os lugares mais re-</p><p>motos do homefront colonial — o Punjab — com o front real na França e na</p><p>Mesopotâmia. Em um contexto no qual quase nada se sabe sobre as aldeias</p><p>indianas, esses exemplos de versos jocosos perfuram o silêncio.</p><p>CANÇÕES SUBALTERNAS: TRADIÇÃO, VOZ E SAUDADE</p><p>Uma voz em punjabi, desolada e encantatória, emerge crepitando a par-</p><p>tir de um antigo disco de resina de goma laca no Lautarchiv de Hum-</p><p>boldt, em Berlim. O locutor se refere a si mesmo na terceira pessoa:</p><p>Havia um homem que teria manteiga na Índia [...] ele também teria dois</p><p>sers de leite. Ele servia à Grã-Bretanha. Ele ingressou na Guerra Europeia.</p><p>Ele foi capturado pelos alemães. Ele quer voltar à Índia. Se ele voltar à Ín-</p><p>dia então ele terá aquela mesma comida. Três anos se passaram. Não há</p><p>notícias de quando haverá paz. Somente se ele voltar à Índia ele irá conse-</p><p>guir aquela comida. Se ele ficar aqui por mais dois anos então ele irá mor-</p><p>rer. Pela graça de Deus, se eles declararem a paz então nós voltaremos.336</p><p>335. Retirado de Bahar-e-Jarman (Mumbai?), 2 de dezembro de 1915). Original em urdu.</p><p>336. A voz gravada de Mall Singh está entre os 1.650 discos de goma laca mantidos pelo Lautarchiv da</p><p>Humboldt-University em Berlim. A gravação é referida como PK 619. A passagem foi traduzida por</p><p>Arshdeep Brar (DAS, Santanu. The Singing Subaltern. Parallax, v. 17, n. 3, 2011, p. 4-18).</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 174 8/14/2019 17:35:48</p><p>175</p><p>As palavras são menos faladas que cantadas. O lar é lembrado por</p><p>meio da comida, comprimindo memória, sabor e saudade, e é desola-</p><p>dor em seu detalhe. A gravação vai da lembrança, passando pela incer-</p><p>teza sombria (“Ninguém sabe”), até a sensação de desespero e desespe-</p><p>rança. Igualmente curiosa é a entonação, cheia de pausas e solavancos.</p><p>O tom geralmente sobe no fim de cada frase, com a sílaba final carre-</p><p>gando o estresse total, como se estivesse tentando se lembrar de um</p><p>padrão sonoro ao mesmo tempo em que se confunde. Mas por que ele</p><p>se refere a si mesmo na terceira pessoa? Nossas línguas são geralmente</p><p>moldadas por nossos ouvidos; a memória usa tanto a narrativa quanto</p><p>a articulação. Será que Mall Singh estaria se aproveitando, consciente-</p><p>mente ou não, da cultura oral de seu nativo Punjab, particularmente da</p><p>tradição qissa, de se contar histórias, que frequentemente tem um início</p><p>comum (“Uma vez houve um rei”), enquanto ele se coloca como uma</p><p>personagem na última qissa da guerra? Como o companheiro punjabi,</p><p>também prisioneiro de guerra, Sib Singh notara, “Depois que a guerra</p><p>acabar, vários qissas serão publicados”.337 Nunca saberemos.</p><p>O trecho é de uma gravação de voz de Mall Singh, um prisioneiro</p><p>de guerra indiano no Halfmoon Camp, na cidade de Wünsdorf, na Ale-</p><p>manha, onde um grande número de prisioneiros de guerra dos Alia-</p><p>dos, incluindo um número substancial de sul-asiáticos, esteve detido.</p><p>A gravação, feita em 11 de dezembro de 1916, é parte de um arquivo</p><p>extraordinário que veio à luz nos últimos anos: uma coleção de 2.677</p><p>gravações de áudio conduzidas pela Comissão Fonográfica Prussiana</p><p>Real, entre 29 de dezembro de 1915 e 19 de dezembro de 1918, dos prisio-</p><p>neiros de guerra da Primeira Guerra Mundial mantidos na Alemanha,</p><p>incluindo um grande número de gravações de prisioneiros coloniais</p><p>não-brancos.338 Esse foi um empreendimento etnológico singular na</p><p>337. SINGH, Sib. Story. Lautarchiv, Humboldt University, PK 610.</p><p>338. Conforme os excelentes artigos de Britta Lange: Academic Research on (Coloured) Prisoners</p><p>of War. In: CHIELENS, Piet, DENDOOVEN, Dominiek (eds). World War I: Five Continents in Flan-</p><p>ders. Ypres, 2008, p. 153-165 e South Asian Soldiers and German Academics. In: AHUJA, Ravi; LIEBAU,</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 175 8/14/2019 17:35:48</p><p>176</p><p>época. Planejada pelo filologista Wilhelm Doegen, a Comissão incluía</p><p>30 acadêmicos que visitaram 31 campos de prisioneiros na Alemanha</p><p>e fizeram gravações em aproximadamente 250 línguas e dialetos. Uma</p><p>fotografia sobrevivente permite perceber as condições sob as quais es-</p><p>sas gravações de voz foram feitas: os prisioneiros de guerra tinham que</p><p>ficar em frente a um fonógrafo e eram solicitados a ler em voz alta um</p><p>texto curto (se fossem alfabetizados) ou relembrar um conto ou pará-</p><p>bola ou cantar uma canção. Um texto popular frequentemente ofere-</p><p>cido para os soldados lerem era “A Parábola do Filho Pródigo”. Uma</p><p>transcrição era então preparada, “palatogramas” eram feitos para de-</p><p>terminar a posição da língua do locutor, e até mesmo raios-x da laringe</p><p>eram tirados para pesquisa científica.339 Se Friday teve sua língua cortada</p><p>em Foe, de Coetze, parece que esses prisioneiros foram silenciados no</p><p>próprio ato de falar, forçados a ler em voz alta um texto pré-seleciona-</p><p>do. No entanto, Mall Singh, conseguindo contornar o controle autoritá-</p><p>rio e nos comunicando sua mensagem melancólica, parece desafiar tal</p><p>formulação: o subalterno pode assim falar?</p><p>Como uma das gravações de som mais sombrias, a fala de Mall</p><p>Singh levanta questões fundamentais sobre essas gravações e a sobre</p><p>intencionalidade do locutor: a quem Singh se dirigia quando falava no</p><p>fonógrafo? Ele esperava que suas palavras alcançassem algum público?</p><p>Se “falar” implica “uma transação entre o locutor e o ouvinte”,340 como</p><p>Gayatri Spivak argumentou em seu clássico ensaio Can the subaltern</p><p>speak?, Singh não poderia ter falado, ainda que tenha falado tão urgen-</p><p>temente. Ou, abusando um pouco da formulação de Spivak, ele parece</p><p>Heike; ROY, Franziska (eds). ‘When the War Began, We Heard of Several Kings’: South Asian Prisoners in</p><p>World War I Germany. Delhi: Social Science Press, 2011, p. 148-184.</p><p>339. DOEGEN, Wilhelm Doegen (ed.) Unter fremden Völkern – Eine neue Völkerkunde. Berlim: Verlag</p><p>für politik und wirtschaft, 1925 e AHUJA, Ravi; LIEBAU, Heike; ROY, Franziska (eds), op. cit.</p><p>340. SPIVAK, Gayatri. Subaltern Talk. In: LAUNDRY, Donna; MACLEAN, Gerald (ed.). The Spivak</p><p>Reader. Nova York: Routledge, 1996, p. 289; ver também SPIVAK, Gayatri. Can the Subaltern Speak?</p><p>In: GROSSBERG, Lawrence, NELSON, Cary (eds). Marxism and the Interpretation of Culture. Londres:</p><p>Macmillan, 1988.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 176 8/14/2019 17:35:48</p><p>177</p><p>nos falar de forma tão urgente hoje precisamente porque não podia fa-</p><p>lar àquela época.</p><p>Das mais de 2.677 gravações de som no arquivo, cerca de 135 delas</p><p>parecem ser de prisioneiros sul-asiáticos. As línguas faladas são hindu,</p><p>urdu, pachto, punjabi, marata, nepali, khas, gurkhali, bengali e inglês,</p><p>entre outras. Elas variam de falas mecânicas curtíssimas, como o 1.09</p><p>minuto de gravação de Karamar Ali lendo em voz alta as letras do al-</p><p>fabeto bengali, até gravações como a de 3.20 minutos na qual Moham-</p><p>med Hossain conta a surpreendente história de sua captura e a vida no</p><p>campo de prisioneiros de guerra.341 Considerando tanto as gravações</p><p>quanto os arquivos associados a elas, parece que a maioria desses tex-</p><p>tos era primeiramente escrita e depois lida em voz alta, embora não</p><p>tenhamos certeza. O gênero dessas gravações também era variado: a</p><p>maioria dos homens lia em voz alta contos ou lendas conhecidos, ou</p><p>cantava canções devocionais ou religiosas, e apenas poucos, como Mall</p><p>Singh, decidiram — excepcional e tentadoramente — contar as his-</p><p>tórias de suas vidas. As demarcações, no entanto, são tênues. Assim,</p><p>Chota Baghua, um agricultor treinado na escola regimental Amritsar</p><p>em Kohat, começa com a parábola do “Rei e suas quatro filhas”, depois</p><p>canta um shabad e continua, dizendo abruptamente: “O Rei alemão é</p><p>muito inteligente. Ele luta contra todos os reis”.342 Parábola, música e</p><p>comentários contemporâneos tornam-se um único ente, sem intervalo</p><p>ou pausa mediadora.</p><p>Essas são algumas das mais antigas gravações de voz de sul-asiáticos e,</p><p>considerando o cruzamento das diferentes formas linguísticas, musicais e</p><p>testemunhais, elas têm valor inestimável para etnomusicólogos, linguis-</p><p>tas, historiadores culturais e estudiosos</p><p>literários. Britta Lange, uma das</p><p>poucas estudiosas que as investigou, sublinhou a ideia de “assombração”</p><p>341. ALI, Karamar. Lautarchiv, Humboldt University, PK 1159; HOSSIN, Mohammed. Story from the</p><p>Gull. Lautarchiv, Humboldt University, PK 1151.</p><p>342. BAGHUA, Chotta. Song and Prayer. Lautarchiv, Humboldt University, Berlin, PK 0610.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 177 8/14/2019 17:35:48</p><p>178</p><p>e “fantasmagoria” nessas gravações fascinantes.343 Mas poderiam elas ser</p><p>lidas lado a lado com as cartas mutiladas para compreender de forma</p><p>mais completa a história íntima e afetiva desses homens? Descobrir a his-</p><p>tória subalterna das emoções a partir de um arquivo etnológico e pro-</p><p>pagandístico tão hostil — especialmente quando as próprias gravações</p><p>são tão obstinadas e extraídas sob coerção — é ampliar a prática de ler o</p><p>arquivo colonial a contrapelo até o seu limite. Qualquer leitura será ne-</p><p>cessariamente experimental e incompleta. Por que uma história em par-</p><p>ticular foi escolhida, dentre outras, por esses narradores? Dependia em</p><p>parte do que o sipai se lembrava, sem relevância direta para sua condição</p><p>momentânea, como as histórias de “O Rei com Sete Filhos”, narradas por</p><p>Mall Singh, ou “O Rajá de Aligarh”, por Jeet Singh: ambas mostram uma</p><p>tradição narrativa povoada por reis e rainhas, casamentos, perda e recupe-</p><p>ração. Mas, às vezes, nas margens das histórias, estão paralelos e pressões</p><p>que ecoam seu próprio dilema. Assim, a história do atirador Ranbir Sahi,</p><p>de uma jornada de hospitalidade e gentileza pela escuridão — e seu en-</p><p>contro repentino com uma casa e moradores que oferecem frutas e água</p><p>—, talvez pairem em algum lugar entre a concretização de um desejo e os</p><p>esforços de propaganda dos alemães344. O importante é perceber que essas</p><p>histórias não podem ser lidas como puras alegorias ou parábolas claras da</p><p>situação, mas sim como insinuações e sugestões para indicar certas estru-</p><p>turas de sentimento. Muito ocasionalmente há paralelos óbvios, como na</p><p>história de “O Cisne e a Garça”:</p><p>O Cisne e a Garça se tornaram amigos. O Cisne vivia em sua própria terra</p><p>natal, mas a Garça estava na terra natal do Cisne, longe de sua própria terra</p><p>natal. A Garça costumava se sentir nostálgica em relação à sua própria terra</p><p>natal. O Cisne lhe perguntou a razão de sua infelicidade. O Cisne perguntou</p><p>à Garça: “por que você está infeliz e por que você não come nada”? A Garça</p><p>343. LANGE, Britta. South Asian Soldiers and German Academics. In: AHUJA, Ravi; LIEBAU, Heike;</p><p>ROY, Franziska (eds), op. cit., p.148-184.</p><p>344. Lautarchiv, Humboldt University, PK 244.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 178 8/14/2019 17:35:48</p><p>179</p><p>respondeu que recebeu notícias sobre sua terra natal e por isso estava nos-</p><p>tálgica. O Cisne pensou que talvez o lar da Garça fosse muito melhor que</p><p>a terra natal do Cisne e por isso ela estava sentindo falta. O Cisne concluiu</p><p>dizendo que a nação de uma pessoa é muito querida para ela, pode não ser</p><p>muito boa, mas mesmo assim, ela está desejosa de retornar à própria terra.345</p><p>A ressonância com a condição do próprio sipai não pode ser ignora-</p><p>da: saudade e nostalgia são traduzidas em um conto de separação.</p><p>Muitas das gravações dos Arquivos de Som são de músicas e canções</p><p>religiosas ou fragmentos dos épicos indianos Ramayan ou Mahabharat.</p><p>Mais poderosos que as cartas, elas apontam para a rica e variada tradi-</p><p>ção oral do Punjab discutida anteriormente. Essas gravações de som</p><p>de prisioneiros de guerra — até então consideradas isoladamente ou</p><p>confinadas estreitamente aos parêntesis da guerra — são gravações sin-</p><p>gulares da música do começo do século XX do norte da Índia. Essas</p><p>gravações muitas vezes têm pontos de contato com as cartas, mostran-</p><p>do uma fonte cultural e ideológica comum. Considere, por exemplo, a</p><p>gravação de Bela Sigh, que não somente recitou um poema, mas parece</p><p>ter composto um para a ocasião:</p><p>Quando nós chegamos na cidade de Marselha</p><p>Comemos bem. Assim, todos estávamos felizes.</p><p>Fomos colocados em carros e o major deu a ordem:</p><p>‘Vão agora, ó Leões, às trincheiras, vão!</p><p>Lutem contra os alemães, por que andam para trás?</p><p>Alguns leões lutaram o suficiente</p><p>Os canhões alemães lançaram sua artilharia com grande força</p><p>Todos fugiram quando perceberam a força</p><p>Eu fui um obstáculo, pois não pude fugir.346</p><p>345. Lautarchiv, op. cit., PK 828.</p><p>346. Bela Singh de Kotli/Amritsar, “Poema” em punjabi, gravado em Wünsdorf em 8 de dezembro</p><p>de 1916. Lautarchiv, op. cit., PK 589. A tradução é a usada por Britta Lange em “South Asian Soldiers</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 179 8/14/2019 17:35:48</p><p>180</p><p>em conjunto com o seguinte poema, encontrado em uma das cartas</p><p>censuradas:</p><p>O sikh ruge como um leão no campo de batalha</p><p>E oferece sua vida como um sacrifício</p><p>Quem for suficientemente afortunado para nascer rajapute</p><p>Nunca teme o inimigo em batalha.347</p><p>Ambas as passagens, originalmente em punjabi, brincam com a for-</p><p>mação da imagem bélica dos sikhs como “Leões”, uma autocriação ori-</p><p>ginária desse grupo religioso, mas que, no entanto, foi promovida en-</p><p>tusiasticamente pela classe colonial britânica. Torna-se difícil notar na</p><p>passagem acima se ela foi internalizada ou conscientemente reciclada.348</p><p>Entretanto, tanto a canção quanto a carta, embora marcadas por dife-</p><p>renças de gênero, estão enraizadas em tradições linguísticas, culturais e</p><p>religiosas comuns de regiões particulares, seja em Punjab ou no Nepal,</p><p>mesmo se sobrepostas pela percepção colonial.</p><p>Uma pista importante é fornecida pelo estudioso e linguista Hein-</p><p>rich Luders, que analisou atentamente as tropas indianas em Wüns-</p><p>dorf. Como professor no Oriental Seminar da Universidade de Berlim</p><p>e membro da Academia Prussiana de Ciências, ele foi responsável</p><p>por pesquisar as línguas indiana e mongol na Comissão Fonográ-</p><p>fica Prussiana.349 Em um artigo, Luders notou que as gravações de</p><p>voz não eram confinadas a textos tradicionais, mas frequentemente</p><p>adaptadas:</p><p>and German Academics”.</p><p>347. Poema, traduzido do gurmukhi, encontrado em uma carta de um dafadar, escrita na França em</p><p>18 de abril de 1916. Departamento Militar, Censor of Indian Mails 1914-1918, L/MIL/5/825.</p><p>348. AHUJA, Ravi. The Corrosiveness of Comparison. In: AHUJA, Ravi; BROMBER, Katrin; HAM-</p><p>ZAH, Dyala; LIEBAU, Heike (org.). op. cit., 2010, p. 135.</p><p>349. Para mais detalhes, ver LANGE, Britta. South Asian Soldiers and German Academics. In: AHU-</p><p>JA, Ravi; LIEBAU, Heike; ROY, Franziska (eds), op. cit., 2011, p. 157.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 180 8/14/2019 17:35:49</p><p>181</p><p>Muitos, possivelmente a maioria, podiam ler e escrever; no entanto, eles</p><p>não aprenderam a escrever quando crianças, mas durante seu período de</p><p>serviço militar. [...] Certamente, a maioria não tinha a confiança para con-</p><p>tar uma história coerente. Em vez disso, eles preferiam cantar uma canção,</p><p>sozinhos ou acompanhados por outros. Entre as canções, estão várias que,</p><p>sem dúvida, eram cantadas antigamente em comemorações, particular-</p><p>mente nas festividades de Dashara. No entanto, o material antigo é inti-</p><p>mamente entrelaçado com o moderno. Versos antigos são constantemente</p><p>alterados, estendidos e copiados até algo completamente novo emergir. O</p><p>cantor é sempre, em maior ou menor grau, o poeta, e as pessoas sabem</p><p>disso também; “se eu quero cantar uma canção, eu invento uma”, um deles</p><p>admitiu. Por isso, a maioria das canções que nós conseguimos gravar sur-</p><p>giu durante a guerra ou, pelo menos, foram então remodeladas na forma</p><p>em que foram cantadas para nós.350</p><p>De fato, uma dessas canções foi cantada por um sipai Gurkha de</p><p>23 anos — talvez o testemunho mais triste de um sipai indiano dentre</p><p>todos os desenterrados até agora de qualquer um dos fronts. Tudo o</p><p>que se sabe sobre ela é que foi cantada por “Jasbahadur Rai de Sikkim/</p><p>Darjeeling, canção Gurkha, [suas] próprias palavras” e gravada em 6 de</p><p>junho de 1916.351 Ele deve ter morrido logo depois, pois seu túmulo pode</p><p>ser encontrado próximo</p><p>do campo de Zossen. A canção é gravada em</p><p>duas etapas, eis aqui a primeira:</p><p>Com a subida do rio Sisai, eu vim, carregado em sua corrente borbulhante</p><p>Nós chegamos no país, Alemanha, sob ordens dos ingleses</p><p>Escute, oh escute, passarinho dourado, sob ordens dos ingleses</p><p>Os nepaleses têm três torneiras d’água, água fluindo da fonte</p><p>350. LUDERS, Heinrich. Die Gurkhas. In: DOEGEN, Wilhelm (ed.) Unter fremden Volkern. Eine nuue</p><p>Volkerkunde. Berlim: Verlag für politik und wirtschaft, 1925, p. 135; 126-139.</p><p>351. RAI, Jasbahadur. Gravado em 6 de junho de 1916, Lautarchiv, op. cit., PK 307.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 181 8/14/2019 17:35:49</p><p>182</p><p>O povo nepalês, nem morrendo nem sobrevivendo, o coração tam-</p><p>bém soluça</p><p>Não podemos voar para longe, nem podemos chegar enquanto ficamos</p><p>parados, o coração chora, soluçando</p><p>Escute, oh escute, irmã trajando ouro, o coração chora, soluçando</p><p>O borbulho da água, a inquietação desse coração, quantos dias serão neces-</p><p>sários para se consolar?</p><p>Escute, oh escute, pequeno que traja ouro, quantos dias serão necessários</p><p>para se consolar?</p><p>Se eu economizar dois centavos, acenderei um cigarro Tabalmar com</p><p>fósforos</p><p>Do outro lado do Hindustão, que belas colinas, locais de armazenamento</p><p>de forragem</p><p>O amor que nós tivemos, nós agora precisamos romper, amarre seu cora-</p><p>ção e seja forte</p><p>Escute, oh escute, passarinho dourado, amarre seu coração e seja forte.352</p><p>A canção é interrompida por pausas incômodas, fortes inspirações</p><p>de ar e o constante arranhão da agulha fonográfica no disco, assim</p><p>como a de Mall Singh. Apesar disso, há uma intensidade apaixonada</p><p>no canto, uma necessidade compulsiva de dizer: a voz levanta e abai-</p><p>xa, aguda, desolada, determinada. Traumatizado por sua experiência e</p><p>talvez assombrado por saber da aproximação de sua morte, Jasbahadur</p><p>transforma um experimento etnográfico em um dos mais assombrosos</p><p>registros biográficos.</p><p>Tanto na métrica quanto na melodia, Jasbahadur se baseia em um</p><p>subgênero de música nepalesa chamada jheyru,353 que era tradicional-</p><p>mente um lamento feminino. O refrão “Escute, oh escute”, à manei-</p><p>ra de um Velho Marinheiro, envolve o ouvinte no poema. A água — a</p><p>352. RAI, Jasbahadur. Canção. Lautarchiv, op. cit., PK 307. Sou muito grato à Dra. Anna Stirr por trans-</p><p>crever e traduzir a canção.</p><p>353. Mais uma vez sou grato a Anna Stirr pelo insight sobre esta música.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 182 8/14/2019 17:35:49</p><p>183</p><p>substância de nossas lágrimas e a imagem central do poema — inunda</p><p>o texto de memória para simbolizar a inquietude interna (paniko bulbul,</p><p>ei monk o chulbul) antes de ser transformada em água para purificar o</p><p>corpo moribundo (“você irá lavar meu corpo”): o som aqui se torna o</p><p>sentido. Tornando mais tênues as fronteiras entre canção, reportagem,</p><p>lamento, acusação e testemunho compulsivo, este é também o nasci-</p><p>mento do sujeito lírico. Cigarros e fósforos se esfregam contra monta-</p><p>nhas e flores, Bélgica e Alemanha são reunidas, o ano da explosão da</p><p>guerra é lembrado por meio das percepções dos sentidos. Jasbahadur</p><p>é poeta da Primeira Guerra Mundial por excelência, não porque canta,</p><p>mas sim porque registra a história não como uma grande narrativa ou</p><p>até mesmo como memória cultural, mas como uma estrutura de senti-</p><p>mento, como nos poemas de soldados-poetas europeus. Como na tradi-</p><p>ção pastoral britânica, aqui um gênero local nepalês presta testemunho</p><p>lírico ao trauma histórico.</p><p>LITERATURA COMO TESTEMUNHO: KIPLING E ANAND</p><p>Existe alguma literatura indiana da Primeira Guerra Mundial? Quem</p><p>são os Wilfred Owens e Erich Maria Remarques indianos? A pergun-</p><p>ta, cada vez mais feita, é baseada em uma convergência reducionista</p><p>da “literatura de guerra” com os escritos de um punhado de soldados-</p><p>-poetas, seguindo uma trajetória peculiarmente britânica da “Grande</p><p>Guerra e da memória moderna” e omitindo um conjunto substancial</p><p>de escritos de guerra feitos por mulheres, civis e não-combatentes. Isso</p><p>acontece particularmente com a escrita colonial sobre a guerra, onde o</p><p>conflito estava fortemente difuso, mas indiretamente dentro da esfera</p><p>literária civil. De fato, existe um poderoso corpo de literatura indiana</p><p>sobre a Primeira Guerra Mundial que está vindo à luz lentamente nos</p><p>últimos anos. Alguns dos “poemas de guerra” de Tagore foram publi-</p><p>cados no The Times em 1914, juntamente com os de Kipling, como parte</p><p>da propaganda imperial, embora o engajamento mais sério de Tagore</p><p>com o conflito ocorra em suas palestras sobre o “Nacionalismo”, feitas</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 183 8/14/2019 17:35:49</p><p>184</p><p>durante os anos de guerra no Japão e nos Estados Unidos, e publica-</p><p>das em 1917. Existe também uma variedade de literatura da Primeira</p><p>Guerra Mundial em diferentes línguas regionais, variando desde um</p><p>fundo rico em poemas e canções de recrutamento punjabi até o verso</p><p>incandescente de guerra do poeta revolucionário bengali Kazi Nazrul</p><p>Islam, que foi submetido ao treinamento para o conflito. Há também a</p><p>peça de recrutamento bengali Bengal Palton, escrita em 1916 por Satish</p><p>Chandra Chattopadhyay, além de uma série de panfletos de propagan-</p><p>da, poemas e canções, e algumas memórias extraordinárias.354 Existe</p><p>ainda uma coleção substancial de efêmeros, mas interessantes poemas,</p><p>contos e ensaios em inglês, no compêndio de guerra All About the War:</p><p>The Indian Review War Book (1915). Dada a escassez de documentos em</p><p>primeira-mão, esses escritos literários são vitais por fornecer novos in-</p><p>sights e nos ajudar a reconstruir a história emocional e social diária dos</p><p>indianos durante os anos de guerra, seja no front ou na própria Índia.</p><p>Além disso, esses escritos enfrentam e problematizam muitas das ques-</p><p>tões e sentimentos que são encontrados nas cartas e exploram mais</p><p>conscientemente as conexões entre o serviço militar, o colonialismo e</p><p>uma história das emoções mais íntima. Ao mesmo tempo, não podem</p><p>ser considerados como um envelope transparente da experiência bélica:</p><p>há convenções literárias específicas que eles seguem e, como veremos,</p><p>uma pauta a ser trabalhada, ou múltiplas correntes emocionais atraves-</p><p>sando essas narrativas, moldadas por histórias e preocupações peculia-</p><p>res do escritor. Aqui, quero realçar brevemente dois trabalhos literários</p><p>sobre a experiência dos sipais na França, que foram escritos em dois pe-</p><p>ríodos diferentes e que vêm de duas posições sociais e ideológicas muito</p><p>distintas: The Eyes of Asia (1917), de Rudyard Kipling, escrito como par-</p><p>te do esforço de propaganda imperial, e Across the Black Waters (1939),</p><p>354. DAS, Santanu. Sepoys, Sahibs and Babus. In: HAMMOND, Mary; TOWHEED, Shafquat (ed.).</p><p>Reading Practices in the First World War. Londres: Palgrave Macmillan, 2007, p. 61-77 e Indians at home,</p><p>Mesopotamia and France, 1914-1918: towards an intimate history. In: Race, Empire and First World War</p><p>Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 184 8/14/2019 17:35:49</p><p>185</p><p>de Mulk Raj Anand, escrito nas vésperas da Segunda Guerra Mundial,</p><p>quando a Índia foi chamada novamente para servir ao império, ainda</p><p>que o movimento nacionalista estivesse ganhando impulso.</p><p>Um dos mais antigos trabalhos literários em que os sipais indianos são</p><p>celebrados é de ninguém menos que Rudyard Kipling. Seu texto sobre a</p><p>guerra, The Eyes of Asia (1917), toma a forma de quatro contos, nos quais</p><p>Kipling imagina a si mesmo como um soldado indiano semi-alfabeti-</p><p>zado escrevendo para casa sobre as maravilhas da civilização ocidental.</p><p>Em uma primeira leitura, ele se apresenta como chauvinista, ofensivo e</p><p>previsível, em uma versão exagerada do que Claude Markovits, em um</p><p>contexto diferente, chamou “Ocidentalismo a partir de baixo”355: sobre</p><p>um soldado cantando louvores à Europa e ao seu povo, completamente</p><p>encantado com o Ocidente. Entretanto, se lermos o texto de Kipling jun-</p><p>tamente com uma das cartas censuradas dos soldados, perceberemos que</p><p>o romancista, na verdade,</p><p>tinha acesso a algumas dessas cartas e incorpo-</p><p>raria passagens delas em seu texto. Considere os seguintes fragmentos,</p><p>cada um deles descrevendo a senhora de uma casa onde um sipai indiano</p><p>se alojava: o primeiro é de uma carta escrita por um sipai real, o segundo</p><p>é escrito pelo soldado imaginário de Kipling, em The Fumes of the Heart:</p><p>Por vontade própria ela lavou as minhas roupas, arrumou minha cama [e]</p><p>poliu as minhas botas [...] Toda manhã ela costumava preparar e me en-</p><p>tregar uma bandeja com pão, manteiga, leite e café [...] Quando tivemos</p><p>que ir embora da aldeia, a velha senhora chorou em meu ombro. Estranho</p><p>que eu nunca a tenha visto chorar por seu filho morto e, no entanto, ela</p><p>chorava por mim. Além disso, na [nossa] partida ela me trouxe uma nota</p><p>de cinco francos.356</p><p>355. MARKOVITS, Claude. Indian Soldiers’ Experiences in France during World War I: Seeing Eu-</p><p>rope from the Rear of the Front. In: AHUJA, Ravi; BROMBER, Katrin; HAMZAH, Dyala; LIEBAU,</p><p>Heike (eds.), op. cit., 2010, p. 29-55.</p><p>356. Carta de Sher Bahadur Khan, 9 de janeiro de 1916, França. Censor of Indian Mails 1914-1918, Part</p><p>2, L/MIL/826, India Office Library, British Library.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 185 8/14/2019 17:35:49</p><p>186</p><p>Por vontade própria ela lavou as minhas roupas, arrumou a minha cama</p><p>e poliu as minhas botas diariamente por três meses [...] Toda manhã ela</p><p>me preparava uma bandeja com pão, manteiga, leite e café. Quando nós</p><p>tivemos que ir embora da aldeia, a velha senhora chorou em meu ombro.</p><p>É estranho que eu nunca a tenha visto chorar por seu filho morto, mas ela</p><p>chorou por mim. Além disso, na partida ela me fez pegar uma nota de fi-fa-</p><p>rang [cinco francos] para as despesas.357</p><p>A exatidão da transcrição é surpreendente. A ideia da “mãe france-</p><p>sa”, um sentimento recorrente nas cartas de soldados indianos reais,</p><p>parece ter interessado Kipling. O terceiro conto do livro gira em torno</p><p>de um filho lendo em voz alta para seus pais a carta de seu irmão mais</p><p>velho, soldado na França, e a última história atinge o ápice da saudade</p><p>do sipai por sua mãe na Índia:</p><p>Meus pensamentos estão sempre com você. Mãe, apure o seu ouvido e me</p><p>escute. Não se preocupe; em breve estarei novamente com você [...] Mãe,</p><p>pense sempre em mim como se eu estivesse sentado próximo a ti, assim</p><p>como eu te imagino sempre ao meu lado [...] Eu devo chegar no meio da</p><p>noite e bater na sua porta [...] Oh, minha mãe, minha mãe, eu sou o seu</p><p>filho, o seu filho; e como eu disse no começo eu irei retornar para os seus</p><p>braços quando escapar deste país, quando Deus permitir.358</p><p>Esse diálogo estendido com a mãe, tão vividamente imaginado, ga-</p><p>nha uma ressonância especial no contexto da própria vida de Kipling.</p><p>Como já é bem documentado, Kipling passou oito idílicos anos em</p><p>Mumbai, onde aparentemente “falava, escrevia e sonhava em hindus-</p><p>tani”. Entretanto, assim como vários filhos da classe colonial adminis-</p><p>trativa, ele foi separado de sua mãe e mandado para a Inglaterra, uma</p><p>357. KIPLING, Rudyard. The Fumes of the Heart. In: The Eyes of Asia. Nova York, 1918, p. 36.</p><p>358. KIPLING, Rudyard. A Trooper of the Horse. In. op. cit., p. 77; 78 e 101</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 186 8/14/2019 17:35:49</p><p>187</p><p>experiência que o assombrou durante toda sua vida. Como escreveu</p><p>posteriormente, “nós não podíamos entender por que nossos pais nos</p><p>abandonaram”. Na velhice, poderia essa identificação imaginativa com</p><p>o soldado indiano ter feito com que Kipling revisitasse sua infância e</p><p>criasse uma fantasia maternal ainda localizada na Índia? Isso seria um</p><p>retorno à natividade? Há, no entanto, outro entendimento: em se-</p><p>tembro de 1915, seu filho de 18 anos John ( Jack) Kipling, um tenente</p><p>no segundo batalhão Irish Guards, desapareceu na Batalha de Loos.</p><p>O soldado indiano imaginado escreve: “Mãe, eu fui uma vez relata-</p><p>do ‘desaparecido, morto ou tomado como prisioneiro’”, exatamente a</p><p>mensagem que Kipling e sua esposa receberam. A dolorosa história de</p><p>sua subsequente longa busca para encontrar seu filho e o intenso en-</p><p>volvimento de Kipling com as comemorações da guerra imperial são</p><p>bem conhecidos. Nesses contextos, The Eyes of Asia — um texto regu-</p><p>larmente rejeitado como chauvinista e propagandista — é profunda-</p><p>mente revelador da complexa história emocional do próprio escritor:</p><p>a dor do pai e a desolação da criança, decorrentes dos deslocamentos</p><p>da guerra e do colonialismo. Por outro lado, da perspectiva da docu-</p><p>mentação histórica sobre a experiência indiana da guerra, somente um</p><p>aspecto da experiência sipai — a caracterização da hospitalidade euro-</p><p>peia como brilhante — é aqui tomado como representativo de toda a</p><p>experiência sipai. Assim, se varre para debaixo do tapete a discrimina-</p><p>ção racista, o trauma da guerra e a manipulação dos registros histó-</p><p>ricos para fins de propaganda de guerra. O importante é reconhecer</p><p>essas múltiplas intensidades de significado que atravessam esses textos</p><p>imperiais.</p><p>A peça literária na qual a realidade social e emocional dos sipais en-</p><p>contra sua expressão mais notável seria Across the Black Waters (1939),</p><p>de Mulk Raj Anand, em meio à Guerra Civil Espanhola. Anand é em</p><p>grande medida esquecido, mas foi uma figura literária importante no</p><p>começo do século XX. Ele participou tanto do modernismo britânico</p><p>quanto indiano, trabalhou por algum tempo como secretário particular</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 187 8/14/2019 17:35:49</p><p>188</p><p>de T. S. Eliot e pairou nas margens do grupo de Bloomsbury.359 Mais im-</p><p>portante ainda, ele cresceu em Punjab e pertenceu à mesma comunida-</p><p>de agrícola-marcial de onde os sipais foram recrutados. Across the Black</p><p>Waters, escrito em 1938, é dedicado “à memória de meu pai Subedar Lal</p><p>Chand Anand, M.S.M, (falecido 2/17º Dogra)”, que trabalhou no Exérci-</p><p>to da Índia Britânica. Escrito em um período em que as vozes europeias</p><p>controlavam a memória da Primeira Guerra Mundial, o romance é um</p><p>desafio à própria branquitude da memória de guerra e um ato vital de</p><p>recuperação da experiência indiana da guerra.</p><p>Across the Black Waters é a segunda parte da trilogia Lalu, que leva</p><p>o nome do protagonista, um jovem sensível do interior, cuja revolta</p><p>contra o conservadorismo religioso da comunidade rural (tema do pri-</p><p>meiro volume, The Village) é um retrato velado do próprio Anand. No</p><p>segundo volume, Anand leva Lalu à guerra na França junto com seu</p><p>batalhão. Consequentemente, o romance abre uma nova dimensão na</p><p>ficção de guerra ao vermos esses agricultores-soldados do norte da Ín-</p><p>dia desembarcando em Marselha e negociando a cultura ocidental pela</p><p>primeira vez — incluindo uma visita ao bar e ao bordel — antes de se-</p><p>rem empurrados para as trincheiras. A história da pequena aldeia no sul</p><p>da Ásia se alinha ao evento definidor do século XX europeu. O 69th Rifles</p><p>no romance é fortemente inspirado no 57th Wilde’s Rifles, e o tempo da</p><p>ação é em torno da Batalha da Flanders, em 1914, onde os indianos so-</p><p>freram perdas catastróficas. Anand segue os contornos históricos gerais,</p><p>desde a visita do General Roberts para motivar as tropas indianas até</p><p>a primeira confraternização delas com os alemães no Dia de Natal de</p><p>1914. No entanto, o que faz com que o romance seja extraordinário não</p><p>é a sua fidelidade histórica, mas sim a íntima compreensão e evocação</p><p>das vidas dos sipais na França. Um devoto tanto de Gandhi quanto de</p><p>Forster, Anand foca nos camponeses-guerreiros, não-heróis comuns, e</p><p>359. COWASJEE, Saros. So Many Freedoms: Major Fiction of Mulk Raj Anand. Delhi: Oxford Univer-</p><p>sity Pres, 1978.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 188 8/14/2019 17:35:49</p><p>189</p><p>em suas vidas cotidianas; a experiência de guerra encontra-se emara-</p><p>nhada nas complexidades do coração do sipai fustigado pelos ventos do</p><p>serviço de guerra imperial, mas igualmente perturbado por outras his-</p><p>tórias, sentidas de forma intensa, complexa e local. A passagem a seguir</p><p>é um exemplo característico, quando Anand imagina</p><p>noroeste da Europa.</p><p>A Grã-Bretanha não poderia permitir uma vitória da Alemanha sobre a</p><p>França, que iria colocar a Marinha Alemã nos portos do Canal e, assim,</p><p>controlar as rotas comerciais britânicas que forneciam 75% das provi-</p><p>sões alimentares britânicas em 1914. Aquela guerra, vencida pela França,</p><p>Grã-Bretanha e seus aliados, acabou em 1918 e o Tratado de Paz de 1919</p><p>selou a vitória, que durou até que Hitler reescrevesse 1918 em 1940, vin-</p><p>te e um anos depois.</p><p>No entanto, todos os outros teatros da Grande Guerra foram dei-</p><p>xados num estado de caos e incerteza, tornando-os ainda mais amea-</p><p>çadores em razão da potencial propagação da Revolução Russa pela</p><p>Europa. Quem poderia afirmar que o período entre 1919 e 1923 foi de</p><p>paz? Diversos exércitos brancos, apoiados por expedições militares mal</p><p>administradas dos Aliados vitoriosos, tentaram e falharam em derrubar</p><p>o regime Bolchevique. A guerra civil na Rússia deixou nada menos do</p><p>que calamidade em seu rastro, assim como o fez o Exército Vermelho</p><p>ao forçar a sua entrada na Polônia e ao ser derrotado não muito longe</p><p>dos portões de Varsóvia. A Itália perdeu a paz e seu regime parlamen-</p><p>tar entrou em colapso, com uma pequena ajuda de Mussolini e do rei</p><p>Vitor Emanuel. Os estados criados a partir do Império Austro-Húngaro</p><p>foram divididos por conflitos de classe e étnicos, que coincidiram de</p><p>tal forma a garantir que o derramamento de sangue continuasse por</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 22 8/14/2019 17:35:38</p><p>23</p><p>um período considerável de tempo. E o colapso do Império Otomano</p><p>produziu tudo, menos paz. No rescaldo do primeiro tratado de paz de</p><p>Sèvres, elementos do exército otomano derrotado, reagrupados e mo-</p><p>bilizados por Mustafa Kemal Atatürk, reconquistaram o seu próprio</p><p>solo às forças gregas, britânicas, francesas e italianas que ocuparam a</p><p>Anatólia depois de novembro de 1918.</p><p>A guerra deu lugar à guerra civil, transformando a Europa Central,</p><p>do Sul e do Leste. Um resultado inevitável dessa mudança de ênfase</p><p>de violência internacional para interna foi a limpeza étnica. Um dos</p><p>exemplos mais aterrorizantes de deslocamento demográfico ocorreu na</p><p>Turquia, onde milhões de cristãos se deslocaram para oeste, da Anató-</p><p>lia para a Europa, e muçulmanos foram para leste, em direção ao que</p><p>se tornou a República Turca em 1923. Quando o Tratado de Sèvres foi</p><p>desfeito e substituído pelo Tratado de Lausanne em 1923, a Turquificação</p><p>(Turkification) da nova nação foi codificada no direito internacional. O</p><p>processo que começou com o genocídio armênio de 1915 foi consuma-</p><p>do nas margens de Esmirna, arrasada pelo fogo em 1922. A Esmirna</p><p>cristã desapareceu, a muçulmana Izmir surgiu em seu lugar. O eufe-</p><p>mismo troca de população foi escolhido para encobrir a nua realidade do</p><p>assassinato, do estupro e da pilhagem.</p><p>Dessa forma, a minha reivindicação é, na verdade, dupla. Além de</p><p>mudarmos os parâmetros cronológicos da guerra que começou em</p><p>1914, devemos também registrar uma mudança no caráter da violência</p><p>coletiva na década seguinte. Por isso, afirmo que houve uma diferença</p><p>fundamental na forma como a guerra foi travada entre 1914 e 1917 se</p><p>comparada ao período de 1917 a 1923.</p><p>O que separa essencialmente essas duas fases é que, antes de 1917, a</p><p>mobilização da guerra implicou a unificação forçada das classes sociais</p><p>e dos grupos étnicos na base do esforço nacional ou imperial. Esse es-</p><p>forço conseguiu abafar e mascarar conflitos internos, quando os com-</p><p>batentes procuraram prover seus exércitos com homens e material</p><p>necessários à vitória. Depois de 1917, conflitos internos reemergiram,</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 23 8/14/2019 17:35:38</p><p>24</p><p>possivelmente com mais força por conta de sua supressão durante os</p><p>três anos anteriores, transformando a culture of war mobilization (cultu-</p><p>ra de mobilização de guerra) em uma culture of war anxiety (cultura de</p><p>ansiedade de guerra). A primeira almejava a união, enquanto a última</p><p>focava-se nas divisões internas, ódios e ressentimentos, alguns de longa</p><p>data, outros recentemente inventados ou propagados sob novas formas.</p><p>Com efeito, no início de 1917, depois de 30 meses de guerra, os com-</p><p>batentes enfrentaram o fortalecimento desse segundo tipo de cultura</p><p>de guerra. Paralelamente à Union Sacrée, surgiu uma série de fraturas</p><p>com suspeitas, ou pior que isso, de que seriam compatriotas a fornecer</p><p>bases para os ataques — retóricos ou físicos — que previamente tinham</p><p>como alvo o inimigo. Em 1917, o inimigo vivia intramuros, ameaçando</p><p>a nação e o esforço de guerra. Tal contextualização é tão válida para os</p><p>irlandeses, que se revoltam contra a Grã-Bretanha em 1916, quanto para</p><p>o judeu da Alemanha Imperial, cujo suposto baixo nível de participa-</p><p>ção militar se tornou assunto de um precário censo militar que acabou</p><p>provando o contrário. Os judeus estavam, na verdade, desproporcional-</p><p>mente presentes no front. O censo judaico foi rapidamente arquivado e</p><p>os arquivos, destruídos, mas os sentimentos então se inflamaram.</p><p>A guerra interna assumiu uma nova forma na metade de Março de</p><p>1917, quando o Czar Nicolau II abdicou. Nesse momento, a antiga ordem</p><p>dos dois lados enfrentou uma nova ameaça: a perspectiva de uma agita-</p><p>ção social que conduziria à revolução e à guerra civil. O espectro de luta</p><p>de classes trans-nacional que se cruza com o conflito militar global justifi-</p><p>ca a nossa percepção de ruptura no meio da Grande Guerra. Essa ameaça</p><p>alimentou a nova culture of war anxiety, que emergiu à medida que o cus-</p><p>to humano e material do conflito atingiu níveis sem precedentes. É essa</p><p>agitação, evidente desde os primeiros meses de 1917, que nos obriga a divi-</p><p>dir a guerra em duas partes. A amargura em relação aos traidores domés-</p><p>ticos cresceu e se aprofundou ameaçadoramente depois do Armistício de</p><p>novembro de 1918. As políticas de divisão doméstica e de ódio dominaram</p><p>a vida política, econômica e social nos anos subsequentes.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 24 8/14/2019 17:35:38</p><p>25</p><p>Portanto, em meados de 1917, ambos os lados do conflito experimen-</p><p>taram profundas mudanças na forma como entendiam a guerra. Afasta-</p><p>ram-se de uma cultura de mobilização de guerra, apropriada para o que</p><p>era essencialmente um conflito imperial, rumando em direção a uma</p><p>cultura de ansiedade de guerra, que modelaria os conflitos pós-impe-</p><p>riais e revolucionários de 1917 a 1918, e mesmos os posteriores.</p><p>Essa diferença entre perspectivas imperiais e revolucionárias se tor-</p><p>nou claramente explícita quando, em 23 de novembro de 1917, o novo</p><p>regime Bolchevique na Rússia publicou integralmente no Pravda o</p><p>conteúdo dos relatórios do Ministério das Relações Exteriores do Czar,</p><p>dando incontestável evidência sobre o futuro imperial que os Aliados</p><p>tinham em mente. Essas ambições imperiais se tornaram problemáticas</p><p>quando os Estados Unidos entraram na guerra em abril de 1917. O com-</p><p>promisso do presidente Wilson com uma diplomacia transparente e o</p><p>princípio de autodeterminação afetava diretamente a expectativa impe-</p><p>rial e os desígnios de outros beligerantes. Se dezenas de milhares de</p><p>homens sofreram e morreram nos dois lados para que o poder imperial</p><p>pudesse simplesmente mudar de mãos, então aqueles que lideravam es-</p><p>sas nações em guerra, que afirmavam ser os paladinos da democracia,</p><p>eram mentirosos e hipócritas.</p><p>Múltiplas divisões sociais reemergiram de forma mais aprofundada</p><p>nessa fase de abertura da Segunda Grande Guerra em ambos os lados.</p><p>Independentemente da Revolução Russa, conflitos domésticos explodi-</p><p>ram no setor industrial. Depois de três anos de mobilização industrial,</p><p>verifica-se uma primeira fase de greves massivas que se espalham pela</p><p>Europa, durando até cerca de 1923. O fenômeno estava relacionado com</p><p>o conflito na medida em que refletia a inflação dos tempos de guerra</p><p>e a desigualdade do sacrifício, mas também seguia tendências secula-</p><p>res. Desde a década de 1880, momentos de forte crescimento de sin-</p><p>dicatos eram frequentemente seguidos por atividades</p><p>vividamente cor-</p><p>pos transformando os espaços em que habitam:</p><p>Madrugadores habituais, a maioria dos sipais estava correndo, desfazendo</p><p>malas, polindo botas, cintos e botões de bronze com sua saliva, lavando</p><p>seus rostos, limpando seus dentes com palitos que trouxeram de casa, e</p><p>gargarejando, com ruídos ensurdecedores e reverberações assustadoras,</p><p>à melodia de hinos, cânticos e nomes de deuses, abundantes e sem fôle-</p><p>go, porque o ar gelado penetrava em sua carne [...] “Ohe, onde você está</p><p>indo?”, tio Kirpu gritou. Lalu entrou correndo, colocou suas botas rapi-</p><p>damente, ajeitou seu turbante e saiu de novo. “O garoto enlouqueceu”,</p><p>exclamou Kirpu a Dhanoo.360</p><p>Se Siegfried Sassoon, em The Diary of an Infantry Officer, reduziu o sipai</p><p>a um borrão marrom e vermelho, com Anand, toque, gosto, sentimento</p><p>e som evocam o corpo do sipai como sensorial em vez de uma fotografia</p><p>ou um objeto. Comunidades afetivas não são formadas através da inten-</p><p>sidade homoerótica de Owen, mas forjadas por meio dos palitos trazidos</p><p>de casa ou da saudação familiar hindi “Ohe”, na medida em que Anand</p><p>alinha a vida social das coisas com seu gosto na língua e remodela a lin-</p><p>guagem como ressonância emocional em vez de comunicação verbal. A</p><p>guerra se torna um lugar de politização para Lalu, que começa a ques-</p><p>tionar tanto o entendimento colonial quanto as hierarquias racistas. O</p><p>romance de Anand não é uma ária para a morte da alta consciência bur-</p><p>guesa europeia, mas sim para dar voz e consciência política para a classe</p><p>trabalhadora sipai ao se deparar com a Europa, a guerra e a desolação.</p><p>360. ANAND, Mulk Raj. Across the Black Waters. Delhi, 1949, p. 19.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 189 8/14/2019 17:35:49</p><p>190</p><p>Nos últimos anos, particularmente na Grã-Bretanha, a contribuição</p><p>de sipais indianos — especialmente sua participação na frente Ocidental</p><p>— está se tornando um elemento fundamental para a identidade e a cons-</p><p>trução de uma comunidade multirracial, promovida tanto pelo governo</p><p>como por representantes de diferentes grupos étnicos em diáspora. Em</p><p>abril de 1999, um grande grupo de sikhs da Grã-Bretanha, França e Bél-</p><p>gica fizeram uma peregrinação ao Menin Gate, em Ypres, para prestar ho-</p><p>menagem a seus ancestrais que lutaram na guerra. Esse foi um momento</p><p>singular na Europa, pois esse grupo específico tentava alinhar sua iden-</p><p>tidade étnica a um momento formativo da história europeia do século</p><p>XX. Durante os últimos anos, há um esforço ativo para diversificar e fa-</p><p>zer a memória da Primeira Guerra Mundial mais multirracial, como, por</p><p>exemplo, com o documentário de curta-metragem Whose Remembrance?,</p><p>feito pelo Imperial War Museum em 2013. Em um artigo recente no Ob-</p><p>server, a baronesa Warsi escreveu: “Nossos meninos não eram somente</p><p>Tommies — eles também eram Tariqs e Tajinders. Eles vieram de várias</p><p>nações e tinham diferentes fés”. Considerando a história de marginaliza-</p><p>ção do papel das tropas coloniais não-brancas, incluindo sul-asiáticos, da</p><p>memória da Primeira Guerra Mundial – e como certas forças extrema-</p><p>mente nacionalistas tentam tornar a memória desse conflito exclusiva-</p><p>mente branca –, essa tentativa de incorporá-las em um quadro multir-</p><p>racial é absolutamente vital. Além disso, dentro da memória indiana de</p><p>guerra, é igualmente importante relembrar que o exército era uma força</p><p>multirreligiosa, multiétnica e multicultural, e que a memória indiana não</p><p>pode ser controlada por um grupo étnico ou religioso específico. No en-</p><p>tanto, também é importante reconhecer efetivamente que essas são fre-</p><p>quentemente histórias difíceis, dolorosas e não atraentes: Tommy, Tariq e</p><p>Tajinder nunca se deram as mãos ao cruzar o oceano. “Tariq” sempre foi</p><p>considerado uma patente inferior a Tommy, e o arame farpado que havia</p><p>ao redor do hospital em Brighton Pavilion pode ser considerado uma me-</p><p>táfora das hierarquias raciais, segregação e policiamento aos quais Tariqs</p><p>e Tajinders foram submetidos mesmo enquanto sacrificavam suas vidas</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 190 8/14/2019 17:35:49</p><p>191</p><p>pelo império. É somente por meio do reconhecimento da história com-</p><p>pleta – e não da recordação seletiva ou da apropriação de pautas parti-</p><p>culares – que uma recuperação significativa das dimensões coloniais da</p><p>experiência da Primeira Guerra Mundial pode ser feita, possibilitando a</p><p>mobilização pela diversidade racial na atualidade.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>AHUJA, Ravi; LIEBAU, Heike Liebau; ROY, Franziska Roy (org.). ‘When the War Be-</p><p>gan, We Heard of Several Kings’: South Asian Prisoners in World War I Germany. De-</p><p>lhi: Social Science Press, 2011.</p><p>AHUJA, Ravi. The Corrosiveness of Comparison. In: AHUJA, Ravi; BROMBER, Ka-</p><p>trin; HAMZAH, Dyala; LIEBAU, Heike (eds.). The World in World Wars. Experiences,</p><p>Perceptions and Perspectives from Africa and Asia. Studies in Global Social History,</p><p>Vol. 5. Leiden: Brill, 2010, p. 131-166.</p><p>ANAND, Mulk Raj. Across the Black Waters. Delhi, 1949.</p><p>ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread</p><p>of Nationalism. Londres, 2001.</p><p>BASU, Shrabani. For King and Another Country: Indian Soldiers on the Western Front</p><p>1914-1918. Londres: Bloomsbury Publishing, 2015.</p><p>COWASJEE, Saros. So Many Freedoms: Major Fiction o</p><p>f Mulk Raj Anand. Delhi: Oxford University Press, 1978.</p><p>DAS, Santanu (org.). India, Empire and First World War Culture. Cambridge: Cambrid-</p><p>ge University Press, 2018.</p><p>_____. Race, Empire and First World War Writing. Cambridge: Cambridge University</p><p>Press, 2011.</p><p>_____ . The Singing Subaltern. Parallax, v. 17, n. 3, 2011, p. 4-18.</p><p>_____ . Sepoys, Sahibs and Babus. In: HAMMOND, Mary; TOWHEED, Shafquat</p><p>(Ed.). Reading Practices in the First World War. Londres: Palgrave Macmillan, 2007.</p><p>DOEGEN, Wilhelm Doegen (Ed.). Unter fremden Völkern – Eine neue Völkerkunde.</p><p>Berlim: Verlag für politik und wirtschaft, 1925.</p><p>ELLINWOOD, DeWitt; PRADHAN, S.D. (Org.). India and World War I. Delhi: Ma-</p><p>nohar, 1978.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 191 8/14/2019 17:35:50</p><p>192</p><p>MIR, Farina. The Social Space of language: Vernacular Culture in British Colonial Pun-</p><p>jabi. Berkeley: University of California Press, 2010.</p><p>GREENBLATT, Stephen. Learning to Curse: Essays in Early Modern Culture. Nova</p><p>Iorque: Routledge, 1990.</p><p>JACK, George Morton. The Indians Army on the Western Front, 1914-1915. Cambridge:</p><p>Cambridge University Press, 2014.</p><p>_____. The Indian empire at war: from Jihad to victory, the untold story of the Indian</p><p>army in the First World War. Londres: Little, Brown, 2018.</p><p>KIPLING, Rudyard. The Eyes of Asia. Nova Iorque: Doubleday, Page & Co, 1918.</p><p>LANGE, Britta. Academic Research on (Coloured) Prisoners of War. In: CHIE-</p><p>LENS, Piet, DENDOOVEN, Dominiek (Ed.). World War I: Five Continents in Flan-</p><p>ders. Ypres, 2008. Tielt: Lannoo, 2008.</p><p>_____. South Asian Soldiers and German Academics. In: AHUJA, Ravi; LIEBAU,</p><p>Heike; ROY, Franziska (Ed.). ‘When the War Began, We Heard of Several Kings’: South</p><p>Asian Prisoners in World War I Germany. Delhi: Social Science Press, 2011.</p><p>LUDERS, Heinrich. Die Gurkhas. In: DOEGEN, Wilhelm (Ed.) Unter fremden Vol-</p><p>kern. Eine nuue Volkerkunde. Berlin: O. Stollberg, Verlag für politik und wirtscha-</p><p>ft, 1925.</p><p>MARKOVITS, Claude. Indian Soldiers’ Experiences in France during World War I:</p><p>Seeing Europe from the Rear of the Front. In: AHUJA, Ravi; BROMBER, Katrin;</p><p>HAMZAH, Dyala; LIEBAU, Heike (Ed.). The World in World Wars. Experiences, Per-</p><p>ceptions and Perspectives from Africa and Asia. Studies in Global Social History.</p><p>Brill, Leiden: Brill, 2010. Vol. 5.</p><p>MIR, Farina. The Social Space of language: Vernacular Culture in British Colonial Pun-</p><p>jabi. Berkeley: University of California Press, 2010.</p><p>OMISSI, David. The Sepoy and the Raj. Basingstoke: Macmillan, 1994.</p><p>_____. Europe Through Indian Eyes. English Historical Review, v. 122, 2007, p. 371-396.</p><p>_____ (org.). Indian Voices of the Great War: Soldiers’ Letters, 1914-1918. Basingstoke:</p><p>Macmillan, 1999.</p><p>RAY, Rajat. The Felt</p><p>grevistas. O ano</p><p>de 1917 não foi uma exceção. Depois de 1914, verificou-se, em todos os</p><p>países combatentes, um influxo massivo nos sindicatos. Além disso, a</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 25 8/14/2019 17:35:38</p><p>26</p><p>intensidade dessas greves de 1917 e posteriores sugere que o adiamen-</p><p>to das demandas dos trabalhadores em relação a salários e condições</p><p>de trabalho, que ocorreu em todos os países beligerantes e em alguns</p><p>neutros desde 1914, funcionou como tampa de uma panela de pressão.</p><p>A inflação alimentou o fogo, sindicatos e outros grupos sociais, particu-</p><p>larmente mulheres protestando contra a escassez e o ultrajante preço</p><p>de alimentos e combustíveis, tomaram as ruas ou abandonaram os seus</p><p>postos de trabalho. Fizeram-no, apesar de entenderem as dramáticas</p><p>necessidades da máquina de guerra.27 De fato, a Revolução de Março na</p><p>Rússia foi desencadeada por um protesto de mulheres contra o preço</p><p>do pão.</p><p>A inflação do tempo de guerra foi mais grave entre as potências Cen-</p><p>trais do que entre os Aliados. Em parte, tal situação deveu-se ao fato</p><p>de que a Alemanha não podia solicitar empréstimos no mercado inter-</p><p>nacional de capitais da mesma forma que os Aliados, o que também</p><p>representava uma escolha política, uma aposta das lideranças alemãs na</p><p>ideia de que poderiam simplesmente imprimir dinheiro e se recuperar</p><p>mais tarde explorando os países que pretendiam subjugar. O momento</p><p>mais crítico em que a inflação de preços deu um salto exponencial foi</p><p>no fim de 1916, quando o Alto Comando Alemão chegou ao poder e or-</p><p>denou uma segunda mobilização industrial como o meio para a vitória.</p><p>Em meados de 1917, a Alemanha imprimiu quatro vezes mais marcos</p><p>alemães do que tinha em suas reservas; um ano depois, o valor era seis</p><p>vezes o das reservas; mais adiante, a situação saiu do controle. A Alema-</p><p>nha conduziu o esforço de guerra de forma diferente da Grã-Bretanha.</p><p>Ao quadruplicar a circulação de moeda, pagou a guerra através da infla-</p><p>ção, esperando cobrir sua dívida com o que exigiria de seus inimigos de-</p><p>pois da sua vitória. A Grã-Bretanha, pelo contrário, dobrou o suprimen-</p><p>to monetário, pagando a guerra majoritariamente com empréstimos.</p><p>27. TILLY, Charles. Strikes, Wars and Revolutions in an International Perspective. Cambridge e Paris:</p><p>Cambridge University Press e Éditions de la MSH, 1989; HAIMSON, Leopold; SAPELL, Giulio (eds).</p><p>Strikes, Social Conflict and the First World War. An International Perspective. Milan: Feltrinelli, 1992.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 26 8/14/2019 17:35:38</p><p>27</p><p>A inflação destruiu as poupanças e criou as condições nas quais, não</p><p>obstante, ou até por conta do controle de preços, um próspero mercado</p><p>negro operava. A inflação forrava os bolsos dos ricos e fazia com que</p><p>todos na Alemanha precisassem infringir a lei a fim de alimentar suas</p><p>famílias. A forma como a Alemanha travou a guerra econômica levou</p><p>a que a luta de classes assumisse uma nova e mais perigosa forma em</p><p>1917; ela escancarou o abismo entre os exploradores e os demais, entre</p><p>uma elite corrupta e uma população faminta e com frio, exaurida por</p><p>três anos de guerra.</p><p>Como esperado, em 1917, a trégua na política doméstica da primeira</p><p>metade da guerra chegou ao fim. O Partido Social-Democrata Alemão</p><p>então rachava; aqueles que queriam um fim para a guerra se encon-</p><p>traram em Gotha, no dia 6 de abril, e fundaram o USPD, o Partido So-</p><p>cial-Democrata Independente. Mais uma vez, grupos de mulheres fo-</p><p>ram proeminentes nessa radicalização da esquerda política. O Partido</p><p>Liberal Britânico também se dividiu, em parte devido a personalidades,</p><p>em parte devido ao recrutamento e à repressão da Revolta de 1916 na</p><p>Irlanda. Na França, Georges Clemenceau, que se tornou Primeiro Mi-</p><p>nistro em novembro, era um líder pouco consensual. Ele prendeu o seu</p><p>colega radical Joseph Caillaux por advogar negociações de paz: Caillaux</p><p>foi condenado por traição em 1918.28</p><p>A violência do tempo de guerra expôs a violência de conflitos in-</p><p>ternos nos países combatentes. Em 1917, distúrbios raciais sangrentos</p><p>explodiram em East St. Louis (Illinois), nos Estados Unidos, e, até mais</p><p>ameaçadoramente, em Houston, no Texas, onde 156 soldados negros</p><p>se revoltaram. Posteriormente, 19 soldados foram enforcados e mais de</p><p>40 foram presos por longos períodos.29 Em 1918, o líder socialista nor-</p><p>te-americano Eugene Debs foi preso por violar a Lei de Espionagem</p><p>28. GOMEZ-BRUFAL, Manuel. Joseph Caillaux: Traitre our visionnaire. Paris: Dualpha Editions, 2014.</p><p>29. BARNES, Harper. Never Been a Time: The 1917 Race Riot That Sparked the Civil Rights Move-</p><p>ment. New York: Walker & Company, 2008.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 27 8/14/2019 17:35:38</p><p>28</p><p>(Espionage Act) ao encorajar a resistência ao recrutamento30. Um oposi-</p><p>tor da guerra, Robert Prager, cidadão alemão e sindicalista, foi linchado</p><p>em Maryville, Illinois. Seus assassinos foram absolvidos31. A moderação</p><p>acabara tanto na política doméstica quanto na global.</p><p>A polarização marcou também o advento cada vez mais estridente da</p><p>direita política. Quando o Reichstag alemão promulgou sua resolução de</p><p>paz em 1917, deputados descontentes e seus apoiantes estabeleceram o</p><p>Vaterlandspartei (Partido da Pátria), com notável apoio do Almirante von</p><p>Tirpitz e do industrial Alfred Hugenberg.32 Até então, o esforço de guer-</p><p>ra alemão esteve quase totalmente nas mãos de um grupo militar-indus-</p><p>trial que deu ao Exército tudo o que necessitava, mas à custa de enormes</p><p>estrangulamentos e escassez no front doméstico. Protestos sociais inten-</p><p>sificavam-se à medida que as dificuldades econômicas se multiplicavam.</p><p>Para os franceses, a crise de início de 1917 antecipou a ofensiva do Che-</p><p>min de Dames e os motins que se seguiram ao seu fracasso. Não há evidên-</p><p>cia que a agitação social no front doméstico tenha influenciado os solda-</p><p>dos revoltosos, que se recusaram a continuar a ofensiva fútil e sangrenta</p><p>do General Nivelle33 no dia 16 de abril. Pelo contrário, o motim e a exis-</p><p>tência de uma agitação generalizada no front doméstico refletiam a exaus-</p><p>tão e a raiva sentida por parte substancial da própria população francesa.</p><p>Para eles, assim como para tantos ao redor do mundo, a guerra pa-</p><p>recia ser interminável. A guerra de 14-18 produziu um massivo impasse.</p><p>Nenhum lado desfrutou de suficiente vantagem para levar as partes em</p><p>conflito para a mesa de negociações. Em 30 meses de guerra, os dois</p><p>30. FREEBERG, Ernest. Democracy’s prisoner: Eugene V. Debs, the Great War and te right to dissent.</p><p>Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2008.</p><p>31. SCHWARTZ, E.A. The Lynching of Robert Prager, the United Mine Workers, and the Problems</p><p>of Patriotism in 1918. Journal of the Illinois State. Historical Society, v. 95, n. 4, Winter, 2003, p. 414-437.</p><p>32. BESSEL, Richard. Mobilization and demobilization in Germany, 1916-1919. In: HORNE, John</p><p>(ed.). State, society and mobilization during the First World War. Cambridge: Cambridge University Press,</p><p>2002, p. 50-67.</p><p>33. LOEZ, André; MARIOT, Nicolas (eds). Obéir/Désobéir. Les mutineries de 1917 en perspective. Pa-</p><p>ris: La Découverte, 2008.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 28 8/14/2019 17:35:38</p><p>29</p><p>lados perderam possivelmente sete milhões de homens mortos em ação</p><p>ou por ferimentos, e outros 15 milhões entre feridos e prisioneiros de</p><p>guerra. As gigantescas campanhas de 1916, que hoje chamamos de ba-</p><p>talhas de Verdun e da Somme, não mudaram em absolutamente nada o</p><p>equilíbrio estratégico do front ocidental. Cansaço, raiva, desconfiança e</p><p>atrito social eram evidentes por toda parte.</p><p>Por esse motivo, acredito que faça sentido dividir a Grande Guerra</p><p>em duas partes. A Revolução Russa seria o ponto de viragem, o mo-</p><p>mento em que o caráter político da guerra muda. A isso chamo de “cli-</p><p>matério” de 1917, tanto a nível internacional quanto doméstico. A Re-</p><p>volução Russa não provocou essa crise; ela corporificou uma mudança</p><p>mais ampla nas atitudes públicas em relação à guerra.34</p><p>Na França, o lento,</p><p>mas palpável, desenvolvimento, em 1917, de um</p><p>novo conjunto de representações da guerra não foi surpreendente. Afi-</p><p>nal, fazia somente 46 anos antes — ou seja, dentro da memória viva —</p><p>que a revolução comunista em Paris tinha sucedido uma guerra fracas-</p><p>sada. Tradições passadas de guerra revolucionária, particularmente da</p><p>década de 1790, eram também um pilar na história ensinada nas escolas</p><p>francesas. Em 1917, a par das velhas imagens de determinação da nação</p><p>francesa em lutar até à vitória, surge uma nova e poderosa série de re-</p><p>presentações de la Grande Guerre como um apocalipse, como o fim de</p><p>um mundo e o começo de outro. Por exemplo, o vencedor do Prêmio</p><p>Goncourt em 1916, Henri Barbusse, finalizou seu romance Le Feu com</p><p>uma cena pós-apocalíptica de soldados dos dois lados emergindo das</p><p>trincheiras com a visão de um novo mundo a ser construído. Barbusse</p><p>foi seriamente ferido em combate. Ele não era um pacifista, mas um</p><p>homem que falava em nome de um crescente número de pessoas que</p><p>acreditava que a guerra teria que transformar a ordem internacional</p><p>que havia precipitado a catástrofe.</p><p>34. Sobre o uso do termo “climatério” em história económica, veja-se MCCLOSKEY, Donald N. The</p><p>British Iron and Steel Industry, 1870-1914: A Study of the Climacteric in Productivity. Journal of Econo-</p><p>mic History, v. 29, n. 1, The Tasks of Economic History, mar., 1969, p. 173-175.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 29 8/14/2019 17:35:38</p><p>30</p><p>A força das culturas de guerra “imperiais” do período de 1914 a 1917</p><p>residia no fato dessas serem dominadas por atraentes representações da</p><p>guerra como uma luta para preservar formas antigas e reconhecidas de</p><p>vida.35 As novas culturas de guerra “revolucionárias” de 1917 em diante</p><p>foram marcadas pela raiva e por um senso de injustiça doméstica, assim</p><p>como uma dose significativa daquilo que Nietzsche designou de ressen-</p><p>timent.36 No entanto, elas também apontaram para transformações posi-</p><p>tivas, na esperança que algo de bom pudesse sair do imenso sofrimento</p><p>do conflito. Os antípodas — guerra imperial e guerra revolucionária —</p><p>passaram a estar em disputa a partir de 1917.</p><p>Se eu defendo que a Grande Guerra foi dividida em 1917, ainda me</p><p>resta defender que a nova culture of war anxiety, com sua ênfase no</p><p>inimigo interno, orientou a violência coletiva que continuou na Eu-</p><p>ropa, em particular na Europa Central, do Sul e do Leste, até 1923. Se</p><p>assim for, a Segunda Grande Guerra pode ser datada de 1917 a 1923.</p><p>VIOLÊNCIA PÓS-IMPERIAL</p><p>Violência contra civis</p><p>O fim da guerra em 1918 marcou o começo de inúmeras guerras para</p><p>determinar as fronteiras da Europa Oriental pós-imperial. Grande parte</p><p>dessa violência foi direcionada contra civis. Quando o incipiente Exérci-</p><p>to Polonês derrotou os ucranianos e capturou a cidade de Lviv, seguiu-</p><p>-se um ataque a judeus e suas propriedades na cidade entre os dias 22 e</p><p>24 de novembro. Aproximadamente 150 judeus foram mortos e 500 lo-</p><p>jas destruídas.37 O governo Pilsudski-Paderewski condenou os ataques,</p><p>atribuindo-os a bandidos e outros levados à violência pelas dificuldades</p><p>e pela fome. O estudo de William Hagen sobre a violência revela que</p><p>35. AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane; BECKER, Annette. 1914-1918 Retrouver la guerre. Paris: Galli-</p><p>mard, 2000.</p><p>36. FERRO, Marc. Ressentiment dans l’histoire: Comprendre notre temps. Paris: Odile Jacob, 2007.</p><p>37. HAGEN, William W. The Moral economy of ethnic violence: The pogrom in Lwow, November</p><p>1918. Geschichte und Gesellschaft, v. 31, n. 2, apr- jun, 2005, p. 203-226.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 30 8/14/2019 17:35:38</p><p>31</p><p>a raiva resultava da percepção da diferença entre a riqueza judaica e a</p><p>pobreza polonesa, configurada de tal forma que os judeus simbólica ou</p><p>materialmente “deviam” aos poloneses, que os atacavam, os bens (e as</p><p>vidas) que eles tomaram. Aqui está uma evidência do colapso da lei e</p><p>da ordem na sequência do Armistício. Ódios de guerra resvalaram em</p><p>uma violência pós-guerra direcionada a uma minoria judaica cuja “neu-</p><p>tralidade”, como entre ucranianos e poloneses, foi vista como um dis-</p><p>farce para a traição. Violência, incluindo assassinatos, norteava, assim,</p><p>uma espécie de justiça retributiva aos olhos dos perpetradores.</p><p>Há evidências substanciais de violência sobre inimigos étnicos, de</p><p>classe ou nacionais por toda a Europa Oriental nos primeiros meses</p><p>após o Armistício. Um dos casos, agora conhecido como Guerra Ci-</p><p>vil Finlandesa, começou em fevereiro de 1918 com a ofensiva de gru-</p><p>pos armados apoiados pelo novo regime Bolchevique. Alinhados con-</p><p>tra eles estavam forças conservadoras apoiadas pelo Exército Alemão,</p><p>cujos destacamentos militares estavam na Finlândia. As batalhas pelas</p><p>cidades de Tampere e Helsínquia foram vencidas pela Guarda Branca e</p><p>pelas forças alemãs. Os planos para estabelecer uma monarquia na Fin-</p><p>lândia, apoiada pelos alemães, foram frustrados apenas com a derrota</p><p>de novembro da Alemanha. O que tornou esse confronto significativo</p><p>foi o uso do terror não apenas durante a disputa, mas também poste-</p><p>riormente. Cerca de 12.500 Guardas Vermelhos morreram no cativei-</p><p>ro pelas mãos dos Brancos. Tal episódio foi apenas um entre muitos,</p><p>mostrando que, quando guerras nacionais se tornam civis, os limites</p><p>dos maus-tratos tanto sobre civis quanto sobre militares, prisioneiros</p><p>ou não, desapareceram.38</p><p>As guerras civis nos Estados Bálticos mostraram o mesmo recurso</p><p>à violência indiscriminada. No dia 1 de dezembro de 1918, o território</p><p>da Letônia foi invadido pelas forças bolcheviques que, em 3 de janeiro</p><p>38. SIRKKA, Arosalo. Social Conditions for Political Violence: Red and White Terror in the Finnish</p><p>Civil War of 1918. Journal of Peace Research, v. 35, n. 2, 1998, p. 147-66.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 31 8/14/2019 17:35:38</p><p>32</p><p>de 1919, tomaram a capital Riga. Posteriormente, uma instável aliança</p><p>das forças da Letônia e da Estônia, ao lado de elementos de grupos pa-</p><p>ramilitares alemães, avançou primeiro contra os bolcheviques, depois</p><p>uns contra os outros. As forças alemãs capturaram Riga em 22 de maio,</p><p>recusando-se depois a sair. Tinham uma agenda própria no sentido de</p><p>estabelecer uma presença alemã nos Estados Bálticos. Essa ideia insana</p><p>— insana no contexto de uma guerra perdida — acabou quando foram</p><p>expulsos por seus antigos aliados, a coligação de forças da Letônia e Es-</p><p>tônia. Novos combates estabeleceram uma Letônia independente, rati-</p><p>ficada pelo Tratado de Paz Letão-Soviético de 1920.39</p><p>O que aconteceu nos Estados Bálticos foi um microcosmo da guerra</p><p>civil que varreu a Rússia soviética de 1917 a 1922. O objetivo deste artigo</p><p>não é esgotar a análise das dezenas de guerras civis que aconteceram na</p><p>luta pelo domínio da Rússia pós-imperial.40 Ele procura apenas sinalizar</p><p>que, de Helsínquia à Erevan ou Vladivostok, esporádicas a intensas ex-</p><p>plosões de violência marcaram os conflitos pelo futuro do que se tor-</p><p>nou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.41</p><p>A minha reivindicação aqui é dupla. Em primeiro lugar, esses con-</p><p>flitos interstícios foram exercícios de massacre e pilhagem sob uma</p><p>condição de fome que beirava a inanição. Segundo, a guerra civil foi</p><p>descaracterizada pela presença, embora em número relativamente pe-</p><p>queno, de tropas ocidentais que inicialmente tomaram a retirada da</p><p>Rússia bolchevique do conflito como traição e que estavam determi-</p><p>nadas a reafirmar os interesses ocidentais na Rússia pela derrubada do</p><p>próprio regime Bolchevique. O seu fracasso e de muitos de seus alia-</p><p>dos no Exército Branco foi tão decisivo para o fim da Segunda Grande</p><p>39. Sobre a Letônia, ver: SWAIN, Geoffrey. The Disillusioning of the Revolution’s Praetorian Guard:</p><p>The Latvian Riflemen, Summer-Autumn 1918. Europe-Asia Studies, v. 51, n. 4, 1999, p. 667-86.</p><p>40. Sobre o assunto, ver: SNYDER, Timothy. The Reconstruction of nations: Poland, Ukraine, Lithua-</p><p>nia, Belarus, 1569-1999. New Haven: Yale University Press, 2004.</p><p>41. FIGES, Orlando. The Red Army and Mass Mobilization</p><p>during the Russian Civil War 1918-1920.</p><p>Past & Present, n. 129, 1990, p. 168-211.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 32 8/14/2019 17:35:38</p><p>33</p><p>Guerra quanto a Revolução Bolchevique foi para o fim da Primeira</p><p>Grande Guerra em 1917.</p><p>O que foi distinto na guerra civil Russa — assim como na Guerra de</p><p>Independência da Polônia e nas guerras civis Bálticas — foi a extensão</p><p>com que civis foram apanhados no meio do fogo cruzado fazendo a</p><p>Primeira Grande Guerra, na maioria das vezes, parecer relativamente</p><p>civilizada e ordenada. Uma amostra da crueldade dessas guerras pode</p><p>ser sentida na poesia de Anna Akhmatova, em Red Cavalry de Isaac Ba-</p><p>bel, ou em Dr. Zhivago de Pasternak.</p><p>A exceção nessa separação entre o antes e o depois de 1917 é o Ge-</p><p>nocídio Armênio. Esse crime fornece a ponte entre a Primeira Gran-</p><p>de Guerra e a Segunda, uma vez que anuncia uma política de guerra</p><p>contra um povo não pelo que foi dito que ele teria feito — apoiou o</p><p>esforço de guerra russo — mas pelo que ele era. A biopolítica, na for-</p><p>ma do assassinato de um povo, tornou-se uma arma de guerra em 1915.</p><p>Um prenúncio das coisas terríveis que se avizinhavam, tanto na Segun-</p><p>da Grande Guerra como depois.42 Igualmente premonitórios foram os</p><p>crimes associados ao terror vermelho e branco, primeiro em Berlim e</p><p>Munique, depois em Budapeste a partir de 1919. A violência dessas guer-</p><p>ras civis deixou um legado amargo que levou até ao desaparecimento</p><p>de gerações.</p><p>Fome e inanição</p><p>A Segunda Grande Guerra, que se estende de 1917 a 1923, também se</p><p>assemelha à Primeira Grande Guerra na questão da fome. A escassez</p><p>de alimentos e a falta de itens básicos de sobrevivência enfraqueceram</p><p>os esforços de guerra da Alemanha e da Áustria-Hungria em 1917, as-</p><p>sim como de muitas partes dos impérios Russo e Otomano. De fato,</p><p>argumenta-se que essas privações estavam associadas à forma como a</p><p>42. WINTER, Jay. Under cover of war: The Armenian genocide in the context of total war. In: GEL-</p><p>LATELY; Robert; KIERNAN, Ben (eds). The specter of genocide. Massmurder in historical perspective.</p><p>Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 189-214.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 33 8/14/2019 17:35:38</p><p>34</p><p>guerra foi travada pelas potências Centrais. Os Aliados provaram ser</p><p>capazes de distribuir bens e serviços necessários às suas Forças Armadas</p><p>sem relegar seus povos à fome e à doença. Também sobre essa questão,</p><p>1915 ofereceu uma amostra do problema da escassez de alimentos que</p><p>se alastraria pela Europa Oriental a partir de 1917.43 Os civis na Bélgica</p><p>e na França ocupadas — crianças em particular — foram alimentados</p><p>pelo primeiro programa de ajuda estrangeira da história, o American Re-</p><p>lief Effort. Nos dois últimos anos da guerra, a fome foi um fator central</p><p>para expor a fraqueza na forma dos Impérios Centrais conduzirem a</p><p>guerra. O problema reside menos nos produtos do que na distribuição.</p><p>Os Aliados controlavam preços e lucros, enquanto na Alemanha a pior</p><p>inflação de preços da história mundial começou em 1917, diminuindo</p><p>apenas em 1923. A inflação destruiu poupanças, enfraqueceu mercados</p><p>e redes de distribuição, fortalecendo um mercado negro massivo e exa-</p><p>cerbando ódios internos.</p><p>Vinte anos depois, Hitler garantia que o povo alemão não passaria</p><p>fome novamente em uma guerra mundial. Colocou na conta dos ju-</p><p>deus e de outros Untermenschen44 a miséria a que a liderança alemã for-</p><p>çou a sua própria população a partir de 1917.45 A situação agravar-se-ia</p><p>com a Segunda Grande Guerra, em parte porque o colapso militar ale-</p><p>mão deixaria suas forças no coração do antigo Império Russo. Pratica-</p><p>mente, todas as áreas produtoras de grãos eram lugares de violência</p><p>contínua e o vazio de poder produzido pelo Armistício implicou que</p><p>1919 fosse um ano de fome para a maior parte da população que vivia</p><p>no Leste, inclusive na nova Rússia Bolchevique, atacada por todos os</p><p>lados por bandos e exércitos contrarrevolucionários.</p><p>43. WINTER, Jay. Paris, London, Berlin: Capital cities at war. In: WINTER, Jay; ROBERT, Jean-Louis</p><p>(eds). Capital cities at war: Paris, London, Berlin 1914-1919. Cambridge: Cambridge University Press,</p><p>1997, p. 3-24.</p><p>44. [Nota do tradutor] Mantivemos o original em alemão usado pelo autor. Uma tradução possível</p><p>seria a categoria “sub-humanos” ou “inferiores”.</p><p>45. BORCHARDT, Lothar. The Impact of the war economy on the civilian population. In: DEIST,</p><p>Wilhelm (ed.). The German military in the age of total war. Leamington Spa: Berg, 1985, p. 110-120.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 34 8/14/2019 17:35:38</p><p>35</p><p>Os Aliados pioraram a situação — em clara violação do direito in-</p><p>ternacional — com a manutenção do bloqueio de portos alemães até</p><p>que a delegação alemã assinasse o Tratado de Paz em junho de 1919.</p><p>Isso significou fome e taxas de mortalidade altíssimas em Viena e Ber-</p><p>lim, mas também nas áreas densamente povoadas da nova Polônia e dos</p><p>territórios adjacentes. Uma crise demográfica seguiu-se, com surtos de</p><p>tifo, disenteria e cólera, agravada pela pior pandemia de gripe espanho-</p><p>la da história.</p><p>Em 1919, o Congresso dos Estados Unidos estabeleceu a American</p><p>Relief Administration. Nos quatro anos seguintes, o país forneceu ajuda</p><p>alimentar a 23 países europeus, à Turquia e ao que restou do Império</p><p>Otomano. Um quinto dessa ajuda foi destinado à Polônia, alimentando</p><p>crianças em idade escolar e provavelmente soldados poloneses mobili-</p><p>zados na Guerra Polaco-Soviética. Em 1921, a inanição em proporções</p><p>catastróficas impeliu o governo Bolchevique a colaborar com o progra-</p><p>ma Hoover Food Aid. Tal iniciativa funcionou porque Hoover percebeu</p><p>que, apesar da produção da agricultura estar prejudicada pela guerra e</p><p>pela guerra civil, a verdadeira solução para evitar a inanição seria provi-</p><p>denciar transporte numa paisagem rural caótica e devastada pelos con-</p><p>flitos. Foi o que fez usando seu conhecimento do território russo como</p><p>engenheiro civil. Ele não estava só. Outros agentes europeus e locais</p><p>fizeram a diferença. Juntos, foram capazes de salvar a vida de uma gera-</p><p>ção de crianças na Rússia, Ucrânia e Bielorrússia.46</p><p>Ninguém tem sido capaz de fornecer uma contagem fidedigna do</p><p>número de mortes verificadas durante a Guerra Civil Russa e a Guer-</p><p>ra Polaco-Soviética. O demógrafo Boris Urlanis afirmou que a cifra de</p><p>300 mil seria a mais precisa para aqueles que morreram em combate na</p><p>Guerra Polaco-Soviética; dessas mortes, provavelmente 175 mil eram do</p><p>Exército Branco e civis, e 125 mil dos exércitos Vermelhos. Entretanto,</p><p>46. WEISSMAN, Benjamin M. The Aftereffects of the American Relief Mission to Soviet Russia.</p><p>Russian Review, v. xxix, n. 4, 1970, p. 411-21.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 35 8/14/2019 17:35:39</p><p>36</p><p>para contabilizar aqueles que morreram dos dois lados devido à doen-</p><p>ça, ele acrescentou a cifra de 450 mil. Ninguém sabe quantos pereceram</p><p>no Terror Branco e Vermelho na Rússia, ou nas incontáveis escaramu-</p><p>ças que marcaram a guerra civil como um todo. A precaução leva-nos</p><p>aceitar que o número total dos que morreram, no que se tornou a</p><p>União Soviética, de doença, em combate ou executados tenha excedido</p><p>um milhão. Essas perdas prejudicaram o novo regime e, de acordo com</p><p>Orlando Figes, a classe operária industrial, em nome da qual a Revolu-</p><p>ção de 1917 foi feita, desapareceu cinco anos depois. O Estado Soviético</p><p>tomou o lugar dessa classe extinguida. Sabemos as devastadoras conse-</p><p>quências dessa série de catástrofes — que Figes denomina de A people’s</p><p>tragedy (A tragédia de um povo)47 — quando Stalin e seu círculo toma-</p><p>ram o controle do Estado Soviético e travaram uma guerra contra o seu</p><p>próprio povo por quase 30 anos.</p><p>CONCLUSÃO</p><p>Não sou um desses historiadores que acreditam no conceito de uma</p><p>Guerra de Trinta Anos de 1914 a 1945. Hitler mudou o significado da</p><p>guerra, primeiro em 1939, na Polônia, e depois, novamente, em 1941,</p><p>quando invadiu a União Soviética e transformou a guerra política numa</p><p>guerra de extermínio racial. Ao mesmo</p><p>tempo, uma das vantagens da</p><p>ideia de que foram duas Grandes Guerras entre 1914 e 1923 — não ape-</p><p>nas uma que terminou em 1918 — é nos fornecer pistas sobre o que</p><p>levou a Primeira Guerra Mundial à Segunda. As políticas de ódio, fome</p><p>e maltrato de civis podem ser rastreadas diretamente naquilo que deno-</p><p>mino de Primeira Grande Guerra de 1914 a 1917, embora esses vetores</p><p>de violência tenham sido aprofundados e radicalizados fortemente du-</p><p>rante a Segunda Grande Guerra de 1918 a 1923. O antissemitismo estava</p><p>vivo e bem antes destas datas, mas cresceu rapidamente a partir de 1918.</p><p>A crueldade da confusa luta entre os diferentes exércitos, representando</p><p>47. FIGES, Orlando. A people’s tragedy 1891-1924. London: Penguin, 1996.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 36 8/14/2019 17:35:39</p><p>37</p><p>distintas facções nacionais e grupos étnicos, piorou quando esses confli-</p><p>tos foram fundidos (e confundidos) com a Guerra Civil Russa.48</p><p>É no período que vai de 1918 a 1923 que podemos encontrar grande</p><p>número de evidências do processo que o historiador George Mosse de-</p><p>nominou de “brutalização”. Ele usou o termo de forma diferente daque-</p><p>la que eu uso. Mosse acreditava que a exposição à morte em massa entre</p><p>1914 e 1918 brutalizou tanto os homens que a sofreram, quanto as socie-</p><p>dades pelas quais lutavam.49 Acredito que ele esteja errado neste ponto.</p><p>Os efeitos chocantes das grandes batalhas de Verdun e da Somme nunca</p><p>poderão ser subestimados, mas a esmagadora maioria dos homens que</p><p>ali lutaram voltaram aos combates ou para suas casas como seres huma-</p><p>nos reconhecíveis, com seus compromissos e valores mais ou menos in-</p><p>tactos.50 Mosse está errado na datação, mas certo na essência da história,</p><p>pois há copiosa evidência de que houve uma ampla brutalização das nor-</p><p>mas — muito mais prejudicial do que uma brutalização dos indivíduos</p><p>— no período entre 1918 e 1923 e posteriormente. Foi então que calami-</p><p>dades econômicas e demográficas atingiram as sociedades em um esta-</p><p>do de desordem e fraqueza que simplesmente não se verificava à véspera</p><p>da Primeira Guerra Mundial. 1913 foi um ano bom. 1919 foi terrível. De-</p><p>pois de 1918, a guerra civil foi travada tendo como pano de fundo fome</p><p>extrema, luta de classes e ódios étnicos que, antes de 1918, certamente</p><p>não eram desconhecidos, mas não na forma dessa mistura explosiva.</p><p>Em suma, a mudança historiográfica que proponho neste capítulo</p><p>é limitar a interpretação dominante de guerra total para os anos que</p><p>melhor a descrevem, nomeadamente, os anos de 1914 a 1917, e aplicar</p><p>o termo “guerra civil pós-imperial” para a configuração de violência</p><p>48. Sobre esse e tantos outros assuntos, compartilho a interpretação de Robert Gerwarth (The Van-</p><p>quished: Why the First World War failed to end, 1917-1923. London: Allen Lane, 2016). Minha interpre-</p><p>tação não separa derrotados de vencedores.</p><p>49. MOSSE, George L. Fallen soldiers. Reshaping the Memory of the World Wars. New York: Oxford</p><p>University Press, 1990.</p><p>50. PROST, Antoine. Les limites de la brutalization. Tuer sur le front occidental, 1914-1918. Vingtième</p><p>Siècle, n. 81, 2004, p. 5-20.</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 37 8/14/2019 17:35:39</p><p>38</p><p>muito mais caótica, cruel e custosa que se espalhou por toda a Europa</p><p>Oriental e do Sul no período da Segunda Grande Guerra.</p><p>Não é na Primeira Grande Guerra de 1914 a 1917, mas nessa Segunda</p><p>Grande Guerra que as sementes dos conflitos radicais da década de 1930</p><p>devem ser procuradas. O exército Alemão de 1914 a 1917 não era de for-</p><p>ma alguma o protótipo dos exércitos nazistas sob Hitler. Porém, quan-</p><p>do Ludendorff e Hindenburg assumiram o controle no final de 1916,</p><p>começaram uma transição que, apesar de lenta, certamente preparou</p><p>o caminho para o futuro sombrio que viria. O mesmo é verdade para a</p><p>União Soviética, onde a guerra civil transformou um regime que tinha</p><p>muitas facetas, incluindo liberais e autoritárias, em um monstro. Sem</p><p>as falhas da diplomacia italiana em Paris em 1919 e a paralela intensifica-</p><p>ção dos conflitos de classe no imediato pós-guerra, Mussolini não teria</p><p>tido nenhuma possibilidade de tomar o poder. Contingência importa, e</p><p>os processos de contingência que venceram na Segunda Grande Guer-</p><p>ra eram muito pouco democráticos. Apesar de um período de recupe-</p><p>ração no final da década de 1920, a crise econômica mundial expôs as</p><p>tendências políticas antidemocráticas, alimentando-se das profundas</p><p>divisões sociais e étnicas que permaneceram como legado definitivo da</p><p>Segunda Grande Guerra.</p><p>A dimensão trágica da Grande Guerra era evidente bem antes de</p><p>1917, mas, até agora, os historiadores têm enfatizado o tema da remo-</p><p>bilização nesse ano como uma renovação do compromisso das popu-</p><p>lações com sacrifícios ainda maiores três anos após o início da guerra51.</p><p>A história, no entanto, é mais complexa. É necessário reconhecer que,</p><p>depois de três anos de guerra, houve uma mudança na ênfase da mobili-</p><p>zação das sociedades como um todo e um perigoso aprofundamento de</p><p>51. John Horne esteve na vanguarda dessa interpretação de mobilização e desmobilização cultural</p><p>como se pode notar em seu ensaio Demobilizing the mind: France and the legacy of the Great War</p><p>1919-1939. In. DRAPAC, Vesna Drapac; LAMBELET, André (eds). French History and Civilization: Papers</p><p>from the George Rudé Seminar. Volume 2. H-France, 2009, p. 101-107. Disponível em: .</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 38 8/14/2019 17:35:39</p><p>39</p><p>fissuras sociais dentro delas. O que eu chamo de culture of war anxiety</p><p>expressa um crescente sentimento de raiva em relação à injustiça e ao</p><p>privilégio, atingindo diretamente a ideia da union sacrée da primeira par-</p><p>te do conflito. A emergência dessa cultura de guerra concorrente, mais</p><p>de ressentimento do que de mobilização em torno da bandeira, cons-</p><p>tituiu, na minha opinião, um desenvolvimento significativo na história</p><p>cultural da Grande Guerra.</p><p>A culture of war anxiety permaneceu em evidência por muito tempo</p><p>após o fim formal do conflito. Ao nível da vida familiar, uma ansiedade</p><p>profunda foi inevitável no caso das viúvas, dos órfãos e daqueles que</p><p>cuidavam dos milhões de homens feridos na guerra. As taxas de divór-</p><p>cio, em muitas partes da Europa, atingiram níveis muito mais altos do</p><p>que nos anos anteriores à guerra. Os vitoriosos alcançaram a paz pela</p><p>qual pagaram um preço tão alto? Os vencidos seriam capazes de esca-</p><p>par dos desastres da guerra e da paz que se seguiram?</p><p>Aqui, também, o conceito de uma cultura de guerra diferente oriun-</p><p>da da segunda metade do conflito e persistindo depois do armistício ofe-</p><p>rece uma maneira de evitar o pensamento binário que há muito tempo</p><p>domina a literatura do campo. Em vez de insistir em escolhas mani-</p><p>queístas — patriotismo versus pacifismo, consentimento versus coerção,</p><p>mobilização versus motim — deveríamos reconhecer que a cor predo-</p><p>minante em tempos de guerra foi o cinzento. Mensagens contraditórias</p><p>existiram em vigorosa incompatibilidade entre si. A Grande Guerra foi</p><p>simplesmente muito grande para ser contida por um código cultural ou</p><p>por uma cultura de guerra.</p><p>A partir de 1917, a culture of war anxiety não só relativizou a culture</p><p>of war mobilization como a desafiou e a desestabilizou. A maioria dos</p><p>contemporâneos ainda ansiava pela vitória, mas já não a qualquer pre-</p><p>ço. Essa foi a mensagem mais perturbadora da Revolução Bolchevique,</p><p>assombrando todos os combatentes no último ano de guerra.</p><p>O foco na emergência de uma culture of war anxiety em 1917 também</p><p>nos ajuda a ir além de outra divisão binária: a da cultura de mobilização</p><p>miolo-temposeespacosdeviolencia.indd 39 8/14/2019 17:35:39</p><p>40</p><p>durante a guerra e a da cultura de desmobilização a partir de então.</p><p>Sem dúvida, houve um desengajamento lento e doloroso das popula-</p><p>ções, grupos sociais e governos dos ódios do tempo de guerra, mas a</p><p>mistura letal de guerra civil e revolução social marcou tanto vencedores</p>
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